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Opinião|Como perdemos nosso lastro como sociedade

Sociedade americana perdeu filtros que evitavam comportamentos tóxicos e o extremismo e estimulavam comunidades saudáveis

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Por Thomas Friedman (The New York Times)
Atualização:

O senso comum diz que o julgamento de Donald Trump por seus supostos esforços para comprar o silêncio de uma estrela pornográfica às vésperas das eleições de 2016 é o menos importante dos casos contra ele. Politicamente, pode ser verdade. Mas, mais do que qualquer outro caso, este revela uma tendência que afeta os Estados Unidos hoje: o quanto perdemos nosso lastro como sociedade.

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Como assim? O meio ambiente oferece uma boa resposta. Há quase 30 anos, visitei a Mata Atlântica no Brasil com uma equipe da Conservação Internacional, e seus membros me ensinaram todas as funções incríveis que os manguezais – aqueles bosques de árvores que muitas vezes vivem debaixo d’água ao longo da costa – desempenham na natureza. Os manguezais filtram toxinas e poluentes por meio de suas extensas raízes, fornecem amortecimento contra ondas gigantes desencadeadas por furacões e tsunamis, formam criadouros para o amadurecimento dos peixes jovens com segurança porque suas raízes trançadas impedem a entrada de grandes predadores e, literalmente, ajudam a manter o litoral no lugar.

Na minha opinião, uma das coisas mais tristes que aconteceu aos EUA durante a minha vida foi o quanto perdemos tantos dos nossos manguezais. Hoje, estão ameaçados de extinção em todo lugar – e não apenas na natureza.

Imagem mostra o ex-presidente Donald Trump no tribunal de Manhattan nesta quarta-feira, 29. Republicano mantém candidatura presidencial mesmo com dezenas de acusações judiciais Foto: Jabin Botsford/AP

A própria sociedade também perdeu muitos dos seus manguezais sociais, normativos e políticos - tudo aquilo que costumava filtrar comportamentos tóxicos, amortecer o extremismo político e nutrir comunidades saudáveis e instituições confiáveis para os jovens crescerem e que sustentam a união da nossa sociedade.

Veja só, a vergonha costumava ser um manguezal. Antigamente, se você fosse candidato à presidência dos Estados Unidos e fosse alegado - com muitas evidências - que você falsificou registros comerciais para encobrir sexo com uma estrela pornô logo após sua esposa ter dado à luz um filho, você abaixaria a cabeça de vergonha, desistiria da corrida e se esconderia debaixo da cama. Esse manguezal da vergonha foi completamente arrancado por Trump.

As pessoas se sentiam envergonhadas porque sentiam fidelidade a certas normas - o que fazia suas bochechas ficarem vermelhas quando sabiam que haviam falhado, explicou Dov Seidman, autor do livro “How: Why HOW We Do Anything Means Everything” [”Como: por que COMO fazemos as coisas é tão importante”] e fundador do How Institute for Society and LRN.

“Mas, no tipo de mundo sem normas em que entramos, onde as normas sociais, institucionais e de liderança estão sendo enfraquecidas”, disse-me Seidman, “ninguém mais precisa sentir vergonha por causa da violação de alguma norma”.

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Para deixar claro: pessoas em cargos do alto escalão fazendo coisas vergonhosas não são novidade na política e nos negócios americanos. O que é novo, argumentou Seidman, “é o fato de tantas pessoas fazerem isso de forma tão visível e com tanta impunidade: ‘Minhas palavras foram perfeitas’, ‘Eu faria isso de novo’. É isso que enfraquece as normas. Isso e fazer todos os demais se sentirem como otários por segui-los. Quer o presidente Richard Nixon fosse ou não um “vigarista”, ele dava a impressão de se sentir envergonhado por alguém pensar que sim. Não é o caso de Trump.

Nada é mais corrosivo para uma democracia vibrante e para comunidades saudáveis, acrescentou Seidman, do que “quando os líderes com autoridade formal se comportam sem autoridade moral. Sem líderes que, por meio do seu exemplo e suas decisões, salvaguardem as nossas normas e as celebrem, as afirmem e as reforcem, as palavras no papel – a Declaração de Direitos, a Constituição ou a Declaração de Independência – nunca irão nos unir”.

