Como uma republicana influente se uniu a Kamala Harris para rejeitar candidatura de Trump

Liz Cheney, ex-congressista, convoca conservadores a recusar a ‘crueldade depravada’ do republicano ao apoiar vice-presidente

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Por Erica L. Green (The New York Times) e Katie Rogers (The New York Times)

Foi uma manobra política incomum e improvável para uma campanha eleitoral: uma vice-presidente democrata concorrendo à Presidência ao lado de uma ex-congressista republicana, filha de um ex-vice-presidente conservador. O cenário foi uma pequena cidade, famosa por ser o berço do Partido Republicano, em um estado-chave na disputa eleitoral.

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Na quinta-feira, 3, a vice-presidente Kamala Harris e a ex-deputada Liz Cheney, a republicana mais proeminente a endossar sua campanha, viajaram para Ripon, no centro de Wisconsin, onde reuniões em 1854 ajudaram a formar o Partido Republicano.

A apenas 1,6 km de distância de uma sala na escola onde essas reuniões foram realizadas, as duas criticaram o ex-presidente Donald Trump por seu papel em incitar o motim no Capitólio em 6 de janeiro de 2021, e alertaram sobre a ameaça que ele representa para a democracia caso retorne ao poder.

A vice-presidente dos Estados Unidos e candidata presidencial democrata, Kamala Harris, conversa com Liz Cheney, ex-congressista e figura importante do Partido Republicano, em um comício em Ripon, Wisconsin  Foto: Haiyun Jiang/NYT

Liz Cheney disse que, em novembro, colocar o patriotismo à frente do partidarismo não deve ser apenas uma aspiração —”é nosso dever”.

Suas observações, feitas de forma contida, foram ao mesmo tempo uma crítica a Trump e um endosso a Kamala. Ela descreveu a candidatura do republicano como “uma ameaça inédita” e convocou os conservadores a se unirem em uma “missão urgente” para eleger a democrata, rejeitando a “crueldade depravada” atribuída ao ex-presidente.

“Eu sei que ela será uma presidente que defenderá o estado de direito”, disse Cheney sobre Kamala, “e sei que ela será uma presidente que pode inspirar todas as nossas crianças e, se eu posso dizer, especialmente nossas meninas.”

Liz Cheney e Kamala Harris participam de um comício em Ripon, Wisconsin, onde o Partido Republicano foi criado  Foto: Haiyun Jiang/NYT

A aparição conjunta foi um dos exemplos mais marcantes de como Kamala se esforçou para se apresentar como uma presidente unificadora que valoriza o pragmatismo acima do partidarismo. Seu objetivo principal é conquistar eleitores moderados e independentes que serão cruciais para lhe garantir uma vitória decisiva.

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No evento, centenas de pessoas se reuniram em um gramado perto do prédio principal do campus universitário adornado com bandeiras americanas e cartazes que diziam: “País acima do partido”. Em vários momentos do programa, a multidão aplaudiu, “Obrigado, Liz” e “Ka-ma-la”.

Ambas falaram sobre a importância do local onde os líderes fundadores do Partido Republicano se reuniram pela primeira vez, unindo-se em sua oposição à escravidão. “Liz Cheney está nas mais profundas tradições de seus líderes”, disse Kamala.

A vice-presidente afirmou que o endosso de Cheney tinha “significado especial” e que, embora as duas políticas possam não concordar em muitas coisas, elas compartilham um amor pelo país e pelos ideais democráticos. Repetindo sua promessa de ser uma presidente para todos, independentemente do partido, Kamala disse que jurou defender a Constituição seis vezes em sua carreira.

Liz Cheney. ex-congressista e filha do ex-vice-presidente Dick Cheney, discursa em um comício em Ripon, Wisconsin  Foto: Mark Schiefelbein/AP

“O presidente dos Estados Unidos não deve olhar para o nosso país através da lente estreita da ideologia ou do partidarismo mesquinho ou do interesse próprio”, afirmou Kamala. “Ou como um instrumento para suas próprias ambições. Nossa nação não é um espólio a ser conquistado. Os Estados Unidos da América são a maior ideia que a humanidade já concebeu.”

Ela acrescentou: “E assim, diante daqueles que colocariam em perigo nosso magnífico experimento, pessoas de todos os partidos devem se unir.”

Ameaça

A campanha de Kamala usou o endosso de Cheney, e de uma série de outros republicanos, para atacar Trump como uma ameaça à República, e para neutralizar as acusações de sua campanha de que a vice-presidente é uma “esquerdista radical”.

