Como Putin transformou o boicote do Ocidente à Rússia em bonança econômica

Se empresas querem deixar a Rússia, o presidente estabelece em que termos — de maneiras que beneficiam seu governo, suas elites e sua guerra

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Por Paul Sonne e Rebecca R. Ruiz

THE NEW YORK TIMES — Pouco após as tropas russas invadirem seu país, o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, fez um apelo às empresas do Ocidente: “Deixem a Rússia”, afirmou ele, “garantam que os russos não recebam nenhum centavo”.

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Centenas de empresas responderam ao chamado. Políticos e ativistas previram que isso ajudaria a estrangular a economia russa e minar o esforço de guerra do Kremlin.

Mas o presidente Vladimir Putin tinha outros planos. Putin transformou as saídas de grandes empresas ocidentais em lucros inesperados para a leal elite russa e para o próprio Estado. Forçou empresas querendo vender ativos na Rússia a vendê-los a preço de banana. Restringiu as vendas a compradores ungidos por Moscou. E em certas ocasiões, ele simplesmente confiscou as empresas.

Uma investigação do New York Times constatou como Putin transformou um infortúnio num esquema de enriquecimento. Empresas ocidentais que anunciaram sua partida declararam mais de US$ 103 bilhões em prejuízos desde o início da guerra, de acordo com uma análise do Times de registros financeiros. Putin pressionou as empresas a cobrarem o mínimo possível, ditando os termos de sua partida. E também sujeitou as empresas de saída a impostos cada vez maiores, gerando pelo menos US$ 1,25 bilhão no ano passado para os cofres de guerra da Rússia.

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Nenhum negócio privado está a salvo. A fabricante holandesa de cerveja Heineken, por exemplo, encontrou um comprador no início do ano e estabeleceu um preço. Mas o governo russo rejeitou o contrato unilateralmente, afirmaram fontes próximas às negociações, e colocou os ativos da empresa na Rússia nas mãos de uma titã das embalagens de aerosol casada com um ex-senador russo.

No fim das contas, Putin coordenou uma das maiores transferências de riqueza ocorridas na Rússia desde a queda da União Soviética. Grandes fatias de indústrias — elevadores, pneus, revestimentos industriais e outros setores — estão agora nas mãos de atores russos cada vez mais dominantes.

Em alguns casos, esse ator é o Estado. Empresas estatais adquiriram ativos de gigantes corporativos como a Toyota. Em muitos casos, Putin assina os contratos pessoalmente.

“São bons negócios para nós, certamente”, afirmou o proeminente dono de restaurantes Anton Pinski, que se uniu a um rapper pró-Putin e associados de um poderoso senador para assumir o Starbucks. Durante entrevista, em Moscou, ele minimizou a importância de seu próprio negócio, mas foi claro sobre o efeito da saída dos ocidentais. “Vocês se deram mal, foram embora”, afirmou ele. “Nós compramos barato. Obrigado.”

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Um robusto mercado de consumo continua a existir hoje na Rússia, o que ajuda Putin a manter uma sensação de normalidade apesar de uma guerra que se provou mais longa, mais mortífera e mais cara que o previsto. A maioria das empresas estrangeiras permaneceu na Rússia, relutante em perder bilhões investidos ao longo de décadas.

Outras empresas foram vendidas e mudaram pouco ao atravessar o espelho. A Krispy Kreme virou Krunchy Dream; suas rosquinhas vêm em uma caixa parecida e nos mesmos sabores. O Starbucks renasceu como Stars Coffee. Sua sereia é agora uma princesa encantada.

Essas empresas podem comprar matérias-primas domesticamente ou importá-las de países amigos. E clientes ainda conseguem facilmente comprar produtos que tinham sido supostamente retirados das prateleiras. Em um dia recente, um supermercado de Moscou oferecia Pepsi usbeque e Coca-Cola polonesa.

Os contra-ataques econômicos de Putin ajudaram a fortalecer o apoio entre as elites que estão lucrando com a guerra e aliviar os efeitos do isolamento. Enquanto a Ucrânia se preocupa com imperativos a curto prazo, como consolidar o apoio internacional, a relativa resiliência da economia russa possibilitou a Putin jogar com o tempo ao seu lado.

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Documentos anteriormente não revelados, registros financeiros e entrevistas com dezenas de executivos negociadores de contratos na Rússia e em toda a Europa — muitos falando sob condição de anonimato por temer vinganças — mostram que Moscou passou a microgerenciar praticamente todas as saídas de empresas do país. As empresas têm de navegar num sistema opaco para obter aprovação para vender. Em alguns casos, amigos de Putin apelaram para sua intervenção direta.

