Como um avião da Otan cumpre uma tarefa arriscada: rastrear e se esquivar da Rússia no Mar Báltico

A missão era parte de um novo programa voltado para suspeitas de sabotagem russa. Nenhum caso ocorreu desde que a Otan iniciou as patrulhas

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Por Michael Schwirtz (The New York Times)
Atualização:

O avião francês de patrulha naval baixou de altitude rapidamente através das nuvens, nivelando-se 274 metros acima do Mar Báltico, praticamente roçando as ondas. O alvo era um navio de guerra russo que havia aparecido a bombordo da aeronave, um ponto cinza escuro contra um horizonte cinza claro.

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O avião, um Atlantique 2 da Marinha francesa, foi projetado para caçar submarinos e outras embarcações de guerra inimigas, mas naquele dia seu compartimento de torpedos estava vazio, suas únicas armas eram uma câmera de alta resolução e outros instrumentos de vigilância sofisticados. O objetivo era observar e ser notado observando.

“Temos de mostrar que estamos aqui”, disse Romain, o subcomandante da aeronave.

Membros da tripulação a bordo do Atlantique 2 monitoram uma série de telas de computador mostrando dados de satélite e radar junto com imagens em tempo real transmitidas por uma câmera de alta resolução sobre o Mar Báltico no dia 19 de março de 2025. A tarefa do avião de patrulha naval francês era parte de um novo programa voltado para suspeitas de sabotagem russa Foto: James Hill/NYT

O Mar Báltico, um lugar que nunca fica totalmente tranquilo, com litorais fortemente militarizados pelas Marinhas do norte da Europa e da Rússia, tornou-se um teatro cada vez mais tenso no conflito entre Moscou e o Ocidente.

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Posteriormente durante aquela patrulha, forças russas tentaram bloquear o GPS do avião e, num determinado momento, outro navio de guerra russo travou alvo no avião com o radar, um aviso de que poderia abrir fogo. Navios de guerra russos e um submarino eram visíveis no mar.

A principal razão, porém, pela qual o avião da Marinha francesa patrulhava estava debaixo d’água. Suspeita-se que navios comerciais danificaram cabos de comunicação submarinos críticos e um gasoduto no Mar Báltico três vezes nos últimos 18 meses. Autoridades europeias temem que tenham ocorrido atos de sabotagem, e o Kremlin é tido como o principal suspeito, apesar da ausência de evidências concretas.

Em resposta, a Otan anunciou em janeiro o início de um novo programa chamado Sentinela Báltica, que aciona patrulhas marítimas e aéreas no Mar Báltico. Embora dependam principalmente dos membros da Otan com litorais bálticos, como Suécia, Finlândia e Polônia, franceses e britânicos também participam, assim como fuzileiros navais americanos instalados na Finlândia.

Um navio da Marinha Russa visto no monitor de um Atlantique 2 da Marinha Francesa patrulhando o Mar Báltico no dia 19 de março de 2025 Foto: James Hill/NYT

Renovação da Otan

Em seu início, a Sentinela Báltica foi saudada como um exemplo de renovação da Otan e, até aqui, a missão continuou ininterruptamente — apesar dos ataques frequentes do presidente Donald Trump à aliança militar de 76 anos e de suas propostas amigáveis ao seu oponente mais estridente, o presidente russo, Vladimir Putin.

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Desde o início da Sentinela Báltica — anunciada dias antes de Trump assumir o cargo — nenhum outro caso de suspeita de sabotagem ocorreu no Mar Báltico.

“Isso indica a capacidade da aliança de responder rapidamente a uma desestabilização desse tipo”, disse o general do Exército dos EUA Christopher Cavoli, comandante superior aliado da Europa, sobre a Sentinela Báltica, em janeiro, “e mostra a força da nossa unidade diante de qualquer desafio”.

