Em vilarejos tibetanos no sudoeste da China, autoridades do Partido Comunista têm espalhado o evangelho de unidade nacional de seu líder mais graduado, Xi Jinping: todos os grupos étnicos devem se fundir em uma única China indivisível e possuidora de herança comum há mais de 5 mil anos.
A milhares de autoridades em Ganzi, uma região tibetana na Província de Sichuan, foram atribuídas famílias para que elas coletem informações e distribuam arroz, óleo de cozinha e retratos beatíficos de Xi — tudo para martelar em cada domicílio sua mensagem de uma identidade chinesa que abrange desde Xinjiang, no oeste, até a ilha contestada de Taiwan, no leste.
“No futuro, eu também serei membro da sua família”, afirmou em uma residência Shen Yang, secretário do Partido Comunista em Ganzi, região chamada de Kardze em língua tibetana, de acordo com um jornal local.
O impulso nacionalista por trás dessa campanha é cada vez mais central no esforço de Xi de reforjar a China, que surte consequências muito mais amplas em educação, políticas sociais e na política em geral. Ainda que apelos à pátria-mãe sejam há muito tempo parte do kit de ferramentas do partido, Xi tem levado esse imperativo a novas alturas, clamando por uma “comunidade nacional chinesa” unificada — enquanto bastião contra ameaças domésticas e exteriores.
Nacionalismo e o congresso do PC chinês
Conforme Xi se prepara para reivindicar um extraordinário terceiro mandato no poder durante o congresso do partido que se inicia no domingo, 16, ele de fato nomeou a si mesmo historiador-chefe da China, forjando uma história — recontada em museus, programas de TV e jornais — que define sua agenda autoritária e centralizadora como a realização de valores com raízes ancestrais.
Segundo a visão de Xi, todos os chineses, independentemente de sua etnia, são ligados por laços culturais que remontam a antes dos primeiros imperadores. A implicação é que qualquer um que desafie as prioridades de Xi está traindo também valores sagrados e imemoriais da China.
Em um momento em que Estados Unidos, Rússia, Índia e outros países têm experimentado ressurgimentos de nacionalismo, a visão de Xi também tem o objetivo de vacinar a China contra influências indesejáveis, especialmente do Ocidente. Em maio, Xi disse ao Politburo — as 25 autoridades mais graduadas do partido — que ocidentais consideram a China, erroneamente, apenas um Estado-nação moderno.
“Eles não veem a China da posição de vantagem de mais de 5 mil anos de civilização”, afirmou ele, utilizando uma datação de origens contestada mas usada com frequência. “Então é difícil para eles entender verdadeiramente o passado, o presente e o futuro da China”.
Em seu extremo, a insistência de Xi em enfatizar uma identidade chinesa única levou a acusações de genocídio cultural proferidas por acadêmicos e países estrangeiros que citam a detenção em massa de uigures e outros grupos de maioria muçulmana em Xinjiang.
Hong Kong e Taiwan
Outros esforços de doutrinação ocorrem entre tibetanos, mongóis e muçulmanos hui. A mensagem de Xi também mira Hong Kong e Taiwan, a ilha cada vez mais avessa às exigências de Pequim por unificação. “A identidade cultural é o tipo mais profundo de identidade”, disse ele a autoridades.
Uma década atrás, Ganzi era palco de manifestações em que tibetanos ateavam fogo ao próprio corpo, o que certas vezes lhes custava a vida, para protestar contra o controle chinês. A atual campanha parece destinada a erradicar qualquer possível resistência política ainda remanescente.
A campanha “trata de encorajar as famílias a mudar o pensamento tradicional ao mesmo tempo em que retêm características da cultura local”, afirmou por telefone o tibetano Wuji Tsering, que administra um hostel visitado pelas autoridades em campanha.
