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Conheça o comando ucraniano que irrita a Rússia com incursões na Crimeia

Ataques na península sob o comando russo desde 2014 danifica instalações militares e afeta sociedade russa

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Por Carlotta Gall e Oleksandr Chubko

THE NEW YORK TIMES — No fim de uma noite, este mês, dois soldados de forças especiais ucranianos trafegavam devagar por uma rua de Kiev numa SUV avariada. Retornando de um perigoso ataque noturno contra posições russas na Península das Crimeia, eles rumaram para um apartamento com poucos móveis, onde se sentaram diante de escrivaninhas, cansados e um meio desalinhados, e descreveram sua operação recente realisticamente.

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“Muito difícil”, afirmou Askold, de 38 anos. “Foi nossa operação mais difícil até aqui”, acrescentou Kukhar, 23. Membros de um comando de elite da Diretoria Principal de Inteligência (GUR), o serviço de espionagem militar da Ucrânia, os homens se identificaram apenas por seus nomes de guerra, seguindo protocolo militar.

Ambos participaram de um ataque com outros 30 soldados que atravessaram mais de 160 quilômetros no Mar Negro em motos náuticas para atacar instalações críticas de defesa da Rússia antes de bater em retirada, no segundo assalto anfíbio da Ucrânia em seis semanas.

Soldados ucranianos conhecidos como Kukhar (à esq.), de 23 anos, e Askol (à dir.), de 38 anos. Os dois fazem parte de um grupo tático que realiza incursões na Crimeia Foto: Nicole Tung/NYT

Os ataques foram parte de uma série de ações punitivas na Crimeia por parte das forças ucraniana colocada em prática desde meados do verão do Hemisfério Norte que é bem-sucedida em neutralizar alguns sistemas de defesa antiaérea da Rússia e danificar estaleiros de manutenção em Sevastopol. Posteriormente, os russos retiraram 10 navios de guerra de Sevastopol, na costa oeste da Crimeia, e os aportaram em Novorossiisk no território russo, mas autoridades americanas afirmam que não ficou claro se a retirada das embarcações teve relação com preocupações de segurança ou foram apenas um rodízio regular.

Mas não há como negar que o número de ataques dentro da Crimeia está aumentando e deverá aumentar ainda mais com os novos mísseis de longo alcance ATACMS que acabam de ser entregues pelos Estados Unidos. “Uma ofensiva dinâmica em profundidade está em andamento”, afirmou a inteligência britânica em um comunicado.

A retirada parcial da Frota Russa no Mar Negro de Sevastopol, sua base há mais de 200 anos, ajudou a Ucrânia a romper o bloqueio russo e manter parte de suas exportações marítimas fluindo. E constitui um sucesso bem-vindo para Kiev, conforme suas forças buscam ampliar sua contraofensiva para além da sangrenta travessia dos campos minados pela Rússia.

Comandantes militares ucranianos pronunciam há muito sua intenção de retomar o controle da Crimeia, que alguns analistas consideram improvável. Para o presidente russo, Vladimir Putin, que ordenou a tomada da Crimeia, a península não é apenas uma base vital para as operações russas no sul da Ucrânia, mas também uma joia do Império Russo que ele prometeu manter.

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A campanha ucraniana começou um ano atrás, com um ataque contra a Ponte do Estreito de Kerch, uma admirada construção que liga a Península da Crimeia com a Rússia continental. Mas foi atingida pela contraofensiva deste verão, quando as forças ucranianas começaram a atacar a Crimeia com mísseis atrás das linhas de defesa russas.

Unidades ucranianas tentam assumir a iniciativa em diferentes partes do front oriental. Mísseis de longo alcance atingem pontes de rotas rodoviárias e ferroviárias que ligam a península ao restante da Ucrânia, assim como defesas antiaéreas, bases militares e postos de comando. O objetivo foi perturbar a logística militar dos russos e sua capacidade de funcionar, uma tática que o comandante-chefe das forças ucranianas, o general Valeri Zaluzhni, tem usado em sua contraofensiva nas regiões de Kharkiv e Kherson.

Imagem de satélite do dia 23 de setembro mostra uma visão aérea de Sevastopol, na Crimeia, após um ataque de míssil em um quartel-general da Rússia. Ataque desbloqueou parcialmente o Mar Negro Foto: Planet Labs/via NYT

No fim de junho, a Ponte Chonhar, em uma das principais estradas que ligam a península ao continente, foi danificada. Em 17 de julho, a Ponte Kerch foi atingida novamente, desta vez por um drone naval. Uma ONG local, SOS Crimea, relatou explosões quase diárias nas península nas semanas que se seguiram.

Os ataques surtiram um efeito acentuado no público russo. De um pico de 9 milhões de visitantes em 2019, no ano passado o número de turistas na Crimeia caiu para 6 milhões e, este ano, para pouco mais de 4 milhões até aqui, afirmam autoridades locais.

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Milhares de russos que se mudaram para a Crimeia ou compraram imóveis na península após sua anexação, em 2014, estão vendendo suas propriedades, e os preços despencaram, afirmou a ex-parlamentar ucraniana Liudmila Denisova, que tem parentes vivendo na Crimeia. “Todo ataque bem-sucedido da Ucrânia complica a vida na Crimeia”, afirmou ela.

