THE NEW YORK TIMES -Diz-se que o presidente russo, Vladimir Putin, trabalha em escritórios idênticos, construídos em suas várias residências, para que fotos não sejam capazes de revelar sua posição. Seus assistentes passam por um processo de seleção tão rigoroso que um ex-guarda-costas certa vez os chamou de “uma casta de escolhidos”. E mais de três anos após o início da pandemia de coronavírus, o Kremlin continua a impor uma “zona limpa” em torno do presidente, exigindo que muitos que se aproximam dele passem dias em quarentena.
Há décadas, pessoas que conhecem Putin afirmam que ele coloca foco notavelmente em sua segurança pessoal e em evitar que rivais usem os poderes do governo contra ele. Agora, na esteira da breve rebelião do mês passado liderada por Ievgeni Prigozhin, líder do grupo mercenário privado Wagner, que lutou pela Rússia na Ucrânia, Putin parece enfrentar dificuldades para tornar seu sistema à prova de golpes uma vez mais.
Putin está recompensando a lealdade entre a elite governante e despejando dinheiro sobre seus apoiadores mais importantes — os homens das armas. E até aqui tem evitado um expurgo em larga escala a exemplo dos empreendidos por outros líderes autoritários em resposta a tentativas de golpe ou rebeliões, talvez para evitar desestabilizar seu sistema ainda mais.
“O presidente está agindo muito racionalmente”, afirmou a cientista política russa Ekaterina Schulmann. “Seu foco está em sua sobrevivência pessoal e política, e ele está disposto a tudo para sobreviver.”
Resposta
Schulmann notou que, até agora, apesar de sua reputação de implacabilidade, Putin tem respondido à rebelião fracassada apenas com cenouras, mas nenhum porrete — conforme comprovado na semana passada por uma suntuosa cerimônia no Kremlin em honra às forças de segurança e por um decreto oficial do governo determinando um aumento de 10,5% para militares, policiais e outros funcionários de agências de segurança.
A cientista política postulou que “o sistema está enfraquecido e precário demais para determinar qualquer repressão em larga escala” em resposta à rebelião.
Alguns argumentam que, até aqui, a maneira com que Putin tem lidado com o motim o colocou em uma posição fortalecida. Ele removeu Prigozhin enquanto fator desestabilizador na força de invasão russa na Ucrânia e obrigou os militares, as forças de segurança e membros da elite governante a renovar seus votos de lealdade.
Mas analistas afirmam que Putin enfrentará novas ameaças, especialmente conforme continuar a dar poder a um fragmentado aparato de segurança composto por diferentes interesses e centros de poder.
“A curto prazo, Putin alcançou uma vitória aqui”, afirmou o professor de ciência política Grigorii Golosov, da Universidade Europeia, de São Petersburgo. “Mas a longo prazo, é uma situação desestabilizadora.”
Amigos
Ao longo de seus 23 anos no poder, Putin entregou o controle de alguns dos mais importantes recursos do governo a amigos de longa data e colocou ex-guarda-costas e outros asseclas em posições cruciais do governo. O Serviço Federal de Proteção, agência cuja principal missão é proteger o presidente e outras graduadas autoridades, é uma força com dezenas de milhares de membros e também tem assumido uma função crescente no monitoramento de outras agências de segurança russas para evitar possíveis conspirações contra o presidente.
Um indivíduo que abandonou no ano passado a agência — conhecida por suas iniciais em língua russa, FSO — descreveu uma organização abrangente, que inclui um Centro de Segurança Biológica responsável por inspecionar a comida do presidente. Acredita-se que Putin atente cuidadosamente para seus arranjos de segurança. Questionado em uma entrevista publicada em 2017 a respeito de sua segurança, Putin respondeu que o líder cubano Fidel Castro lhe disse que sobreviveu a tantas tentativas de assassinato “porque sempre cuidou ele mesmo de sua segurança pessoal”.
Desde o motim, as ações de Putin têm sublinhado seus cálculos frios destinados a manter sua própria segurança e poder. Para impedir a rebelião de 24 de junho, Putin abriu uma concessão, permitindo que Prigozhin e seus combatentes se abrigassem em segurança em Belarus, mesmo após eles terem derrubado várias aeronaves russas, tomado uma cidade de 1 milhão de habitantes e marchado a até 200 quilômetros de Moscou.
E então Putin despejou louvores sobre suas forças de segurança, organizando uma cerimônia na santificada Praça das Catedrais, no Kremlin, em honra à “determinação e coragem” de seus soldados, com comparecimento até de policiais de trânsito. Para demonstrar seu amor pelo povo em um momento de crise, Putin pareceu violar suas próprias precauções relativas à covid-19 publicamente pela primeira vez. Ele se aventurou através de uma multidão de adoradores no sul da Rússia apertando mãos e até beijou a testa de uma jovem.
Apesar de Putin ser conhecido pela paciência ao tramar contra os algozes, também houve prisões confirmadas de indivíduos que podem ter colaborado com o motim ou de pessoas próximas a Prigozhin.
O aumento para os soldados e membros das forças de segurança havia sido anunciado previamente, mas Schulmann, a cientista política, afirmou que não pareceu coincidência ele ter sido oficializado dias após o motim.
Putin aparentemente também prometeu mais armas para um de seus mais leais chefes de segurança. O diretor da Guarda Nacional, Viktor Zolotov, um ex-guarda-costas de Putin, gabou-se na semana passada afirmando que o presidente havia prometido às suas forças armas como tanques e sistemas de artilharia.
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E o líder russo expressou confiança no ministro da Defesa, Sergei Shoigu, cuja demissão era exigida havia muito por Prigozhin em razão de problemas no campo de batalha, mas que trabalha para Putin desde que o presidente ascendeu ao poder, em 1999. Shoigu pronunciou-se publicamente a respeito da rebelião pela primeira vez na segunda-feira, em declarações publicadas pela mídia estatal russa, afirmando: “Esses planos fracassaram porque, acima de tudo, o pessoal das Forças Armadas permaneceu fiel ao seu compromisso e dever militar”.
Mas recompensar com mais dinheiro e poder as Forças Armadas e os serviços de segurança implica em riscos próprios. Golosov, o cientista político de São Petersburgo, alertou que outras facções internas das corporações podem ficar tentadas a organizar suas próprias insurreições, após testemunhar a capacidade de Prigozhin em lançar a sua.
“É bastante possível que, olhando para a maneira que o motim de Prigozhin se desenvolveu, outros jogadores nos serviços de segurança vejam isso como, digamos, um curso de ação mais plausível para si mesmos do que antes da experiência de Prigozhin”, afirmou Golosov. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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