ENVIADA ESPECIAL, PARIS - Com 33,4% dos votos no primeiro turno das eleições legislativas antecipadas na França, o Reagrupamento Nacional (RN), partido da direita radical, está, pela primeira vez, às portas do poder pelo voto.
Durante a conferência de apresentação do seu programa, o presidente do partido, Jordan Bardella, disse que impediria cidadãos binacionais, com dupla nacionalidade, de aceder a cargos “sensíveis” no funcionalismo público.
A França conta com mais de 3,5 milhões de binacionais e esta declaração, que não foi explicada de forma precisa, gerou um temor entre muitos deles, incluindo os brasileiros.
Para a ceramista franco-brasileira Ana Bravo Lachaux, que está na França há 23 anos e tem dois filhos binacionais, “este discurso abre uma porta para discriminações diversas que será muito difícil de fechar depois. Eu temo pelo futuro dos meus filhos”. “Este projeto cria classes de cidadãos, em que uns teriam mais direitos que outros”.
Segundo o professor catedrático de Literatura Brasileira na Universidade Sorbonne Nouvelle, Leonardo Tonus, “a própria evocação do termo binacional contraria a Constituição, uma vez que sugere uma categoria nova dentro do quadro jurídico, fazendo com que pessoas de outras origens sejam consideradas como cidadãos de segunda categoria, sobretudo se certos cargos públicos forem restritos aos binacionais, que não é uma categoria jurídica válida”.
“Esta distinção entre franceses nativos e binacionais é perigosa e fragiliza a base constitucional francesa”, diz Tonus, que observa um aumento de restrições à chegada de estrangeiros à França, inclusive estudantes. “Me parece que agora a França corre o risco de se fechar cada vez mais”. “Medidas como estas podem fragilizar a estrutura democrática e sobretudo o pacto republicano sob o qual se apoia a V República na França”, analisa.
Silvia Capanema, professora adjunta da Universidade Sorbonne Paris 13 e deputada estadual do departamento de Seine-Saint-Denis, está na França há 22 anos e tem dupla nacionalidade. Mãe de três binacionais, ela se diz inquieta e assustada com as declarações dos representantes da direita radical sobre binacionais e imigrantes.
“Tenho um mandato eletivo e sou funcionária pública. Sei que não sou o alvo direto das declarações deles, mas vivo numa periferia em que 70% das pessoas têm ao menos um pai (ou mãe) estrangeiro. O princípio francês é de direitos iguais, não existem categorias de franceses. Na França, sequer há estatísticas oficiais sobre raça e religião justamente para manter o princípio da igualdade entre as pessoas. Estas declarações mexem completamente com este princípio, com o único intuito de excluir algumas pessoas”, declara.
Eleições na França
“A França, com a ascensão da extrema direita, pode se tornar um lugar de privilégios e exclusão”, resume.
A psicóloga Gabriella Dantas, especializada em imigração, sente que, de alguma forma, a sua existência e a de outros brasileiros e imigrantes no país está sendo deslegitimada. “A grande votação da extrema direita gera um ambiente instável e difícil para imigrantes. A angústia e ansiedade que este discurso causa neles são legitimas”, diz.
“Vejo que as pessoas que se informam mais estão mais apreensivas: o risco é real”, diz, aconselhando que o imigrante deve acolher esta emoção. “As emoções são voláteis, vêm e vão, então precisamos aprender a navegá-las”, diz, alertando que isso não significa aceitar o cenário político que está sendo desenhado.
Para a assistente de direção franco-marroquina Chafika B., sempre houve, na França, uma distinção dos estrangeiros segundo as suas origens. “Os imigrantes vindos das antigas colônias geralmente são mais estigmatizados. O passado colonialista é mal digerido no nosso país”, afirma.
O comerciante franco-argelino Kacem Faycel, nasceu na Argélia em 1959, quando o país ainda era um protetorado francês, e chegou à França em 1981. “Se eles passarem esta lei, vai ser um problema muito grande, vão criar duas classes de franceses: os de origem diversa e os nativos. Isso não é bom para os nossos filhos nem para a França, que precisa de imigrantes”.
Tufik Debabha, nascido na França em 1962, acredita que estas propostas representam uma rejeição aos valores da República francesa. “Os imigrantes não são a miséria da França, são a sua riqueza”. “Esta situação que o RN propõe é uma aberração”, conclui.
Loïs H. é franco-beninense e chegou à França há 25 anos. Ela tem dois filhos nascidos na França e se preocupa com o futuro deles. “Eu temo que meus filhos sejam maltratados, agredidos; é um momento triste para a França”, diz ela, consternada com o resultado do primeiro turno da eleição.
“Bardella não especificou quais empregos não seriam possíveis para binacionais, mas eu me inquieto, porque trabalho para uma empresa privada que presta serviços para o Ministério do Interior”, conta. “Eu tenho agora a impressão de não ser aceita, de ser uma presença indesejada, isso é desestabilizante”, define.
Loïs afirma que a possibilidade de a direita radical chegar ao poder no próximo domingo (7) pode mudar seus planos pessoais. Ela planejava se mudar com a família para Neuilly-sur-Seine, cidade a oeste de Paris, mas teme que a sua família sofra preconceito e estigmatização num reduto de “franceses nativos”.
Para Dominique Sopo, presidente do SOS Racismo, “a extrema direita foi banalizada na França nos últimos anos”. “Se o RN conseguiu esta votação tão expressiva é porque eles conseguiram convencer as pessoas que, se elas tinham problemas, era por causa dos imigrantes e seus filhos”.
Segundo ele, quando Bardella fala em “binacionais”, ele visa sobretudo os magrebinos e oriundos da África subsaariana, ou seja, muçulmanos e negros em primeiro lugar.
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