ASSOCIATED PRESS – Em uma recente visita noturna a uma farmácia, Kim Jong-un, com duas máscaras, lamentou a demora na entrega de remédios. Em paralelo, os tenentes do líder norte-coreano colocaram em quarentena centenas de milhares de pacientes suspeitos de covid-19 e recomendaram às pessoas com sintomas leves a tomarem folhas de salgueiro ou chá de madressilva.
Apesar da propaganda norte-coreana descrever as ações como um esforço total, o medo é palpável entre os cidadãos, relatam desertores que estão na Coreia do Sul e tem contatos com a Coreia do Norte. Especialistas externos temem que o surto possa piorar muito, já que o país tem uma população empobrecida e não-vacinada que está sem cuidados hospitalares suficientes e luta para pagar até mesmo remédios simples.
“Os norte-coreanos sabem que muitas pessoas ao redor do mundo morreram por causa da covid-19, então eles temem que alguns deles também possam morrer”, disse Kang Mi-jin, uma desertora norte-coreana. Ela esteve em contato por telefone com cidadãos da cidade de Hyesan, da Coreia do Norte. Segundo Kang, as pessoas que podem pagar estão comprando remédios tradicionais para lidar com o medo.
Desde que admitiu o que chamou de seu primeiro surto doméstico de covid-19, há uma semana, a Coreia do Norte luta para lidar com uma crescente crise de saúde que intensificou o medo entre os cidadãos sobre um vírus que anteriormente o governo alegava ter mantido sob controle.
A resposta à pandemia no país parece amplamente focada no isolamento de pacientes suspeitos. Isso pode ser tudo o que o governo realmente consegue fazer porque não há vacinas, pílulas antivirais, unidades de terapia intensiva e outros recursos médicos disponíveis. Todos esses recursos garantiram a sobrevivência de milhões de pessoas em outros países.
As autoridades de saúde norte-coreanas disseram nesta quinta-feira, 19, que “uma febre que se espalha rapidamente” matou 63 pessoas e deixou outras 2 milhões doentes desde o fim de abril. Cerca de 740 mil pessoas permanecem em quarentena. O número total de casos confirmado pela Coreia do Norte era de 168 no início desta semana, apesar do aumento dos casos relatados como febre.
Muitos especialistas estrangeiros duvidam dos números e acreditam que a escala do surto é subnotificada para evitar manifestações públicas que prejudiquem a liderança de Kim.
A mídia estatal disse que 1 milhão de funcionários públicos foram mobilizados para identificar pacientes suspeitos. Kim Jong-un também ordenou o envio de médicos do Exército para apoiar a entrega de medicamentos às farmácias, pouco antes de visitar as drogarias em Pyongyang na madrugada de domingo.
Propagandas informativas
A Coreia do Norte também usa meios de comunicação estatais – jornais, TV estatal e rádio – para oferecer dicas sobre como lidar com o vírus aos cidadãos, a maioria dos quais não tem acesso à internet e ou a notícias estrangeiras.
“É crucial que encontremos todas as pessoas com sintomas de febre para que possam ser isoladas e tratadas, para bloquear fundamentalmente os espaços onde a doença infecciosa pode se espalhar”, disse Ryu Yong Chol, funcionário da sede de antivírus de Pyongyang, em comunicado oficial na TV estatal nesta quarta-feira, 18.
A TV estatal transmitiu propagandas informativas que mostram personagens animados aconselhando os cidadãos a procurarem consulta médica caso tenham problemas respiratórios, cuspam sangue ou desmaiem. Elas também informam quais medicamentos os pacientes podem tomar, incluindo remédios caseiros, como chá de mel. O principal jornal do país, Rodong Sinmun, aconselhou pessoas com sintomas leves a preparar de 4 a 5 gramas de folhas de salgueiro ou madressilva em água quente e beber três vezes ao dia.
“As diretrizes não fazem o menor sentido. É como se o governo estivesse pedindo às pessoas que entrem em contato com médicos apenas se tiverem dificuldades respiratórias, o que significa pouco antes de morrerem”, disse o norte-coreano Cho Chung Hui, que fugiu para a Coreia do Sul em 2011. “Meu coração dói quando penso sobre o sofrimento do meu irmão e da minha irmã, que estão Coreia do Norte.”