‘Unidade é a chave’
Aquelas relíquias escavadas no sudoeste da Província de Sichuan pareciam diferentes de tudo o que já fora encontrado na China. Esculturas enormes de cabeças, com olhos salientes em forma de tubo. Máscaras de ouro com orelhas pontudas. Uma árvore de 4 metros, aparentemente objeto de adoração.
Uma das descobertas arqueológicas mais espetaculares da China, o sítio de Sanxingdui tem sido escavado desde os anos 80, mas atraiu uma nova onda de atenção nos últimos dois anos, após a descoberta de outros 13 mil artefatos. Muitos que os veem se fazem uma mesma pergunta: O que esses objetos de aparência sobrenatural têm a ver com a China?
“Acho que Sanxingdui pode ter vindo de extraterrestres”, afirmou Han Zhongbao, um turista que visitava um museu dedicado ao sítio arqueológico. “Sinto como se Sanxingdui não tivesse nenhuma conexão com a cultura chinesa.”
As autoridades chinesas têm argumentado enfaticamente o contrário. O governo propagandeou as relíquias de mais de 3 mil anos como prova de que a civilização chinesa ancestral era mais diversa do que muitos assumiam anteriormente e fundamentalmente coesa.
“Em ‘diversidade na unidade’, a chave é a unidade”, disse à agência estatal de notícias Xinhua o arqueólogo Sun Qingwei, da Universidade de Pequim. “A civilização Sanxingdui é um capítulo na formação da civilização chinesa e contém muitos elementos culturais, mas definitivamente é parte da civilização chinesa.”
Especialistas apontam para similaridades entre técnicas e materiais usados nas esculturas de bronze de Sanxingdui aos usados em reinos da China central, tradicionalmente considerados o berço da civilização chinesa.
“Por meio dessa prova científica muito específica e prática queremos recuperar essas conexões uma a uma”, afirmou em entrevista Li Haichao, professor de arqueologia na Universidade de Sichuan que liderou algumas escavações recentes. “‘Diversidade na unidade’ não é simplesmente um slogan vazio.”
Mas outros arqueólogos argumentam que os assentamentos ancestrais não fundamentam a afirmação moderna da China de ser um Estado unido que remonta a milênios.
“Não havia nenhuma nação idealizada antes”, afirmou Wang Ming-ke, acadêmico taiwanês que estudou o sítio de Sanxingdui. Histórias sobre as origens dos países — na China e em todo o planeta — são construídas pelas autoridades para consolidar o poder, acrescentou ele. “E então elas dizem: ‘Daqui vêm nossa cultura, nossa civilização e nossos ancestrais’.”
Arqueologia e política
Para Xi, essas questões são prenhes de implicações políticas. Antes da reunião em maio sobre as origens da civilização chinesa, ele convocou um encontro do Politburo, em 2020, sobre “arqueologia com características chinesas”. Em 2017, ele e o então presidente americano, Donald Trump, discutiram sobre qual civilização é mais antiga, a chinesa ou a egípcia.
“Somente a China continuou adiante intacta enquanto cultura”, disse Xi a Trump quando eles circulavam pela Cidade Proibida, em Pequim.
O governo chinês injetou crescentes investimentos em pesquisas históricas e arqueológicas. Esse apoio vem acompanhado de pressão para que as descobertas dos cientistas reflitam a narrativa oficial. Os projetos devem “revelar a formação e o desenvolvimento de uma civilização chinesa unificada ainda que diversa”, afirma o plano quinquenal do governo para arqueologia.
O objetivo é instigar o tipo de orgulho que a estudante do ensino médio Nie Yuying, de 17 anos, sentiu quando visitou o museu de Sanxingdui. “Eles mostram a herança da cultura chinesa”, afirmou Nie sobre os artefatos exibidos.
“Fomos profundamente influenciados pela cultura e a arte do Ocidente”, acrescentou ela. “Para o bem do nosso desenvolvimento futuro e para que não esqueçamos nossas raízes, devemos estudar o passado desta nação.”
