Congresso da Argentina decide hoje se aprova Lei de Bases, pilar das reformas de Javier Milei

Projeto que é uma versão completamente desidratada da antiga Lei Ônibus retorna nesta quinta para a Câmara de Deputados depois de ter recebido meia aprovação no Senado

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Foto do author Carolina Marins

O Congresso da Argentina volta a analisar nesta quinta-feira, 27, a chamada Lei de Bases que pode dar a Javier Milei a sua primeira grande vitória desde que assumiu o comando da Casa Rosada. O projeto de lei pretende modificar pontos fundamentais da economia e do Estado argentinos e serve de ponto de partida para as reformas de ajuste fiscal prometidas pelo libertário para tirar o país da crise profunda.

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O texto que chega hoje ao plenário da Câmara baixa é uma versão completamente diferente da ambiciosa Lei Ônibus apresentada por Milei em dezembro de 2023. Dos mais de 600 artigos propostos pelo presidente, menos de 300 sobreviveram. O projeto foi desidratado todas as vezes que passou pela Câmara e foi novamente modificado no Senado antes de ser aprovado em 30 de abril, o que o forçou à retornar aos deputados.

Em tese, Milei já tem a aprovação política de seu projeto, já que na análise de hoje os deputados não podem fazer modificações no texto. Apenas terão de dizer se aprovam a lei da forma como ela foi votada no Senado ou se insistirão no texto aprovado inicialmente pelo Congresso em abril.

O presidente da Argentina, Javier Milei, durante viagem à Alemanha Foto: Daniel Bockwoldt/DPA via AP

O que é a Lei de Bases

A Lei de Bases, cujo nome completo é Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos, é um resquício da naufragada Lei Ônibus que Milei apresentou com poucos dias de governo. A Lei Ônibus e o DNU (Decreto de Necessidades e Urgências) eram as duas principais reformas que pretendia o governo, mas ambas entraram em um limbo.

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A Lei Ônibus que chegou na plenária do Congresso com 664 artigos foi sendo enxugada a cada nova fase de votação, até que que caiu em fevereiro quando o governo decidiu tirá-la de votação antes que perdesse as privatizações. Reformulada, e após intensas negociações, a lei voltou como a Lei de Bases de hoje, mas as concessões não pararam e o governo seguiu tendo de abrir mão de diversos artigos.

A proposta original declarava emergência e dava poderes especiais ao Executivo em 11 áreas: econômica, financeira, fiscal, pensões, segurança, defesa, tarifas, energia, saúde, administrativa e social. Esses poderes valiam por dois anos, prorrogáveis para mais dois (ou seja, alcançando todo o mandato de Milei). O texto atual reduziu de 11 para quatro as áreas: administrativo, econômico, financeiro e energético. E o período é de apenas um ano.

O texto original também propunha privatizar 41 empresas públicas. Na Câmara o número reduziu para nove e no Senado se acordou em seis: AySA SA (Água e Saneamento), Belgrano Cargas (companhia ferroviária), Trenes Argentinos, Corredores Viales, Enarsa (energia) e Intercargo (logística).

O projeto no Senado também limitou o poder do Executivo de intervir em organizações públicas, bem como reduziu as organizações ligadas à cultura que podem ser dissolvidas. Outra mudança foi o acordo de que obras públicas que estejam 80% concluídas não podem ser interrompidas - o projeto original paralisava toda e qualquer obra pública.

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Pacote fiscal

Tão importante quanto a Lei Bases é a votação do Pacote Fiscal que é analisado em conjunto. O pacote foi uma espécie de puxadinho que Milei fez de seu projeto inicial para acalmar deputados e governadores que estavam insatisfeitos com a proposta inicial. Foi justamente a briga do presidente com esses governadores que fez a primeira votação da Lei Bases naufragar no Congresso em fevereiro.

“Neste momento, a Lei de Bases e o Pacote Fiscal estão em um limbo, porque o governo tem a aprovação política de ambas as leis, mas não a aprovação técnica”, explica Facundo Cruz, professor e cientista político do Observatório Pulsar da Universidade de Buenos Aires (UBA).

Segundo a imprensa argentina, o governo conseguiu entrar em um acordo com a chamada “oposição dialoguista” - composta pela direita e centro-direita que é disposta a conversar com o governo - para que a Câmara baixa aprove o texto da Lei de Bases da forma como ele chegou do Senado. Mas os deputados devem insistir em outros pontos sensíveis do Pacote Fiscal, como o imposto de renda e de o regime de bens pessoais.