Embora oficialmente o Sentinela Báltica não seja direcionado a nenhum país em particular, a Rússia é claramente a principal preocupação. Isso ficou evidente durante toda a patrulha deste mês a bordo da aeronave da Marinha francesa. No início da patrulha, o avião voou baixo para observar os movimentos do primeiro navio de guerra russo que encontrou. A intenção não é provocar os russos, disse o subcomandante Romain, embora ocasionalmente as coisas esquentem. Como precaução, cada membro da tripulação recebe um paraquedas caso seja necessário abandonar a aeronave durante o voo.

Um membro da tripulação do Atlantique 2 olha um manual sobre navios que navegam sobre o Mar Báltico  Foto: James Hill/NYT

“É uma situação delicada”, disse Romain, falando sob a condição de ser identificado apenas seu primeiro nome e patente, de acordo com as regras militares francesas.

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Missão

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Durante a missão de 14 horas, cerca de uma dúzia de tripulantes se espremiam numa cabine apertada, com uma série de monitores computadorizados mostrando dados de satélite e radar. O avião decolou por volta das 6h, de um aeroporto francês, atravessou o Báltico da costa norte da Alemanha até o Golfo da Finlândia e então retornou.

Mas foi a base naval de Baltiisk, sede da Frota do Báltico da Rússia o foco da atenção da tripulação. O avião tinha entrado no alcance da base, localizada no enclave russo de Kaliningrado, havia apenas alguns minutos quando os instrumentos de bordo começaram a mostrar sinais de interferência no GPS.

Abaixo, um submarino de ataque russo e várias fragatas navegavam. Um tripulante deu um zoom nas embarcações com a câmera do avião, enquanto outro folheava um pesado manual de referência de embarcações navais conhecidas tentando identificá-las. A câmera também deu zoom na base, onde mais embarcações estavam atracadas.

Tripulação do Atlantique 2 monitora a atividade de navios russos no Mar Báltico  Foto: James Hill/NYT

Num determinado momento, o radar de um navio russo travou mira brevemente no avião francês, que permaneceu em águas internacionais. Embora isso pudesse ser uma indicação de que o navio estava se preparando para atirar, os tripulantes disseram que provavelmente foi uma tentativa de aferir a altitude do avião. De qualquer modo, os militares franceses expressaram indignação posteriormente.

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“Essa intimidação faz parte de ações desnecessariamente agressivas que impedem a liberdade de navegação”, afirmou uma mensagem postada no perfil do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas da França na rede social X.

Resposta

Desde a invasão russa em grande escala à Ucrânia, em 2022, a Europa tem tido dificuldade para responder a uma série de ocorrências incomuns, incluindo suspeitas de ataques incendiários e explosões, assim como conspirações de assassinato, que os serviços de inteligência avaliam cada vez mais como parte de uma campanha de sabotagem do Kremlin. Embora o Kremlin tenha negado que seus agentes realizem operações de sabotagem, autoridades de inteligência revelaram no outono passado que os incêndios em dois centros de transporte da DHL no Reino Unido e na Alemanha foram parte de uma conspiração russa para colocar dispositivos incendiários a bordo de aviões de carga.

O rompimento dos cabos submarinos no Báltico finalmente levaram a Otan a agir.

No fim de dezembro, soldados finlandeses desceram de helicópteros e tomaram o controle de um petroleiro chamado Eagle S, que autoridades suspeitavam ter cortado cabos de transmissão de eletricidade e de dados que ligavam a Finlândia e a Estônia. A resposta militar robusta se seguiu a episódios semelhantes em navios civis danificando cabos submarinos. Um mês antes, um graneleiro de bandeira chinesa chamado Yi Peng 3 foi forçado a ancorar no Báltico, suspeito de romper dois cabos submarinos de fibra óptica. A ação se assemelhou a um caso de um ano antes, quando um navio de carga com bandeira de Hong Kong pareceu danificar um gasoduto entre a Finlândia e a Estônia.

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Um membro da tripulação na parte traseira de um avião Atlantique 2 da Marinha Francesa tirando fotos de navios que passam sobre o Mar Báltico Foto: James Hill/NYT

Nenhuma evidência concreta indicou que as tripulações dos navios danificaram intencionalmente a infraestrutura submarina, muito menos que o Kremlin os instruiu a fazê-lo. Os navios tinham bandeiras de países diferentes, nenhum ia para a Rússia, tinham proprietários diferentes e seguiam em direções diferentes. Em outros casos, uma suspeita inicial de sabotagem não se confirmou. Em janeiro, autoridades apreenderam um navio de carga suspeito de danificar um cabo de comunicação que ligava a Suécia e a Letônia. Investigadores determinaram posteriormente que o mau tempo combinado e inabilidades em navegação provavelmente causaram os danos.