Os esforços do governo chinês se espalham para muito além de Sanxingdui. Pequim insiste que livros e exposições sobre o Tibete, Xinjiang e regiões de fronteira os apresente como partes ancestrais da China. As autoridades argumentam que ligações genéticas e linguísticas entre tibetanos e chineses de etnia han, dominante no país, demonstram que até as montanhas do Tibete eram unidas à civilização chinesa milhares de anos atrás.
“A comunidade nacional da China existiu originalmente enquanto fenômeno natural, de essência natural, e somente depois demos nome a isso”, afirmou o professor de genética Li Hui, da Universidade Fudan, em Xangai, durante uma palestra recente. “Primeiro existiu a comunidade e então cada grupo étnico se diferenciou.”
Ditadura linguística
Gyal Lo ficou cada vez mais preocupado à medida que essa visão muscular da nacionalidade chinesa alcançava cidades e vilarejos remotos que ele visitava regularmente.
Professor de educação e tibetano, ele circulou por décadas pelo oeste da China encorajando autoridades, professores e famílias do Tibete a manter vivas as línguas e a cultura tibetana nas escolas. Seus esforços nunca foram fáceis, mas ficaram mais tensos nos anos recentes, enquanto as escolas passavam a lecionar exclusivamente em língua chinesa.
“Uma língua não é apenas sua gramática”, afirmou ele em entrevista. “Ela carrega nossa cultura.” Xi acelerou acentuadamente o impulso de incutir língua e cultura chinesa em minorias étnicas — mais extensivamente em Xinjiang, mas também entre tibetanos e mongóis étnicos.
Autoridades na Mongólia Interior, região no norte da China, detiveram pais que protestaram contra a mudança para o currículo totalmente em língua chinesa em 2020. No ano passado, o ministério chinês da Educação emitiu ordens determinando que as aulas da pré-escola de crianças de todas as minorias étnicas sejam ministradas em mandarim.
“Por um longo tempo o trabalho étnico do nosso país deu ênfase demais a particularidades, culturas tradicionais e direito a autogoverno de minorias étnicas”, escreveu no jornal estatal Global Times, em julho, o sociólogo Ma Rong, da Universidade de Pequim, que defende há muito tempo esforços mais intensos por integração de minorias.
O governo de Xi tem promovido autoridades que apoiam esse ponto de vista. Neste ano, Pequim nomeou Pan Yue para liderar a Comissão Nacional de Assuntos Étnicos da China. Dos anos 50 até 2020, a comissão sempre foi liderada por autoridades de alguma minoria étnica. Mas Pan e seu antecessor imediato são de etnia han, e Pan rapidamente absorveu a ideia de uma identidade comum com raízes no passado ancestral.
“A civilização chinesa jamais foi interrompida, e sua fundação se situa sobre uma grande unidade”, afirmou Pan durante um discurso no ano passado. “Historicamente, não faltou à China diversidade de grupos étnicos e religiões. Mas não importa quão diversos esses grupos sejam, eles devem, por meio de seus destinos compartilhados, se fundir em um só grupo.”
Supremacia han
O educador tibetano, Gyal Lo, de 55 anos, iniciou seus esforços mais de duas décadas atrás, quando o governo chinês era mais despreocupado em relação a políticas étnicas e as escolas nas regiões tibetanas com frequência lecionavam em suas línguas locais.
Gyal Lo gostaria que as crianças tibetanas aprendessem primeiro suas próprias línguas — a língua tibetana é na realidade composta por uma ampla família de dialetos — e depois começassem a aprender a falar e escrever na língua-padrão.
Sob Xi, o espaço para as línguas locais diminuiu gradualmente. As escolas passaram a exigir que os alunos fossem educados exclusivamente em língua chinesa. Desde 2016, cada vez mais crianças tibetanas, de até 4 ou 5 anos, têm sido enviadas para internatos, com o intuito de acelerar sua imersão chinesa, afirmou Gyal Lo. Ele testemunhou os efeitos dessa medida quando as crianças retornavam para passar os fins de semana com os pais.