“Quem vai embora está perdendo o lugar”, disse ao Times o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov. “E evidentemente suas propriedades estão sendo compradas com grandes descontos e sendo assumidas por nossas empresas, que o fazem com prazer.”

Os contra-ataques econômicos de Putin ajudaram a fortalecer o apoio entre as elites que estão lucrando com a guerra e aliviar os efeitos do isolamento  Foto: EFE/EPA/MIKHAEL KLIMENTYEV/SPUTNIK/KREMLIN

Ainda assim, a onda de empresas partindo causou estrago, mandando um sinal global de que a Rússia é pária nos negócios. Sua economia está pressionada e corre risco de superaquecer. A maneira que Putin tem lidado com as partidas apenas reforçou a imagem da Rússia como um lugar perigoso para os negócios. Mesmo algumas graduadas autoridades russas admitem que menos competição e investimentos estrangeiros prejudicarão os russos comuns e a economia a longo prazo.

O Kremlin diz preferir que as empresas permaneçam na Rússia. Mas Putin zomba da noção de que as partidas causaram estrago. “Eles pensaram que tudo ruiria por aqui? Bem, nada do tipo aconteceu”, afirmou ele este mês. “As empresas russas assumiram e seguiram adiante.”

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Nem todo acordo é lucrativo. Alguns compradores enfrentam dificuldades para obter lucro de suas novas empresas. Ameaças de intimidação e uso de força pairam sobre o processo de partida das empresas ocidentais. As autoridades russas investigaram empresas de saída, interrogaram funcionários e prenderam executivos locais.

No verão passado, Putin confiscou a filial russa da cervejaria dinamarquesa Carlsberg, juntamente com cerca de meio bilhão de dólares em dinheiro da empresa, e a colocou sob controle temporário de um amigo. Pelo menos outras sete empresas perderam o controle de suas operações de forma similar este ano, em confiscos efetivamente estatais.

Hoje, Putin comanda um tenso processo de saída que favorece a Rússia. Mas nos primeiros dias da guerra isso começou com o objetivo urgente de simplesmente manter viva a economia russa.]

Bloqueando as saídas

Falando na Casa Branca duas semanas após a invasão, o presidente Joe Biden gabou-se afirmando que o Ocidente estava esmagando a economia russa. “A lista de empresas e corporações internacionais deixando a Rússia cresce dia a dia”, disse ele.

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As coisas pareciam ruins para Putin. A bolsa de valores de Moscou estava fechada e o valor do rublo tinha despencado. Se a Rússia perdesse todos os empregos, toda a produção e todo o dinheiro das empresas ocidentais, os efeitos seriam devastadores.

Mas Putin estava preparando sua resposta financeira. Ele restringiu a movimentação de dinheiro no exterior e exigiu que empresas de “nações não amigáveis” obtivessem aprovação antes de vender seus ativos.

Putin estava pisando no freio justamente no momento em que executivos ocidentais eram pressionados a acelerar. Nos Estados Unidos, talvez não tenha havido um crítico mais contundente que o professor de administração Jeffrey Sonnenfeld, da Universidade Yale. Ele aparecia em programas de notícias na TV a cabo criticando empresas que permaneciam na Rússia.

O professor Sonnenfeld lembrava que foram boicotes corporativos — mais que sanções — que ajudaram a abolir o apartheid na África do Sul. Ele transformou seu escritório num tipo de sala de guerra, com uma equipe de Yale avaliando empresas em função de seus esforços de cortar laços com a Rússia.

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A dúvida a respeito de quem acabaria possuindo essas empresas levantava pouca preocupação.

“Se Putin acha que consegue fritar melhor as batatinhas, deixem-no tentar”, afirmou Sonnenfeld em entrevista. “Nós realmente não damos a mínima. O importante é não haver a chancela de uma marca global.”

A lista do professor Sonnenfeld e outras iniciativas do tipo colaboraram com a pressão de acionistas, ativistas ucranianos e consumidores comuns.

Alguns executivos preocupavam-se com o que aconteceria com seus funcionários, suas fábricas e suas tecnologias na Rússia se eles fossem embora. Outros relutavam em abandonar seus investimentos em razão de uma guerra que poderia durar pouco.

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Mas alguns anunciaram rapidamente sua intenção de partir. A Heineken e a Carlsberg afirmaram que partiriam assim que encontrassem compradores. A empresa canadense de mineração de ouro Kinross fez o mesmo e dias depois anunciou um contrato de venda de sua operação por US$ 680 milhões para um comprador local.