Trump respondeu nas primeiras horas da sexta-feira, 4, escrevendo em sua rede social que Cheney era uma “belicista de QI baixo” e que ela e Kamala eram “um casal patético” que estava “sofrendo gravemente do Síndrome de Desprezo por Trump”.

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O ex-presidente dos Estados Unidos e candidato presidencial republicano, Donald Trump, participa de um evento no Clube Econômico de Nova York, Estados Unidos  Foto: Alex Brandon/AP

A campanha de Kamala buscou reformular sua imagem política como uma californiana de esquerda, minimizando algumas das posições progressistas que ela tinha quando concorreu pela primeira vez à Presidência na corrida de 2020.

Durante a campanha atual, ela se autodenominou “pragmática e capitalista”, falou mais abertamente sobre questões que agradam à base conservadora, como a posse de armas, e sugeriu que nomearia um republicano para seu gabinete, se eleita.

Em uma corrida presidencial que pode ser decidida por margens mínimas, Wisconsin parece ser uma disputa acirrada entre Kamala e Trump. O presidente Joe Biden venceu o estado por apenas 20.600 votos em 2020, e uma pesquisa recente do The New York Times e do Siena College mostrou a democrata com 49% de apoio entre os eleitores prováveis, em comparação com 47% de Trump.

A vice-presidente dos Estados Unidos e candidata presidencial democrata, Kamala Harris, acena ao lado da ex-deputada do Partido Republicano Liz Cheney, em um comício em Ripon, Wisconsin  Foto: Mark Schiefelbein/AP

A decisão de Kamala de aparecer ao lado de Cheney, nascida em Wisconsin, sinaliza que sua campanha está esperando atrair eleitores republicanos que foram repelidos pelo estilo político de Trump. As duas têm poucas concordâncias políticas para além de sua aversão a Trump.

Elas não tinham praticamente nenhuma relação quando estavam no Congresso. Em 2020, logo após Biden escolhê-la como sua companheira de chapa, Cheney chamou o histórico de votação de Kamala no Senado de “mais à esquerda do que Bernie Sanders”. E acrescentou: “Ela é uma esquerdista radical.”

Mas após o ataque ao Capitólio, Cheney deixou de lado rótulos partidários. Ela se tornou a principal republicana no comitê da Câmara que investigou o papel de Trump na revolta. Tornou-se uma pária em seu partido e mais tarde perdeu seu assento para um candidato apoiado por Trump.

A aparição de Cheney para Kamala na quinta também foi marcante por causa do momento: um dia antes, um documento de 165 páginas do conselheiro especial Jack Smith apresentou novas evidências de como Trump tentou permanecer no poder apesar de perder a eleição de 2020.

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A vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, discursa ao lado da ex-deputada Liz Cheney, em Ripon, Wisconsin  Foto: Kamil Krzaczynski/AFP

Durante seu discurso, Cheney mencionou os novos detalhes, incluindo a aparente indiferença de Trump quando imploraram a ele para garantir a segurança do seu então vice-presidente, Mike Pence, a quem os manifestantes haviam ameaçado enforcar naquele dia de janeiro.

“E daí?” disse o ex-presidente, de acordo com o documento.

Cheney disse à multidão: “Temos a responsabilidade, todos nós, de lembrar as pessoas de que nossas instituições não se defendem sozinhas.” Ela acrescentou: “Nós, o povo, defendemos nossas instituições.”

Chamando Trump de vingativo, ela disse que “qualquer pessoa que faria essas coisas nunca pode atingir o poder.”

Cheney disse que planejava votar em Kamala já em um evento no mês passado na Carolina do Norte. Foi um grande passo em uma grande reviravolta para uma ex-legisladora firmemente conservadora, a favor das armas, contra o aborto e belicista em questões de segurança nacional. Dias depois, seu pai, o ex-vice-presidente Dick Cheney, afirmou que também votaria em Kamala.

Na quinta-feira, Liz Cheney deixou claro que não havia se afastado de suas credenciais republicanas. Seu trabalho de campanha começou aos 10 anos, disse ela, quando ajudou a selar envelopes para a campanha de reeleição do presidente Gerald Ford. Ela votou pela primeira vez em uma eleição presidencial em 1984, continuou, e se referiu a si mesma como uma republicana à la Ronald Reagan.

“Eu era republicana mesmo antes de Donald Trump começar a fazer bronzeamento artificial”, alfinetou.

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