“Parecia que elas se tornavam pessoas estranhas, como se fossem convidados em sua própria casa”, afirmou Gyal Lo. “Elas ficam longe dos pais, em vez de conversar e interagir fisicamente com eles.”
Gyal Lo deixou a China no fim de 2020, após seu contrato para lecionar em uma universidade na Província de Yunnan ser encerrado. Ele disse que teve medo de que sua etnia tibetana e seu ativismo por educação o tornassem alvo frequente de suspeitas policiais. Agora ele exerce seu ativismo no Canadá, onde ele estudou anteriormente, defendendo o fim dos internatos obrigatórios para crianças tibetanas na China.
“Por um breve momento tivemos um pouco de espaço para a nossa abordagem”, afirmou ele. “Agora, podemos falar de educação escolar no Tibete, mas não podemos mais afirmar que exista uma educação tibetana.”
Honrando o Imperador Amarelo
Em um vale estreito e verdejante na Província de Zhejiang, no leste chinês, centenas de autoridades e seus convidados se reuniram este mês em uma cerimônia em honra ao Imperador Amarelo.
Soaram trompas e tambores. Solados dispuseram cestas de flores para o imperador, uma deidade mítica e régia conhecida como pai do povo han. Dezenas de artistas vestindo robes esvoaçantes cantaram e dançaram. Um dragão gigante voou pelo céu.
“Como é grandioso é nosso ancestral, que construiu a fundação de 5 mil anos de cultura chinesa”, entoou o prefeito da localidade, Wu Shunze — que incluiu em sua fala uma dedicatória a Xi.
Espetáculos sobre a construção nacional como este — recriações grandiloquentes e com frequência exageradas de rituais ancestrais — têm sido maiores, mais elaborados e mais proeminentes em toda a China.
O impulso nacionalista de Xi também se destina a construir unidade entre a etnia han, que compõe 91% da população chinesa. As autoridades consideram o nacionalismo de Estado — organizado, roteirizado e contido — uma ferramenta para canalizar o sentimento do público e manter uma frente de união ante a uma hostilidade crescente, vinda especialmente de Washington e seus aliados.
Esta é a força motivadora por trás da tentativa de Xi de trazer Taiwan para a China. Em sua cerimônia em honra ao Imperador Amarelo, Wu prometeu que a unificação com Taiwan é “imparável”.
“Nessa visão, o partido é o árbitro de toda sineidade”, afirmou o sinologista Geremie Barmé, radicado na Nova Zelândia.
Um risco é o governo perder o controle do nacionalismo enquanto encoraja o sentimento. Neste verão, usuários de uma rede social chinesa — desolados porque Pequim não impediu pela força a presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, de visitar Taiwan — irromperam em fúria. Eles reclamaram que a retórica arrogante do governo os enganou, fazendo-os esperar uma ação militar, e escarneceram do Exército chinês classificando-o como fraco.
Pequim se apressou para direcionar a ira de volta para seus contornos preferidos. Depois da visita de Pelosi, o governo chinês emitiu um estudo de políticas enfatizando linhagens sanguíneas e laços culturais para restituir sua visão de que Taiwan sempre foi parte da China. O ministro chinês de Relações Exteriores afirmou que a presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, havia “traído os ancestrais”. Outra autoridade apontou para os noodles servidos em Taipei como prova de que Taiwan é “a filha há muito perdida” da China.
Yang Chen, funcionário de uma empresa farmacêutica que ajuda a organizar o ritual anual em honra ao Imperador Amarelo próximo a Zhengzhou, na China central, disse esperar que mais gente em Taiwan participe desses rituais. “É bom reconhecer que você é chinês, para primeiro encontrar algo em comum na cultura”, afirmou ele, antes de hesitar a respeito de tais símbolos serem capazes de conquistar Taiwan. “Mas teve aquela coisa um tempo atrás, não? Sobre a Pelosi passar por lá?” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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