A OBI, uma rede alemã de lojas de material de construção, deu um passo além, afirmando que fecharia todas as suas 27 unidades na Rússia até encontrar um comprador.

Loja OBI fechada em Moscou em 2022. Os negócios da empresa na Rússia acabaram sendo vendidos pelo preço simbólico de alguns dólares Foto: Maxim Shemetov/Reuters

Mas o governo de Putin já erguia obstáculos. Em 17 de março de 2022, o Ministério do Comércio da Rússia enviou uma carta para gerentes locais das lojas OBI. A carta, analisada pelo Times, instava os profissionais a desafiar a empresa e manter as lojas abertas, citando leis de proteção do consumidor. Não havia nenhuma “razão econômica” para fechar, escreveu o ministério.

A OBI, alertou o ministério, precisava cumprir “obrigações com seus consumidores, trabalhadores e contrapartes, incluindo fornecedores”. Isso ocasionou dias de um jogo de gato e rato enquanto funcionários locais tentavam reabrir lojas e executivos na Alemanha tentavam impedi-los.

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As autoridades russas também exigiram que diretores da OBI prestassem depoimentos a respeito de seus planos. Segundo afirmou ao Times a empresa, promotores de Justiça visitaram uma loja e inspecionaram seu sistema computacional.

A OBI firmou um acordo naquela primavera, enfim vendendo sua operação na Rússia por um preço simbólico, de poucos dólares. O comprador, um empresário chamado Josef Liokumovich, foi aprovado nos testes de antecedentes da empresa e não estava em nenhuma lista negra financeira. Mas conforme a OBI logo saberia, empresas ocidentais não têm nenhum controle sobre quem por fim assumirá o controle de suas operações.

Em menos de um ano, a OBI russa mudou de dono quatro vezes, acabando nas mãos de associados do senador russo Arsen Kanokov, que é sancionado pelo Departamento do Tesouro dos EUA. Num determinado momento, um aliado do homem-forte checheno Ramzan Kadirov apareceu no registro de propriedade.

Esses redirecionamentos são o motivo pelo qual diplomatas e especialistas afirmam que é cedo demais para entender o ambiente em transformação. Os novos donos verdadeiros de algumas empresas poderão não ser conhecidos por anos ou nunca aparecer.

“Esses caras”, afirmou a diretora jurídica da OBI, Urszula Nartowska, “têm o poder de fazer o que quiser. E nós somos obrigados a aceitar”.

Em junho, o Kremlin demonstrou o que as empresas poderiam esperar: Moscou aprovou a venda da mina de ouro Kinross, mas com uma alteração impressionante; o preço de venda foi cortado pela metade, para U$ 340 milhões.

A compradora, Highland Gold, entraria posteriormente na lista negra das autoridades britânicas, que afirmaram que o ouro fornece um “fluxo significativo de renda para o esforço de guerra da Rússia”.

“O governo percebeu que poderia ditar quem compra e talvez usar esse poder para recompensar compradores conectados”, afirmou o advogado Alan Kartashkin, da Debevoise & Plimpton, que passou décadas em Moscou e negociou saídas de empresas ocidentais.

“Eu me lembro de pensar”, acrescentou Kartashkin, “que quando eles sentissem que tinham poder de controlar transações inteiramente privadas, onde o governo não tem nenhum interesse em equidade, eles não iriam parar”.

‘Esta empresa já é russa’

O humor foi de celebração em julho quando o ministro russo de Indústria e Comércio, Denis Manturov, apareceu em uma fábrica de elevadores em São Petersburgo.

A empresa tinha pertencido recentemente à maior fabricante de elevadores do mundo, a Otis Worldwide, sediada em Connecticut, e passou a pertencer a uma firma controlada por Armen Sarkisian, que tinha feito fortuna administrando a loteria russa em parte graças a conexões no governo.

Manturov gabava-se de que Moscou tinha garantido condições especiais para a venda. Ele elogiou a nova linha de produção e a robusta demanda por elevadores em arranha-céus russos. “Esta empresa já é russa”, afirmou. Ela era conhecida como Meteor.

Sarkisian é um exemplo de uma criação singular da guerra: um empresário conectado politicamente o suficiente para ganhar um prêmio dessa magnitude e rico o suficiente para fechar o negócio — mas não tão proximamente ligado ao Kremlin a ponto de estar sujeito a sanções internacionais.

Quase da noite para o dia, Sarkisian e outros indivíduos absorveram enormes fatias de seus mercados.

Quando a gigante finlandesa dos elevadores, Kone, tentou vender a empresa para seus empregados, as autoridades rejeitaram o contrato. Novamente, a S8 Capital, a holding de Sarkisian, tornou-se a compradora.

