Como seria a Rússia sem Vladimir Putin? Historiadora projeta cenário em artigo

Grupo de opositores russos tem ideias de reformas políticas, mas falham em assuntos econômicos

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Por Joy Neumeyer*

A atual condição da Rússia — militarizada, isolada, corrupta, dominada pelos serviços de segurança e sangrando talentos à medida que centenas de milhares de cidadãos fogem para o exterior para escapar de servir em uma guerra horripilante — é desoladora.

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Na esperança de pôr fim a esta sombria realidade, alguns esperam ansiosamente que Vladimir Putin deixe a função. Para o país mudar, contudo, não é suficiente a morte de Putin ou que ele saia da presidência. Os futuros líderes da Rússia têm de desmantelar e transformar as estruturas sobre as quais ele governou por mais de duas décadas. O desafio é, no mínimo, aterrador. Mas um grupo de políticos está delineando um plano para enfrentá-lo.

Composto por figuras bem conhecidas da oposição e jovens representantes de governos locais e regionais, o Primeiro Congresso de Delegados da Rússia se reuniu na Polônia no início de novembro. A locação do encontro, o Palácio Jablonna, nas proximidades de Varsóvia, foi simbólica: foi lá que começaram as negociações da mesa-redonda que colocou fim ao governo comunista na Polônia. Ao longo de três dias de intensos debates, os participantes expuseram propostas para a reconstrução de seu país. Reunidas, essas propostas conformam um sério esforço para imaginar uma Rússia sem Putin.

Homem tira foto em frente na Praça Vermelha, em Moscou, em imagem do dia 10 deste mês. Saída de Putin não significaria mudança imediata na Rússia, diz historiadora Foto: Alexander Nemenov / AFP

A principal e mais pungente prioridade, evidentemente, é a invasão à Ucrânia. Todos os integrantes do congresso se opõem à guerra, que, assumem eles, será perdida ou levará ao desastre nuclear. Para lidar com as consequências e evitar a repetição de uma tragédia, eles propõem um “ato de paz” que desmobilizaria o Exército e poria fim à ocupação ao território ucraniano, incluindo a Crimeia; criaria um grupo conjunto para investigação de crimes de guerra; pagaria reparações pela estrutura danificada e para as famílias dos mortos; e rejeitaria futuras “guerras de conquista”. Além de oferecer uma ferramenta de dissuasão contra expansionismos futuros, esse amplo compromisso proveria um acerto de contas essencial com o histórico russo de invasões imperialistas.

As autoridades responsáveis pela devastação também precisarão ser extirpadas — algo que nunca aconteceu após o colapso da União Soviética. O congresso impediria de trabalhar no Estado e em instituições educacionais aqueles que pertenceram a organizações “criminosas” — tais como o Serviço Federal de Segurança e os canais de TV estatais — ou tenham apoiado a guerra publicamente; e restringiria seus direitos eleitorais. O congresso também criaria uma comissão de “desputinização”, para deliberar a respeito de certos grupos, incluindo aqueles que se retratarem publicamente, não tiverem cometido crimes especialmente graves e abrirem os arquivos dos serviços de segurança.

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E há também a própria estrutura da Rússia. A Federação Russa é altamente centralizada, composta por um mosaico de 80 repúblicas e regiões fortemente subordinadas ao presidente, o que possibilita um acúmulo enorme de poder. O congresso, baseando-se em visões descentralizantes que remontam à época do colapso soviético, propõe a dissolução da Federação Russa e sua substituição por uma democracia parlamentarista. De acordo com um esboço enunciado em termos vagos de uma provisão a respeito de “autodeterminação”, o futuro Estado russo deve ter “adesão fundada na base da livre escolha dos povos que o habitam”.

Esse rompimento com o presente poderia corrigir promessas fracassadas do passado. De Vladimir Lênin a Boris Yeltsin, os líderes russos modernos têm histórico de oferecer descentralização para conquistar apoio e então renegá-la, uma vez que consolidam o poder. Apesar de todos os membros da federação serem legalmente iguais sob a atual Constituição russa, desigualdades substanciais persistem — fato que foi sublinhado pelo acionamento e morte desproporcionais de minorias étnicas de repúblicas mais pobres, como Daguestão e Buriácia, na guerra à Ucrânia.