“O que deve gerar mais debate hoje é a reincorporação da Categoria 4 do imposto de renda, com uma escala mais progressiva do que a que existia antes, isso foi aprovado na Câmara dos Deputados mas rejeitado pelo Senado, então a Câmara dos Deputados precisa decidir se insiste com o aprovado por eles ou aceita a rejeição do Senado. E o mesmo ocorre com o Imposto sobre Bens Pessoais”, afirma Cruz.

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É o pacote fiscal que pode trazer algum risco para Milei na votação de hoje. O projeto aprovado no Congresso restituía o imposto de renda que foi revogado no fim do governo de Alberto Fernández. O movimento do então ministro da Economia e candidato presidencial Sergio Massa pretendia obter popularidade antes das eleições.

A revogação da Categoria 4 elevou o número de pessoas isentas de pagar o imposto, o que tem impactado diretamente no caixa das províncias. Como parte do acordo entre Milei e os governadores, o governo se comprometeu a restaurar o imposto para esta categoria e o projeto foi aprovado pelo Congresso em abril. O Senado, porém, rejeitou este trecho.

Na última votação da Lei Bases houve confronto entre manifestantes e a polícia do lado de fora do Congresso argentino Foto: Gustavo Garello/AP

O retorno do imposto é um tema caro a Milei, que se propõe a ser um libertário. Mas frente ao ajuste fiscal e uma inflação que corrói o valor da moeda, a redução de impostos tem colocado governo federal e provinciais em rota de colisão constante. Se não conseguir retomar os impostos da forma como foram votados em abril, Milei terá novos problemas com as províncias.

“Uma Lei de Bases, sem o pacote fiscal que o governo está promovendo, é uma lei que vai ter poucos efeitos positivos na direção do programa econômico que o governo deseja”, afirma Facundo Cruz. “Podemos dizer que é uma lei sem conteúdo sem o pacote fiscal. Parcialmente, ele vai poder avançar nas reformas que deseja, mas a chave da Lei de Bases é que seja aprovada junto com o pacote fiscal que o governo promove, se não, ela perde o seu propósito”.

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Privatizações

As privatizações também prometem trazer discussões acaloradas entre o governo e os deputados. O trecho das privatizações foi o que justamente fez a lei naufragar em fevereiro, e o acordo do governo para retirar três empresas da lista (Aerolíneas Argentinas, Correo Argentino e Radio y Televisión Argentina S.A.) foi o que permitiu que a versão atual avançasse em ambas as casas legislativas.

Mas o governo já adiantou que deve insistir para que as companhias retornem ao plano de privatizações, que é um dos pilares do programa econômico de Milei. Essa insistência joga incerteza em como serão os debates entre o governo e a oposição dialoguista.

“Parte do acordo foi que, antes de chegar ao plenário no Senado, saíssem do pacote de privatizações as empresas Aerolíneas Argentinas, Correo Argentino, duas das principais e algumas mais. Apesar de ter sido o próprio governo que as retirou da lista de empresas a serem privatizadas, agora é preciso ver se o governo pressiona para que a Câmara dos Deputados volte a incorporar essas empresas no pacote”, continua Cruz.

Na quarta-feira, 26, o jornal argentino La Nacion, citando fontes de bastidor, indicou que o governo estaria disposto a abrir mão de retornas com as três empresas para a lista de privatizações.

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O presidente da Argentina Javier Milei em discurso na República Checa em 24 de junho Foto: Michal Cizek/AFP

Vitória para o governo

Se a Lei de Bases for aprovada em conjunto com o Pacote Fiscal da forma como o governo precisa, esta será a primeira grande vitória de Milei depois de mais de seis meses de governo. Até agora, o libertário havia colecionado apenas reveses entre os legisladores e até com sua própria base de apoio.

Com a Lei Ônibus enxugada - e depois derrubada - e o DNU parcialmente derrubado no Senado, o governo Milei se via até agora paralisado sem conseguir avançar com as prometidas reformas.

A estagnação deixou em dúvidas se o novo presidente conseguiria construir governabilidade e se sustentar durante quatro anos no poder. Internacionalmente, investidores e o FMI (Fundo Monetário Internacional), com quem a Argentina tem uma dívida bilionária, também olhavam com preocupação.

“A Lei de Bases dá ao governo de Javier Milei o poder de mostrar a atores internos e externos que ele pode trabalhar com o sistema. E que, embora tenham sido feitas muitas concessões em relação àquele projeto original apresentado em dezembro, fica confirmado que o governo nacional pode jogar o jogo da política”, afirma Cruz.

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“Ao mesmo tempo, o Congresso Nacional está dizendo ao governo: ‘estamos dando todas as ferramentas que você nos pediu para governar, agora a responsabilidade é inteiramente sua’. Então, daqui para frente, o governo terá pouca margem para culpar gestões econômicas passadas por maus indicadores econômicos”, completa.

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