Consideremos apenas uma cena de outro caso envolvendo Trump, a respeito dos documentos confidenciais de Mar-a-Lago. Ocorreu depois que um grande júri federal intimou Trump, em maio de 2022, a apresentar todo o material confidencial em sua posse. Notas escritas por um de seus advogados citavam Trump dizendo: “Não quero ninguém olhando minhas caixas. Não quero mesmo”, e fazendo as seguintes afirmações: “O que acontece se simplesmente não respondermos ou não jogarmos o jogo deles?” e “Não seria melhor se apenas disséssemos que não temos nada aqui?”

Melhor para quem? Apenas para uma pessoa.

Na natureza, como na sociedade, quando perdemos os manguezais, o resultado é uma inundação com muita lama.

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Essa é a questão. Trump quer destruir os nossos manguezais sociais e legais e deixar-nos em um ecossistema ético falido, porque ele e pessoas como ele prosperam em um sistema falido. Ele continua a levar o nosso sistema até o ponto de ruptura, inundando a zona com mentiras para que as pessoas confiem apenas nele, e a verdade seja apenas o que ele diz ser. Na natureza, como na sociedade, quando perdemos os manguezais, o resultado é uma inundação com muita lama.

A responsabilidade, especialmente entre aqueles que prestaram juramento – outro manguezal vital – também sofreu séria destruição. Antigamente, se você tivesse o incrível privilégio de servir como juiz da Suprema Corte dos EUA, nem em seus sonhos mais loucos você teria uma bandeira americana pendurada de cabeça para baixo (carregada dessa forma por hooligans que invadiram o Capitólio em 6 de janeiro de 2021) fora de sua casa, muito menos sua esposa enviando e-mails instando funcionários do alto escalão a anularem as eleições de 2020. O seu senso de responsabilidade de parecer estar acima da política partidária para defender a integridade das decisões do tribunal não o permitiria.

Não mais – como demonstraram recentemente os juízes Clarence Thomas e Samuel Alito. E antes disso, em 2016, Ruth Bader Ginsburg também passou dos limites quando denunciou o então candidato presidencial Trump como um “farsante”.

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O debate civilizado e o envolvimento com aqueles de quem discordamos – em vez de pedir imediatamente que sejam demitidos – também costumavam ser um manguezal.

Em uma coluna que escrevi em 2016 sob o título “A Era do Protesto”, Seidman observou que “as pessoas em todo o mundo parecem estar moralmente excitadas” e isso é “uma coisa positiva, em geral”, quando se trata de enfrentar questões como o racismo ou o abuso policial. Mas, quando a excitação moral se manifesta como indignação moral – e exigências imediatas de demissão –, “o resultado pode ser um ciclo vicioso de indignação moral que é recebido com igual indignação, em lugar de um ciclo virtuoso de diálogo e do árduo trabalho de forjar um verdadeiro entendimento”.

Muitas universidades parecem hoje estar dominadas por um quadro ideológico progressista que divide o mundo em hierarquias de colonizadores e colonizados, oprimidos e opressores, racistas e antirracistas – e agora pró-sionistas e anti-sionistas. Como resultado, aqueles que se veem no lado errado dessas denominações binárias sentem a necessidade de permanecer em silêncio ou correm o risco de serem condenados ao ostracismo. O primeiro impulso em muitos casos atualmente é buscar o cancelamento, não a conversa.

Em novembro de 2022, a Heterodox Academy, um grupo sem fins lucrativos, entrevistou 1.564 estudantes universitários em tempo integral com idades entre 18 e 24 anos. O grupo descobriu que quase três em cada cinco estudantes (59%) hesitam em falar a respeito de temas polêmicos como religião, política, raça, orientação sexual e gênero por medo de reações negativas por parte dos colegas de classe.

Na verdade, a própria civilidade também costumava ser um manguezal. Durante a pandemia de Covid-19, encontrei conforto assistindo a filmes antigos como “O Vento será tua Herança”, lançado em 1960, quando o vi pela primeira vez, aos 7 anos de idade. Foi vagamente baseado no caso do “julgamento do macaco” de Scopes, de 1925. Ao rever o filme como um jornalista de quase 70 anos, não pude deixar de rir de uma cena de tribunal quando o advogado, Henry Drummond - defendendo um professor local que ensinava a ciência da evolução - percebe que há um microfone na sala do tribunal da estação WGN em Chicago. O caso Scopes foi a primeira vez que um julgamento foi coberto ao vivo por uma transmissão de rádio.

“Rádio!” Drummond troveja no microfone ao vivo da WGN. “Meu Deus, isso vai derrubar muitas paredes.”