A S8 Capital também entrou no ramo dos pneus, arrematando a operação na Rússia na alemã Continental antes de comprar a Cordiant, a maior fabricante de pneus da Rússia, e entrar em negociações para comprar a fábrica na Rússia da japonesa Bridgestone. A S8 Capital não respondeu a pedidos de comentário.

A S8 Capital também entrou no ramo dos pneus, com negociações para comprar a fábrica na Rússia da japonesa Bridgestone  Foto: Pascal Rossignol/REUTERS

No verão de 2022, a economia russa tinha se estabilizado, o rublo tinha se recuperado, e a estratégia de Putin mudou.

Ainda que no começo da guerra empresas como McDonald’s tivessem vendido as operações para administradores ou empresas locais, com a opção de retornar para a Rússia depois, acordos desse tipo logo ficaram mais difíceis.

Saindo da crise, o governo quis fazer mais que simplesmente manter as portas abertas, decidindo ditar cada vez mais os termos de cada contrato.

Em agosto daquele ano, Putin emitiu um decreto exigindo que empresas de setores críticos obtivessem sua assinatura antes de vender ativos na Rússia. Uma série de empresas, incluindo divisões da Siemens e da Caterpillar, foram subitamente sujeitas aos caprichos do próprio Putin.

“O governo estava começando a restringir o processo, que estava ficando muito mais difícil”, afirmou a advogada Laura Brank, da Dechert, que ajuda empresas ocidentais a sair. “Eu dizia aos clientes que era melhor nos movermos rapidamente.”

A subcomissão

Para a maioria das empresas que tentam deixar a Rússia, os operadores que abrem ou fecham-lhe as portas trabalham em edifício governamental cinza, próximo à Praça Vermelha. Onze dias depois da guerra começar, Putin determinou a formação de uma “subcomissão” especial para analisar os pedidos para vendas de ativos.

O ministro das Finanças de Putin, Anton Siluanov, há muito no governo, dirige a subcomissão, que inclui autoridades do Kremlin, do Banco Central e de ministérios importantes.

Esses indivíduos decidem se as empresas podem deixar a Rússia e em que termos. Quando uma empresa chega a um acordo com um comprador, as negociações com frequência começam novamente — dessa vez em segredo, entre o comprador e os ministérios do governo russo. O vendedor é em grande medida excluído. Esse processo, afirmam advogados, com frequência termina com um preço de venda mais baixo e às vezes com um novo comprador. Então o contrato vai para a subcomissão. Certas vezes, os acordos malogram depois de meses de silêncio.

Minutas internas analisadas pelo Times mostram que a subcomissão examina minuciosamente até os detalhes mais específicos. Em uma reunião no ano passado, o painel aprovou a venda por US$ 59 mil de um apartamento minúsculo de propriedade da fabricante de pneus Nokian.

A subcomissão exerce um poder enorme. Minutas mostram que o painel rejeitou uma proposta da empresa americana de eletrônicos Honeywell para vender suas fábricas até que uma análise provasse que o comprador russo estava obtendo 50% de desconto.

Apesar da burocracia, empresários disputaram nos bastidores os ativos mais lucrativos, com frequência apelando diretamente para Putin.

Foi o que ocorreu no verão de 2022, quando a fabricante de papel britânico-austríaca Mondi encontrou comprador para uma de suas fábricas na Rússia e buscou aprovação do governo para vender.

Conforme o contrato foi sendo elaborado, Sergei Chemezov, um dos velhos amigos de Putin na KGB, apareceu. Ele escreveu uma carta pedindo que o presidente destinasse a fábrica para um grupo de investidores, incluindo a estatal que ele dirige. E até sugeriu uma maneira de estruturar o contrato para contornar as sanções do Ocidente. O Times analisou uma cópia dessa carta. Nem Chemezov nem a estatal responderam a pedidos de comentários.

O contrato de Chemezov não se concretizou, nem o acordo original da Mondi. A subcomissão colocou a fábrica nas mãos de um dono de construtora por um preço significativamente mais baixo que o original.

No exterior, o professor Sonnenfeld e outros mantiveram a pressão. Mais de 200 empresas obtiveram nota “F” em sua lista. O professor Sonnenfeld deu depoimento ao Congresso em novembro de 2022. Permanecer na Rússia, afirmou ele, equivale a apoiar o governo.

Mas sob as regras de Putin, partir também beneficia o governo e, portanto, a guerra.

