Como Trump tenta consolidar seu poder sobre o Judiciário, o Congresso e todo o ‘sistema’ dos EUA

Interpretação expansiva do poder presidencial se tornou a característica definidora do segundo mandato do republicano

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Por Erica L. Green (The New York Times), Maggie Haberman (The New York Times) e Zolan Kanno Youngs (The New York Times)

O presidente Donald Trump pediu que um juiz federal que buscou informações básicas sobre seus esforços de deportação sofra impeachment, em meio à crescente preocupação sobre um conflito constitucional. Outro juiz concluiu que os esforços de Trump para fechar uma agência federal provavelmente violaram a Constituição e retiraram autoridade do Congresso. O presidente também foi acusado de exceder sua autoridade executiva mais uma vez ao demitir dois democratas de uma comissão comercial independente.

E isso apenas terça-feira.

Quase dois meses após assumir seu segundo mandato, Trump tem tentado consolidar controle sobre o Judiciário, o Congresso e até mesmo, de certas maneiras, a sociedade e a cultura dos Estados Unidos.

Donald Trump assina decretos na Casa Branca. Medidas do republicano testam limites do poder presidencial e tensionam com o Judiciário. Foto: Eric Lee/The New York Times

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Sua interpretação expansiva sobre o poder presidencial se tornou a característica definidora de seu segundo mandato, um esforço agressivo em várias frentes para afirmar autoridade executiva para reformular o governo, conduzir as políticas a novas direções e erradicar o que ele e seus apoiadores veem como um viés progressista profundamente arraigado.

“Nunca vimos um presidente tentar de forma tão abrangente arrogar e consolidar tanto poder dos outros poderes, muito menos fazê-lo nos primeiros dois meses de sua presidência”, disse o professor Stephen Vladeck, do Centro de Direito da Universidade de Georgetown.

O Congresso, controlado pelos republicanos, cedeu algumas de suas principais funções a Trump, entregando elementos da autoridade sobre gastos do Poder Legislativo à Casa Branca e saindo do caminho enquanto agências fundadas pelo Congresso são fechadas. O presidente ameaçou “liderar a acusação” contra a reeleição do raro republicano que ousar desafiar sua agenda, e o partido se curva à sua vontade a cada passo.

Trump desmantelou medidas independentes de pesos e contrapesos, demitiu inspetores-gerais e instalou seus partidários no Departamento de Justiça, dispostos a colocar em prática sua campanha de vingança. Trump colocou na mira escritórios de advocacia privados com conexões com indivíduos que ele considera inimigos políticos e intimidou líderes empresariais anteriormente céticos ou hostis a prometer-lhe apoio público, chegando ao ponto de imprimir seu selo “MAGA” no setor privado ao tentar ditar práticas de contratação.

Os esforços de Trump para remodelar instituições segundo sua imagem e semelhança não se limitam ao governo e à política. Trump tem tentado disseminar influência por meio das artes também, ao tornar-se presidente do Centro Kennedy para Artes Performáticas, em Washington.

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Mas o alvo mais recente de Trump — no Judiciário — é descrito por estudiosos e historiadores da Constituição possivelmente como a disputa de poder mais alarmante até aqui.


O governo Trump ignorou uma ordem do juiz James Boasberg, do Tribunal Distrital Federal em Washington, que buscou suspender a deportação de um grupo de imigrantes, muitos dos quais com pouco ou nenhum acesso a devido processo legal. Autoridades do governo disseram que a maioria dos imigrantes era da Venezuela e que todos eram afiliados a gangues. Mas as autoridades não divulgaram seus nomes nem provas de seus supostos crimes.

Trump pediu o impeachment do juiz Boasberg, argumentando nas redes sociais que, “se um presidente não tem o direito de expulsar assassinos e outros criminosos do nosso país porque um juiz lunático da esquerda radical quer assumir o papel de presidente, então nosso país está em apuros e destinado ao fracasso!”.

A Casa Branca não respondeu a um pedido de comentário enviado pela reportagem na noite da quarta-feira.

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Trump nunca foi consistente em seus ataques ao Judiciário em geral e aos juízes em particular. Na semana passada, durante um discurso no Departamento de Justiça, o presidente sugeriu que críticas à juíza Aileen Cannon, da Flórida, que rejeitou o caso sobre documentos confidenciais contra ele no verão passado, podem ser ilegais.

Mas Trump aplica a mesma lógica de justiça a processos judiciais e eleições presidenciais: as votações são justas quando ele vence, não quando ele perde.

De uma forma ou de outra, Trump tem sido objeto de processos judiciais que remontam à década de 70, enquanto desenvolvedor imobiliário privado e, posteriormente, enquanto candidato e presidente. Quando perdeu processos, ele tendeu a atacar os juízes em questão classificando-os como ativistas partidários ou coisa pior.

Quando vence, ele elogia o juiz em questão.

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Os aliados de Trump dizem que ele está usando seu poder para colocar em prática a agenda que prometeu durante a campanha, e que está executando o Artigo 2.º da Constituição, que define os poderes do presidente.