“Você não pode dizer ‘Deus’ no rádio!” responde o locutor da WGN.

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“Por que diabos não?” pergunta Drummond.

“Também não pode dizer ‘diabos’”, diz o locutor.

Também não pode dizer “diabos”. Que pensamento inocente. Isso seria um ponto de exclamação educado nas redes sociais de hoje.

Outro manguezal vital é a observância religiosa. Tem diminuído há décadas: um relatório da Gallup de 29 de março de 2021 observou que “o número de americanos em locais de culto continuou a diminuir no ano passado, caindo para menos de 50% pela primeira vez nas oito décadas acompanhadas pela Gallup”. O momento poderia ser melhor porque, como Enrique Lores, diretor executivo da HP Inc., certa vez comentou comigo: “Hoje temos o poder de abrir o Mar Vermelho” – mas, frequentemente, “sem os Dez Mandamentos”.

Os jornais locais de cidades pequenas costumavam ser um manguezal que nos protegia do pior da nossa política nacional. É menos provável que um jornal local saudável vá longe demais, para um extremo ou outro, porque os seus proprietários e editores vivem na comunidade e sabem que, para que o seu ecossistema local prospere, precisam preservar e nutrir interdependências saudáveis – para manter as escolas decentes, as ruas limpas e sustentar as empresas locais e os criadores de empregos.

Mas um estudo recente da Faculdade de Jornalismo Medill, da Universidade Northwestern descobriu que, em 2023, a perda de jornais locais acelerou para uma média de 2,5 por semana, “deixando mais de 200 condados como ‘desertos de notícias’ e significando que mais de metade de todos os condados americanos agora têm acesso limitado a notícias e informações locais confiáveis”.

Portanto, agora as vozes nacionais mais partidárias na Fox News, ou MSNBC - ou qualquer um dentre o grande número de influenciadores polarizadores como Tucker Carlson - vão direto de seus estúdios nacionais até as pequenas cidades americanas, livres do impulso de um jornal ou estação de rádio local no sentido de manter uma comunidade onde as pessoas sentem algum grau de conexão e respeito mútuo. Tal como na natureza, isso deixa o ecossistema local com menos interdependências saudáveis, tornando-o mais vulnerável a espécies invasoras e doenças – ou, na sociedade, a ideias doentias.

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Em uma entrevista de 2021 com meu colega Ezra Klein, Barack Obama observou que, quando começou a concorrer à presidência, em 2007, “ainda era possível para mim ir para uma cidade pequena, em uma cidade conservadora desproporcionalmente branca no interior dos EUA, e ser recebido por um público justo porque as pessoas simplesmente não tinham ouvido falar de mim. … Eles não tinham nenhum preconceito em relação ao que eu acreditava. Poderiam simplesmente me aceitar pelo que estavam vendo diante de si”.

Mas então Obama acrescentou: “Se eu fosse a esses mesmos lugares agora – ou se algum democrata em campanha fosse a esses lugares agora – quase todas as notícias seriam da Fox News, das estações de notícias Sinclair, de programas de rádio ou de alguma página do Facebook. E tentar penetrar nisso é realmente difícil. Não é que as pessoas nessas comunidades tenham mudado. É que, se é com isso que elas são alimentadas, dia após dia, então elas chegam a qualquer debate com um certo conjunto de predisposições que são realmente difíceis de superar.”

Infelizmente, passamos de uma situação em que não se deveria dizer “diabos” no rádio para um país que está agora permanentemente exposto a sistemas de manipulação política e psicológica com fins lucrativos (e temos também Rússia e China botando fogo nesse circo), e com isso as pessoas não estão apenas divididas, mas estão sendo divididas. Sim, manter os americanos moralmente indignados é agora um grande negócio no nível doméstico, e uma guerra por outros meios por parte dos nossos rivais geopolíticos.

Mais do que nunca, vivemos na “tempestade sem fim” que Seidman me descreveu em 2016, na qual distinções morais, contexto e perspectiva – todas as coisas que permitem às pessoas e aos políticos fazerem bons julgamentos – são varridas para longe.

Varridas para longe – é exatamente isso que acontece às plantas, aos animais e às pessoas em um ecossistema que perde seus manguezais. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Opinião por Thomas Friedman

É ganhador do Pullitzer e colunista do NYT. Especialista em relações internacionais, escreveu 'De Beirute a Jerusalém'

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