Os ataques mais devastadores ocorreram em meados de setembro, quando mísseis atingiram um submarino russo e um banco de operações anfíbias nas docas secas do porto de Sevastopol. Uma semana depois, os ucranianos lançaram mísseis de longo alcance Storm Shadow contra o quartel de comando da Frota Russa no Mar Negro, também em Sevastopol, ferindo dezenas de oficiais.

Mais moradores da Crimeia se dispuseram a compartilhar informações com agentes ucranianos de inteligência desde o ataque, afirmou Sevgil Musaieva, editora do jornal Ukrainska Pravda, citando autoridades de inteligência da Ucrânia.

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Borghese, comandante de um grupo de guerra chamado Bratstvo, em imagem do dia 5. Comandante foi responsável por um dos ataques na Crimeia Foto: Nicole Tung/NYT

Eles tiveram medo de compartilhar antes as informações, afirmou a jornalista, acrescentando que agora “talvez eles esperem que algo ocorra e queiram esperar pelas Forças Armadas ucranianas”.

Juntamente com os ataques com mísseis, a GUR começou suas atividades com operações especiais. No fim de julho, seus operadores tomaram controle das Torres Boiko — uma rede de depósitos de gás natural no oeste do Mar Negro que a Rússia assumiu em 2014, mas que desde então foi abandonada — e desmantelou uma antena de vigilância.

Em 24 de agosto, comandos ucranianos fizeram sua primeira incursão conhecida na Crimeia desde 2016, atacando a base russa o Cabo Tarkhankut, o ponto mais ocidental da península. A base abriga uma antena e sistemas que embaralham comunicações em uma ampla área.

“Graças a esta antena, eles veem tudo o que acontece no mar”, afirmou um comandante do grupo Bratstvo, que realizou o ataque, identificando-se por seu nome de guerra, Borghese. “A missão era aproximar-nos deles e explodi-los”, acrescentou ele.

Bratstvo, que significa “irmandade” em língua ucraniana, é um partido político liderado por Dmitro Korchinski, um veterano das guerras no Cáucaso contra tropas russas nos anos 90, que, segundo relatos, têm laços com operadores de inteligência da ex-União Soviética e serviços de espionagem ucranianos. O partido tem sido descrito como nacionalista-cristão e de extrema direita. Desde o início da guerra em escala total, que começou em fevereiro de 2022, os voluntários do grupo Bratstvo têm sido integrados aos quadros da GUR, montando os primeiros ataques dentro da Rússia no passado e na Crimeia este ano.

Para o primeiro assalto em operação especial, Borghese comprou uma pequena frota de motos náuticas para transportar 20 homens até a base russa no Cabo Tarkhankut. Liderado por um comandante de nome de guerra Muraha, o grupo partiu ao anoitecer, juntamente com um barco de apoio, navegando em meio a um blecaute eletrônico total em razão dos sistemas de embaralhamento, dependendo de bússolas mecânicas. Em razão do desconforto de dividir uma mesma moto náutica, metade dos homens viajou no barco de apoio durante grande parte do caminho.

Com a Marinha russa em grande medida ausente da parte ocidental do Mar Negro, a maior ameaça aos soldados de elite ucranianos vinha do ar. A Rússia possui superioridade aérea na região, e embarcações ucranianas convencionais sofreram repetidos ataques de jatos russos. Mas o tamanho diminuto e a discrição das motos náuticas ajudou-os a evitar detecção.

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O grupo de elite chegou à costa nas primeiras horas da manhã, desembarcando em uma praia pedregosa. Armados com quatro metralhadoras, cinco homens escalaram uma colina e tomaram posições vigiando a base e a antena.

Conforme o restante do grupo desembarcava, as metralhadoras que guardavam a base abriram fogo, afirmou Muraha. Mas os ucranianos posicionados na colina responderam com fogo de supressão de suas próprias metralhadoras.

Usando lançadores portáteis, eles dispararam várias granadas propelidas por foguete contra a antena e a base antes de se retirar. Alguns soldados hastearam uma bandeira ucraniana diante de um edifício, gravando um breve vídeo antes de fugir.

O grupo escapou sem ferimentos. Mas o fogo inimigo alcançou o barco de apoio, que se retirou, e os 20 soldados de elite ucranianos tiveram de fazer a viagem de volta, de seis horas, nas motos náuticas, que eram equipadas especialmente com compartimentos para carregar munição e combustível extra.

Interceptações de comunicações dos russos indicaram que eles sofreram baixas no ataque, afirmou Borghese, mas ele não soube se o alvo principal, a antena, foi atingido.

O pesquisador Nick Reynolds, do Royal United Services Institute, em Londres, descreveu o ataque na Crimeia como “taticamente interessante”, mas prematuro. “A Ucrânia ainda não está em posição de capitalizar sobre nenhum enfraquecimento das defesas russas por lá”, afirmou ele.

Borghese disse que a principal proeza da operação foi mudar as percepções, provando que forças ucranianas são capazes de alcançar a costa da Crimeia e mostrando ao público russo que a península deixou de ser um lugar seguro. “Isso levanta nosso moral ucraniano e diminui o moral russo e crimeio”, afirmou ele. “Eles não podem mais relaxar nessas praias.” /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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