“O presidente Trump está fazendo o impensável em Washington — está fazendo o que disse aos americanos que faria; e está fazendo rápido”, disse Mike Davis, fundador do Article III Project, um grupo conservador de defesa de direitos.

Mike Davis, fundador do Article III Project, um grupo de defesa conservador, está entre os aliados de Trump que dizem que ele usando o poder para avançar com agenda vitoriosa nas eleições. Foto: Eric Lee/The New York Times

Ainda assim, algumas vozes tradicionalmente de direita expressam preocupação.

A página de editoriais do Wall Street Journal, por exemplo, afirmou que Trump fez campanha para deportar membros de gangues, “mas ainda é preocupante ver autoridades dos EUA parecerem desdenhar da lei pretendendo mantê-la”. O New York Post publicou uma manchete em sua página de opinião que disse: “Trump, não alimente o perigoso anseio de atacar o estado de direito”.

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Ambos os jornais fazem parte do império de meios de comunicação de Rupert Murdoch, um aliado intermitente de Trump.

O Judiciário, criado para fornecer pesos e contrapesos aos Poderes Executivo e Legislativo, raramente enfrentou um desafio tão aberto, afirmam especialistas. Alguns dos principais tenentes de Trump sugeriram que ele tem direito de desafiar ordens judiciais.

“Os juízes não têm permissão para controlar o poder legítimo do Executivo”, declarou o vice-presidente JD Vance no mês passado.

O vice-presidente JD Vance sugeriu que Trump tem o direito de desafiar ordens judiciais. Foto: Kenny Holston/The New York Times

“Não me importa o que os juízes pensam — não me importa o que a esquerda pensa”, disse esta semana o czar da fronteira de Trump, Tom Homan, durante uma aparição no programa de TV “Fox & Friends”.

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Os aliados de Trump apontam com frequência que ele está fazendo o que disse que faria durante sua campanha, quando sua plataforma política, a Agenda 47, estabeleceu um projeto de poder presidencial maximalista. Trump e seus conselheiros acreditam que o presidente foi bloqueado em seu primeiro mandato por meio de investigações e de uma burocracia federal resistente.

Alguns de seus aliados mais próximos, incluindo Russell Vought, atual e antigo diretor do Escritório de Gestão e Orçamento de Trump, passaram anos se preparando para a possibilidade de um segundo mandato presidencial de Trump, buscando frestas de independência no poder Executivo que pudessem ser aproveitadas.

Vought e outros aliados de Trump defenderam uma doutrina chamada “executivo unitário”, uma teoria jurídica segundo a qual todo o poder Executivo emana do presidente.

“O grande desafio que um presidente conservador enfrenta é a necessidade existencial de um uso agressivo dos vastos poderes do Executivo para devolver o poder — incluindo o poder atualmente detido pelo Executivo — ao povo americano”, escreveu Vought no projeto conservador para uma transição presidencial republicana, o Projeto 2025. Ele acrescentou que seria preciso “ousadia para dobrar ou quebrar a burocracia segundo a vontade do presidente”.

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Uma das dezenas de ordens executivas que Trump assinou desde que assumiu o cargo, que pedia domínio sobre “agências reguladoras independentes”, afirmava objetivos semelhantes. “Para que o governo federal seja verdadeiramente confiável para o povo americano, os funcionários que exercem vasto poder Executivo devem ser supervisionados e controlados pelo presidente eleito do povo”, afirma a ordem executiva.

Russell Vought, nomeado por Trump para liderar o Escritório de Gestão e Orçamento, foi o principal arquiteto do documento conservador Projeto 2025, que serviu de modelo para a estratégia. Foto: Haiyun Jiang/The New York Times

Kenneth Cuccinelli, ex-secretário-adjunto interino de Segurança Interna no primeiro governo Trump e coautor do Projeto 2025, disse que os indivíduos que criticam o uso que Trump faz do Poder Executivo “fazem isso principalmente para enfraquecer a presidência e este presidente em particular sob o pretexto de uma ‘sabedoria convencional’ sem nenhum fundamento constitucional”.

Quem critica a maneira que Trump aborda sua autoridade executiva afirma que a teoria do executivo unitário não significa que tudo o que o presidente faz é legal.

A historiadora Ruth Ben-Ghiat, da Universidade de Nova York, que estuda o fascismo e o autoritarismo, destacou o que ela classifica como alguns dos comportamentos mais preocupantes de Trump: a expansão do poder do Executivo, a politização dos demais poderes do Estado, o desmantelamento de uma estrutura de supervisão e responsabilização e ataques contra aqueles que buscam responsabilizar o presidente e seus aliados.

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“O beneficiário final dos atos que estamos vendo acontecer, seja em relação ao Judiciário ou outras agências, é o próprio Trump, porque essas ações constituem uma expansão de seu poder pessoal”, disse ela. “A escala e a velocidade do que está em andamento são assustadoras.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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