Como uma empresa da China vendeu satélites de espionagem para mercenários russos do Grupo Wagner

Após um longo trabalho investigativo, a AFP conseguiu esclarecer os vínculos entre o grupo Wagner e as empresas chinesas que facilitaram informações obtidas por satélite aos mercenários russos

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Por Redação

O grupo paramilitar russo Wagner, outrora presente na Ucrânia e ativo na África, assinou no final de 2022 um contrato com uma empresa chinesa para adquirir dois satélites de observação e imagem, o que lhe confere um poder de Inteligência sem precedentes, segundo um documento consultado pela AFP.

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“Diga-me quem tem satélites de reconhecimento neste país além da EPSD [Empresa Provedora de Serviços de Defesa] Wagner”, disse ironicamente seu chefe, Ievgueni Prigozhin, em abril, no Telegram, referindo-se às capacidades espaciais limitadas do Exército regular russo.

Após um longo trabalho investigativo, a AFP conseguiu esclarecer os vínculos entre o grupo Wagner e as empresas chinesas que facilitaram informações obtidas por satélite aos mercenários russos.

Um retrato do ex-chefe do Grupo Wagner Ievgeni Prigozhin em um memorial informal em Moscou, Rússia  Foto: Alexander Zemlianichenko / AP

Segundo uma fonte de segurança europeia, algumas destas imagens ajudaram-no, inclusive, a se preparar para seu motim em junho, a maior ameaça que o presidente russo, Vladimir Putin, enfrentou em duas décadas no poder.

E levanta uma dúvida: o que a China sabia sobre os projetos do grupo Wagner contra seu aliado russo?

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De acordo com um contrato comercial redigido em inglês e russo e assinado em 15 de novembro de 2022, a empresa Beijing Yunze Technology Co. Ltd vendeu, por 235 milhões de ienes (em torno de 31 milhões de dólares, ou 164 milhões de reais, na cotação da época) a empresa Nika-Frut, que fazia parte das companhias do ex-chefe do grupo mercenário, dois satélites de observação de altíssima resolução (75 cm) pertencentes a empresa chinesa do setor espacial Chang Guang Satellite Technology (CGST).

O acordo também prevê o fornecimento de imagens da constelação CGST, mediante solicitação. Segundo a fonte de segurança europeia, isso permitiu ao Wagner obter imagens da Ucrânia e da África (Líbia, Sudão, República Centro-Africana e Mali, por exemplo), onde operam seus mercenários.

Mercenários russos do Grupo Wagner partipam da segurança de militares da República Centro Africana durante um desfile em Bangui, República Centro Africana, em maio de 2019  Foto: Ashley Gilbertson / NYT

Um motim em formação

A empresa russa chegou a encomendar cerca de 80 imagens do território russo no final de maio de 2023, especificamente do trajeto entre a fronteira ucraniana e Moscou que os mercenários percorreram no mês seguinte durante seu breve motim, segundo esta fonte.

Este motim, frustrado em 24 horas, consumou a ruptura definitiva entre Putin e Prigozhin, semanas antes de sua morte. A AFP não pôde verificar de forma independente esta informação, que não aparece no contrato citado.

Mas este vazamento de informação poderia explicar por que os serviços de Inteligência dos Estados Unidos sabiam que o chefe de Wagner preparava um motim, como revelou a CNN no final de junho. Seus homólogos franceses também estavam cientes, segundo o jornal L’Opinion.

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Foto tirada em 5 de outubro de 2023 mostra detalhe de um contrato assinado em 15 de novembro de 2022, entre a empresa Beijing Yunze Technology Co Ltd e a Nika-Frut, empresa então parte do império comercial de Prigozhin, para a aquisição de dois dispositivos de alta resolução satélites de observação pertencentes a empresa chinêsa Chang Guang Satellite Technology CGST Foto: AFP/ AFP

No momento, o grupo Wagner se encontra em fase de reorganização, mas boa parte das suas lucrativas atividades no exterior poderiam permanecer sob a égide de outros grupos paramilitares, ou de uma nova liderança controlada por Moscou.

Segundo informações coletadas pela AFP, o contrato continua vigente e prevê a aquisição de dois satélites chineses, JL-1 GF03D 12 e JL-1 GF03D 13, em órbita a 535 quilômetros de altitude.

Por meio deste contrato, o grupo também adquiriu direitos sobre os satélites restantes da constelação operada pela chinesa CGST, que conta, hoje, com cerca de 100, e espera atingir 300 unidades até 2025.

O acordo estabelece que, após receber cada encomenda de seu cliente, “o fornecedor orientará os satélites” com base nas imagens solicitadas, antes que estas sejam enviadas para uma estação terrestre para processamento e fornecimento. “O cliente baixará os dados da imagem da nuvem” e poderá retê-los por sete dias.

Até o momento, os grupos Nika-Frut e Beijing Yunze não responderam às perguntas da AFP.

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Capacidades limitadas russas

Por que o Exército russo não podia fornecer diretamente essas imagens ao grupo Wagner?

“A Rússia não tem esse tipo de capacidade. Seu programa de satélites não tem funcionado bem recentemente”, explica à AFP Gregory Falco, pesquisador da Universidade Cornell, em Nova York. O Grupo Wagner demonstrou várias vezes, no entanto, ter uma capacidade de Inteligência superior à das Forças Armadas russas, acrescenta o especialista.