Kang Mi-jin, que administra uma empresa que analisa a economia norte-coreana, conta que seus contatos em Hyesan disseram que os cidadãos são requisitados a ler atentamente os relatórios do Rodong Sinmun sobre as medidas do país para conter o surto.
Desde o dia 12 de maio, estão proibidas viagens entre regiões na Coreia do Norte, mas o país não tentou impor bloqueios mais severos, como na China. A economia do país está frágil, devido ao fechamento das fronteiras durante a pandemia e por décadas de má gestão. O governo incentiva os setores da agricultura, da construção e de outras indústrias a aumentar o ritmo. Kang disse que as pessoas em Hyesan ainda vão trabalhar.
O escritório do Alto Comissariado da Organização das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) afirmou estar preocupado com as consequências das medidas de quarentena da Coreia do Norte. Segundo a entidade, o isolamento e as restrições de viagem aumentarão as dificuldades de pessoas que já lutam para atender às necessidades básicas, incluindo alimentação.
“Crianças, mães lactantes, idosos, sem-teto e aqueles que vivem em áreas rurais e fronteiriças mais isoladas são especialmente vulneráveis”, disse o escritório em comunicado.
Desertores na Coreia do Sul dizem que se preocupam com os parentes que seguem na Coreia do Norte. Eles também suspeitam que o coronavírus já havia se espalhado pelo país antes do anúncio oficial do surto.
Coronavírus na Coreia do Norte
A coreana Kang Na-ra, que fugiu para a Coreia do Sul no fim de 2014, desconfia que a morte da avó em setembro do ano passado, em consequência de uma pneumonia, tenha sido, na verdade, causada pela covid-19. Ela soube da morte através de um telefonema do irmão, que ainda reside na Coreia do Norte. “Meu pai e meu irmão ainda estão na Coreia do Norte, e eu estou muito preocupada com eles porque não foram vacinados e não há muitos medicamentos lá”, disse.
Quando a irmã de Choi Song-juk ligou para ela pela última vez, em fevereiro, Choi soube que a sobrinha e vizinhos da irmã estavam doentes com sintomas semelhantes ao da covid, como febre alta, tosse e dor de garganta. Choi, que mora na Coreia do Sul, disse que a irmã não ligou desde então, embora seja uma época em que ela fica sem comida e precisa de transferências de dinheiro. Ela acredita que a desconexão tem a ver com as restrições de mobilidade impostas pelo governo por causa do vírus.
“Eu me sinto tão triste. Devo me conectar com ela novamente porque ela deve estar sem comida e colhendo verduras”, disse Choi, que deixou a Coreia do Norte em 2015. A irmã trabalha na agricultura.
Nos últimos anos, Kim Jong-un construiu alguns hospitais modernos e melhorou sistemas médicos, mas os críticos dizem que eles estão restritos à elite dominante do país, enquanto o serviço médico gratuito está em ruínas. Norte-coreanos que fugiram recentemente do país dizem que há muitos medicamentos produzidos internamente, mas as pessoas preferem medicamentos sul-coreanos, chineses e russos devido à qualidade. Esses medicamentos estrangeiros, no entanto, costumam ser caros e fora do poder de compra das pessoas mais pobres, que são a maioria da população.
“Se você está doente na Coreia do Norte, costumamos dizer que você vai morrer”, contou a norte-coreana Choi.
Apesar do surto, a Coreia do Norte não respondeu publicamente às ofertas de ajuda médica da Coreia do Sul e dos Estados Unidos. O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, disse na terça-feira, 17, que o órgão “está profundamente preocupado com o risco de propagação” do vírus e com a falta de informações sobre o surto.
Choi Jung-hun, um ex-médico norte-coreano que se mudou para a Coreia do Sul, suspeita que a Coreia do Norte esteja usando sua resposta à pandemia como uma ferramenta para promover a imagem de Kim como um líder que se preocupa com o público para solidificar a unidade interna.
Ele acrescenta que o número baixo de mortes do país também podem ser exploradas como uma ferramenta de propaganda. “Um dia, eles dirão que controlaram a covid-19. Ao comparar o número de mortos com o dos Estados Unidos e da Coreia do Sul, eles dirão que fizeram um trabalho muito bom e que seu sistema sanitário é o melhor do mundo”, disse Choi, agora pesquisador de um instituto afiliado à Universidade da Coreia do Sul.
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