Retomar o tema de uma maior soberania poderia permitir à independentista República da Chechênia, por exemplo, deixar a Rússia após ter sido subjugada brutalmente por Putin e ao mesmo tempo possibilitaria a regiões e repúblicas que não possuem movimentos secessionistas fortes renegociar alocações de recursos e equilibrar o poder com Moscou. Isso criaria um país mais justo e minaria o nacionalismo russo.

O congresso é vago, porém, a respeito de planos econômicos para o país. Uma provisão promete “reavaliar os resultados da privatização” operada durante os anos 90 (que levou à ascensão dos oligarcas russos), e outra busca cancelar a altamente impopular reforma previdenciária que Putin realizou em 2020. Falta, entretanto, um comprometimento com uma rede de seguridade social e não há absolutamente nenhuma menção a respeito de um afastamento da economia russa de sua dependência em relação às exportações de energia. Trata-se de um descuido relevante. Desde a década de 90, quando privatizações e eleições foram introduzidas simultaneamente, riqueza e poder se entrelaçaram. Reformas políticas e econômicas não podem ser consideradas separadamente.

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E esse não é o único problema. O principal organizador e patrocinador do congresso é o empreendedor de esquerda Ilia Ponomarev. Único membro do Parlamento russo a votar contra a anexação da Crimeia, em 2014, ele deixou o país, obteve cidadania ucraniana e agora dirige um canal de notícias em língua russa com base em Kiev. Figura controvertida nos círculos da oposição, em agosto ele apoiou o assassinato de Daria Dugina, filha do filósofo eurasianista Alexander Dugin, e afirmou que a ação foi realizada por um exército clandestino pró-Ucrânia com base dentro da Rússia. Essa afirmação não corroborada indignou outras figuras da oposição. Ponomarev foi subsequentemente desconvidado de um evento organizado por Garry Kasparov e Mikhail Khodorkovski, dois antigos críticos do Kremlin.

Presidente russo Vladimir Putin durante uma cerimônia em Moscou no dia 9 deste mês Foto: Serguei Guneiev/Sputnik/AP

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Apesar de seus desentendimentos, a oposição russa possui uma visão para o futuro geralmente convergente. Khodorkovski e Alexei Navalni, o dissidente mais famoso do país, que atualmente definha em uma colônia penal, também conclamam a transformação da Rússia em uma democracia parlamentarista, com mais poder devolvido às instâncias locais e regionais. Mas nenhum representante de Navalni compareceu ao congresso, nem Kasparov, nem Khodorkovski. Sua legitimidade — já desafiada por várias organizações russas antiguerra afirmando que o congresso não as representa — também foi questionada por alguns participantes, muitos dos quais deixaram o evento em protesto contra o que qualificaram como falta de igualdade e transparência a respeito de sua organização.

Tais querelas não ajudam as propostas, que podem parecer irreais. Mas a história mostra que desdobramentos radicais são com frequência incubados no exterior ou clandestinamente. No fim do século 19 e início do 20, emigrados políticos em comunidades antagônicas de toda Europa conspiraram pela queda do Império Russo. Entre eles, Vladimir Lênin, que vivia na Polônia quando a 1.ª Guerra começou.

Por agora, com a maior parte da população russa forçada a se calar enquanto as pessoas perdem empregos ou liberdades de expressar dissenso, a possibilidade de transformação do país parece remota. A mudança, no entanto, pode vir quando for menos esperada. No início de 1917, Lênin expressou pessimismo e se lamentou, afirmando que não viveria para ver a revolução; algumas semanas depois, o czar foi deposto.

A Rússia não é mais fadada do que nenhum outro país a repetir seu passado. O momento para reimaginar o futuro é agora. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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*Neumeyer é jornalista e historiadora especializada em Rússia e Leste Europeu

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