O fornecimento de imagens de satélite ao Grupo Wagner pela China não surpreende o governo de Washington. O Departamento do Comércio dos EUA decidiu, em 24 de fevereiro de 2023, incluir a Beijing Yunze Technology Co. Ltd e a corretora de imagens de satélite Head Aerospace Technology em sua lista de sanções.

“Essas empresas contribuíram significativamente” para ajudar o Exército russo na Ucrânia e “estão envolvidas em atividades contrárias à segurança nacional dos Estados Unidos e aos [seus] interesses”, segundo um documento oficial on-line.

Em 12 de abril de 2023, Washington também sancionou “80 entidades e indivíduos que continuam permitindo e facilitando a agressão russa”.

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O presidente da Rússia, Vladimir Putin, discursa para unidades do exército russo em Moscou, Rússia  Foto: Sergei Guneyev / AP

Entre os primeiros está a Head Aerospace Technology, por distribuir “imagens de satélite de locais na Ucrânia para empresas afiliadas à EPSD Wagner e Ievgueni Prigozhin”.

A AFP conseguiu verificar a identidade do signatário do contrato do lado russo: Ivan Mechetin. Segundo várias fontes, este homem de 40 anos é o diretor-geral da empresa Nika-Frut, subsidiária do grupo Concord, liderado por Prigozhin.

“A Nika-Frut está registrada como uma empresa de comércio de alimentos, mas faz muitas outras coisas. É um modelo conhecido no conglomerado de Prigozhin”, explica Lou Osborn, da ONG de pesquisa digital All Eyes on Wagner (AEOW).

Segundo investigações realizadas com fontes de livre acesso, a Nika-Frut enviou várias encomendas de produtos alimentares à República Centro-Africana em 2019 para a mineradora Lobaye Invest.

Esta empresa é uma subsidiária histórica da M-Finans, que Prigozhin controlou no passado e que está ligada às operações do grupo Wagner neste país africano. A Lobaye Invest está sujeita a sanções europeias desde fevereiro.

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De acordo com a AEOW, Mechetin também fez carreira em uma unidade de apoio militar que forneceu armas e munições ao GRU, a Inteligência militar russa, durante a invasão da península ucraniana da Crimeia em 2014.

A Beijing Yunze negocia tecnologias de defesa em nome de Pequim. A empresa Head Aerospace, por sua vez, tem, segundo vários especialistas, um acordo de comercialização com a fabricante de satélites CGST.

A CGST “é o monstro das operações espaciais chinesas. Fez muita espionagem industrial”, comenta Gregory Falco, evocando as capacidades de resolução “espetaculares” dos seus satélites.

Sua centena de satélites também permite que eles passem várias vezes ao dia pelo mesmo ponto, o que oferece um nível de informação muito atualizado.

O que Pequim sabia?

Uma das principais dúvidas é se as autoridades de Pequim sabiam que Wagner encomendou as imagens de satélite do território russo desde o final de maio, semanas antes de seu motim contra Putin.

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Segundo a fonte de segurança europeia, essas imagens interessavam ao quartel-general das operações russas na Ucrânia, em Rostov-on-Don, que Wagner assumiu sem combates. Interessavam também a outras cidades a caminho de Moscou e a outros locais de interesse militar, como Grozny, reduto do líder checheno pró-Putin, Ramzan Kadyrov.

A dúvida que fica é: os altos escalões do poder chinês sabiam que Wagner solicitava essas informações sensíveis, quando era de conhecimento geral que Prigozhin mantinha relações ruins com o chefe do Estado-Maior Russo, Valery Gerasimov, e com o ministro da Defesa, Sergei Shoigu?

O Ministério das Relações Exteriores da China disse à AFP que “não tinha conhecimento”.

O presidente da Rússia, Vladimir Putin, e o presidente da China, Xi Jinping, posam para foto após a assinatura de acordos entre os dois países em Moscou, Rússia  Foto: Evgenia Novozhenina/ REUTERS

“A China sempre se mostrou responsável com suas exportações e tomou medidas prudentes, aplica rigorosamente leis e regulamentos nacionais e respeita suas obrigações internacionais”, acrescentou.

Para um especialista europeu do setor espacial, que pediu anonimato devido à sensibilidade do assunto, é “evidente” que as mais altas autoridades chinesas são informadas sobre as encomendas sensíveis feitas à CGST.

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“Não há dúvida de que isso chega diretamente” ao poder central chinês, estima.

Em tese, a lei chinesa confirma que um contrato como esse não pode ser cumprido em segredo. De acordo com o artigo 7 da lei sobre Inteligência nacional, promulgada em 2017, “todas as organizações e cidadãos devem apoiar, ajudar e cooperar com os esforços dos serviços nacionais de Inteligência”.

Mas outros especialistas são mais cautelosos.

“O nível de centralização da China é superestimado. Qualquer operação pode ser alvo de competição entre líderes, administrações, unidades da mesma administração. Isso causa opacidade, retenção e até sabotagem”, disse Paul Charon, especialista sobre China do Instituto de Pesquisa Estratégica da Escola Militar (IRSEM), em Paris.

Outra hipótese seria que os chineses, como muitos outros, “não entenderam o que estava acontecendo nas semanas anteriores ao motim”.

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“As imagens solicitadas sobre a Rússia também poderiam estar relacionadas com a Ucrânia, com a identificação de falhas no dispositivo russo. É possível que os objetivos por trás do pedido não tenham sido questionados”, acrescentou./AFP

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