SÃO PAULO-O presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, venceu as eleições americanas com apoio de uma coalizão de eleitores diferente da usual para um candidato republicano. Além da força rural e de eleitores homens, o republicano teve mais votos de mulheres, latinos, afro-americanos, árabes e muçulmanos americanos do que em 2016 e 2020. O tamanho do apoio de parte da população árabe e muçulmana surpreendeu e contribuiu para a vitória de Trump em Estados-pêndulo como Pensilvânia e Michigan.
O republicano conseguiu atrair parte deste eleitorado ao se colocar como um representante da demanda destas comunidades por uma paz duradoura no Oriente Médio, em meio a guerras na Faixa de Gaza e no Líbano.
“O presidente Trump fala a linguagem da paz e eu gosto disso”, destaca Rabiul Chowdhury, um empresário da Filadélfia que criou o grupo “Muçulmanos por Trump”. Chowdhury não se considera republicano, mas sim um eleitor independente. Ele votou em Joe Biden em 2020.
De acordo com dados do Arab American Institute, mais de 390 mil árabes americanos vivem no Estado de Michigan e 126 mil vivem na Pensilvânia. Trump venceu por uma diferença de 120 mil votos na Pensilvânia e 80 mil em Michigan. A presença de árabes e muçulmanos americanos nestes Estados foi decisiva para a vitória, segundo Chowdhury.
A maioria da população árabe e muçulmana nos Estados Unidos tende a ser mais leal ao Partido Democrata, principalmente desde os ataques terroristas às Torres Gêmeas em Nova York, no dia 11 de setembro de 2001, e a consequente Guerra ao Terror, lançada pelo ex-presidente republicano George W. Bush. Mas o apoio da administração Biden a Israel durante a guerra em Gaza e uma diferença entre as principais ideias do partido com as posições destas comunidades inclinou parte do eleitorado a votar em Trump.
Muitos integrantes da comunidade árabe e muçulmana se sentem abandonados pelo Partido Democrata, avalia Sally Howell, professora de estudos árabes americanos da Universidade de Michigan, em entrevista ao Estadão. “A frustração deste eleitorado foi aumentando ao longo do ano. Foram vários protestos nas primárias democratas, depois na convenção e mesmo assim a administração Biden seguiu vendendo armas para Israel”.
Como Trump atraiu este eleitorado?
Durante a campanha, a estratégia do Partido Republicano foi capitalizar o momento ruim dos democratas com este grupo demográfico e passar a mensagem de que Trump traria paz ao Oriente Médio. A ideia não era só conseguir votos para Trump, mas também desengajar o eleitorado que pretendia votar em Kamala.
O presidente eleito enviou o bilionário libanês Massad Boulos, sogro de Tiffany Trump, filha do republicano, e o ex-diretor de Inteligência Nacional dos EUA, Richard Grenell, para conversar com líderes árabes e muçulmanos nos Estados-Pêndulo.
Grenell, que chegou a ser cotado para o cargo de secretário de Estado no governo Trump, fez campanha em Michigan ao lado de Rabiul Chowdhury, fundador do movimento “Muçulmanos por Trump”. Foi o ex-diretor de Inteligência Nacional que intermediou um encontro entre Chowdhury e Trump em Dearborn, cidade com a maior comunidade árabe de Michigan.
“Quando me encontrei com Trump, nós falamos sobre como as guerras na Ucrânia e em Gaza precisavam ser encerradas. Ele me disse que se ele fosse o presidente nos últimos quatro anos estes conflitos não teriam começado”, apontou Chowdhury.
O apelo não cativou a todos os eleitores, mas Trump ganhou votos em cidades com grandes comunidades árabes e muçulmanas em Michigan, enquanto Kamala perdeu em relação a Biden, segundo um levantamento do jornal britânico The Guardian.
O republicano foi o primeiro candidato presidencial de seu partido a ganhar uma eleição em Dearborn desde 2000. Na segunda cidade com maior população árabe, Hamtramck, Trump não ganhou, mas melhorou sua votação em relação a 2020. O prefeito democrata da cidade, Amer Ghalib, o apoiou durante a campanha.
“Trump visitou Dearborn e conversou com muitos proprietários de pequenas empresas sobre como ele iria melhorar a economia, falou sobre a paz no Oriente Médio, enquanto Kamala não apareceu”, disse a professora da Universidade de Michigan.
Crise no Partido Democrata
O voto em Trump também pode ser considerado um voto de protesto contra o Partido Democrata. Apesar de rusgas entre o presidente Joe Biden e o primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, por conta da maneira que Israel estava conduzindo a guerra em Gaza, os EUA seguem apoiando Tel-Aviv.