Modus operandi

O que liga os outros casos é um modus operandi: todos os navios pareciam ter lançado suas âncoras no meio da viagem, arrastando-as pelo fundo do mar de uma forma que danificou a infraestrutura crítica.

Especialistas em transporte marítimo dizem que é altamente improvável que os membros da tripulação não percebessem e imediatamente comunicassem o ocorrido. Essa conexão foi o suficiente para convencer alguns líderes de que algo mais nefasto do que simples negligências ocorreu.

“Devemos ter em mente que a Rússia não é onipotente; a Rússia não é capaz de tudo”, disse o chefe de inteligência da Finlândia, Juha Martelius, em comentários televisionados em janeiro. “Mas é capaz de fazer muita coisa. E, portanto, é importante para nós, tanto nacionalmente quanto na cooperação internacional, estarmos vigilantes sobre o que acontece no Mar Báltico.”

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O Kremlin rejeitou as acusações de que a Rússia promoveu uma campanha de sabotagem no Mar Báltico qualificando-as como “absurdas”.

Especialistas em forças armadas e navegação elogiaram amplamente a operação Sentinela Báltica, mas alguns afirmara, que a operação fez muito pouco. O Mar Báltico é vulnerável, dado o acesso da Rússia por vários portos, mas também é, muitos apontam, “um lago da Otan”, costeado por oito membros da aliança e, portanto, muito mais fácil de proteger. É mais difícil proteger infraestruturas críticas em outros lugares, particularmente o Mar do Norte com seus parques eólicos e infraestruturas petrolíferas, bem como cabos cruzando o Oceano Atlântico a partir da costa da Irlanda.

A Sentinela Báltica também faz pouco para interferir na chamada frota russa “nas sombras”, um conjunto de petroleiros antigos que, segundo autoridades ocidentais, Moscou usa para transportar clandestinamente petróleo bruto russo ao redor do mundo. A frota é essencial para a capacidade da Rússia de financiar sua guerra na Ucrânia, e as nações ocidentais têm sido amplamente incapazes de fazer algo a respeito. Uma exceção foi o navio que os comandos finlandeses tomaram em janeiro. Autoridades disseram que a embarcação tinha características dos navios da frota clandestina.

“A Rússia está usando uma frota de petroleiros clandestinos para obter suas receitas e contornar sanções”, disse Justin Crump, presidente-executivo da empresa privada de inteligência Sibylline e especialista em segurança marítima. “Nós sabemos que eles estão fazendo isso, sabemos exatamente como estão fazendo e, ainda assim, não temos permissão para impedir. Se fôssemos sérios, nós impediríamos. Esse é o ingrediente que falta.”

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Um piloto de um avião Atlantique 2 da Marinha Francesa patrulha o Mar Báltico Foto: James Hill/NYT

A bordo do Atlantique 2 francês, disse Romain, as tripulações monitoram proximamente os navios suspeitos de operar como parte da frota clandestina, mas os militares reconheceram que há pouco que possam fazer além de observá-los.

“Não há um procedimento para detê-los em águas internacionais”, disse ele. “Não há acordos específicos para abordá-los.”

Em alguns momentos durante a patrulha o comandante do avião recebeu relatos sobre navios se comportando de forma suspeita. Um havia deixado recentemente o porto russo de Ust-Luga e outro estava indo para o porto russo de Primorsk. Em cada caso, o comandante entrou em contato com os navios e os questionou sobre sua jornada.

“Vocês estão cientes da atividade Sentinela Báltica, da Otan?”, perguntou o comandante pelo rádio a cada uma das tripulações e então perguntou se alguém tinha testemunhado alguma atividade suspeita no mar. Todos responderam não. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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