Este ano, a empresa-mãe da Ikea vendeu seus shopping centers para um banco controlado pelo Estado. A Nokia vendeu sua operação para uma empresa petroleira que pertence a um governo regional. Uma estatal assumiu as operações na Rússia da Nissan, da Renault e da Toyota.

O governo russo tem buscado usar fábricas de automóveis anteriormente ocidentais para produzir veículos para a fabricante estatal de carros de luxo Aurus, de acordo com um documento interno do Ministério do Comércio obtido pelo Times.

Os Ministérios do Comércio e das Finanças não responderam a pedidos de comentário.

Putin também encontrou uma maneira de trazer dinheiro diretamente para dentro dos cofres do Estado.

No início, os contratos de venda de empresas estrangeiras eram sujeitos ao que o governo chamava de “imposto voluntário” — exigido em troca do privilégio de retirar uma quantia vultosa em dinheiro da Rússia. Empresas que optassem por não recolher o imposto receberiam seus pagamentos em parcelas.

Mas no começo deste ano Putin parou de lhes oferecer essa opção. Empresas foram obrigadas a pagar esse imposto e mesmo assim receber pagamentos parcelados.

O Kremlin também deixou claro o que estava implícito desde o acordo da Kinross: exigia-se das empresas que vendessem com um desconto de pelo menos 50%.

A Heineken por cerca de US$ 1

Em 2023, o ambiente tinha se tornado intangível. O Kremlin mudava as regras constantemente e parecia sempre exigir mais. Algumas empresas, entre elas a Unilever, anunciaram que preferiam permanecer na Rússia do que ver seus ativos acabarem nas mãos do governo.

Nesse contexto, executivos da Heineken e da Carlsberg ainda negociavam com compradores este ano quando Putin concedeu a si mesmo poderes ainda maiores.

O governo russo, decretou ele em abril, poderia confiscar ativos estrangeiros e colocá-los sob administração temporária de quem bem entendesse. Agora as empresas arriscavam ser simplesmente confiscadas.

A Heineken alcançou um contrato naquele mês, e o comprador, um empresário do Cazaquistão, requereu a aprovação do governo. Os executivos da Carlsberg seguiram a toada, planejando vender para a fabricante russa de aerosol Arnest, que tinha comprado recentemente uma empresa altamente lucrativa de recipientes de bebidas da americana Ball Corporation.

Ambas as cervejarias sentiram confiança de que, mais de um ano depois de anunciar planos de deixar a Rússia, elas finalmente conseguiriam sair.

Contrato com a Heineken na Rússia foi fechado por 1 euro  Foto: J. David Ake/AP

Mas em julho Putin pegou os executivos da Carlsberg de surpresa ao confiscar a empresa e colocá-la nas mãos de seu antigo associado e colega de judô Taimuraz Bolloev.

A Carlsberg era um alvo atrativo. A empresa controlava a icônica marca de cerveja russa Baltika e tinha avaliado sua operação na Rússia recentemente em cerca de US$ 3 bilhões. As solicitações de permissão para vendas revelaram que a empresa possuía US$ 500 milhões em dinheiro.

Em outra reviravolta, as autoridades russas também rejeitaram o contrato da Heineken. De acordo com fontes próximas às negociações, as autoridades direcionaram os ativos para a Arnest — um prêmio de consolação, talvez, por ter perdido a mais lucrativa Carlsberg.

O contrato foi fechado por 1 euro e a promessa de pagamento de US$ 100 milhões em dívidas. Para os executivos da Carlsberg, a saga estava longe de acabar. Bolloev, afirmaram eles, pressionou para que eles transferissem a posse da empresa permanentemente.

“Isso exigiria que nós firmássemos literalmente um contrato com Putin e seu governo, criando uma transação legítima na qual eles pudessem assumir nossos negócios sem pagar quase nada”, afirmou em entrevista, no mês passado, o diretor-executivo da Carlsberg, Jacob Aarup-Andersen. “Nós não podíamos fazer isso.”

Semanas depois, as autoridades russas prenderam dois funcionários da empresa e revistaram suas residências. Este mês, noticiaram meios de imprensa russos, Bolloev pediu para as autoridades nacionalizarem a empresa.

O ex-presidente russo Dmitri Medvedev, atualmente vice-presidente do Conselho de Segurança, não expressa simpatia a empresas que tentam retirar dinheiro da Rússia e levá-lo para os mesmos países que estão armando a Ucrânia. Ele ridicularizou a Carlsberg, agradecendo a cervejaria por rechear o orçamento russo. “Um orçamento forte significa ajuda para o front”, escreveu ele no mês passado. “Nesse aspecto, dinamarqueses insensatos também contribuíram para as armas modernas da Rússia.”/TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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