“A população árabe e muçulmana vota majoritariamente no Partido Democrata ou é independente. O movimento pelo voto em Trump realmente foi uma forma de punir Biden e Kamala Harris pela guerra no Oriente Médio”, aponta o fundador do grupo “Muçulmanos por Trump”.
Uma outra forma de prejudicar Kamala Harris foi o apoio de parte da comunidade árabe e muçulmana à candidata do Partido Verde, Jill Stein, que tentou amplificar a sua candidatura em uma plataforma contrária à guerra em Gaza. Uma pesquisa do Council on American Islamic Relations indicou que 53,2% dos muçulmanos americanos optaram por Jill Stein. Trump recebeu 21,4% dos votos, enquanto Kamala ficou com 20,3%.
As políticas consideradas mais progressistas do partido também pesaram, segundo Sally Howell, da Universidade de Michigan. “Houve uma fadiga muito grande com as políticas democratas. Muitos membros destas comunidades são mais conservadores e acreditam que o partido tem adotado posições muito mais à esquerda do que o necessário, especialmente em relação à comunidade LGBT”.
Para a especialista, existe uma percepção de que o Partido Democrata não representa mais as minorias e a classe trabalhadora. “Os democratas perderam porque a comunidade árabe e muçulmana se sente abandonada pelos políticos do partido e muitos sentiram o peso da inflação”.
Segundo a professora da Universidade de Michigan, os democratas terão de se esforçar para ganhar a confiança deste eleitorado novamente, mas Trump deve “ajuda-los” com suas políticas consideradas pró-Israel. “Em termos de oposição, Trump irá fazer muito do trabalho pelos democratas”.
O apoio vai continuar?
Depois da vitória do presidente eleito, muitos integrantes da comunidade árabe e muçulmana questionam se ele de fato vai cumprir as promessas de campanha. O republicano indicou uma série de nomes pró-Israel para seu gabinete, como é o caso do senador Marco Rubio para o cargo de secretário de Estado, o apresentador Pete Hegseth para secretária de Defesa e o ex-governador do Arkansas Mike Huckabee para o cargo de embaixador dos Estados Unidos em Israel. Huckabee já declarou que é a favor da construção de mais assentamentos na Cisjordânia, território dividido pelos Acordos de Oslo, em 1992, entre Israel e a Autoridade Palestina.
Israel já demonstrou que está feliz com as indicações. Em entrevista ao Estadão, o embaixador de Israel no Brasil, Daniel Zonshine, apontou que “a vida será mais confortável para Israel com Trump em Washington”.
O primeiro mandato do presidente eleito foi tremendamente pró-Israel. O republicano reconheceu Jerusalém como a capital de Israel e realocou a embaixada americana na cidade, reconheceu também as Colinas do Golan como território israelense e costurou os Acordos de Abraão, uma série de tratados de paz entre Israel e Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão.
Saiba mais
Chowdhury admite que se frustrou com as escolhas de Trump para seu gabinete. Ele queria Richard Grenell, o ex-diretor de inteligência que intermediou seu encontro com o presidente eleito, como secretário de Estado. “Eu tenho alguns problemas com as escolhas de Trump para o seu gabinete. Muitos são pessoas que gostam de guerras e não de paz. Grenell teria sido melhor do que Rubio, ele entende de diplomacia”.
Apesar das criticas, o fundador do grupo “Muçulmanos por Trump” discorda de que o governo do presidente eleito tende a ser pró-Israel. “Seria ingênuo para uma pessoa que apoia guerras falar que Trump está do lado dela. Ele não quer guerras, ele é o líder do movimento ‘América em primeiro lugar’ e é isso que queremos”.
Polêmicas
Para Sally Howell, da Universidade de Michigan, a parcela da comunidade árabe e muçulmana que decidiu apoiar Trump desconsiderou uma série de declarações polêmicas do presidente eleito sobre muçulmanos, além da controversa decisão executiva que bloqueou e entrada de refugiados sírios nos EUA e proibiu o ingresso de cidadãos de países do Oriente Médio e africanos que tem maioria muçulmana, como Iraque, Irã, Síria, Líbia, Somália, Iêmen e Sudão em 2017.
“Não acredito que Trump esteja preocupado com esta comunidade. Ele queria os votos e conseguiu, mas as indicações de seu gabinete mostram qual será a posição dele. É muito frustrante ver as pessoas com essa amnésia sobre como foi o primeiro mandato do republicano”, completa a especialista.
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