Coreia do Norte vê oportunidades em ‘nova Guerra Fria’

Kim Jong-un lançou um número recorde de mísseis este ano, com o objetivo de aumentar a tensão entre EUA e China e explorar as hostilidades a Moscou

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Por Choe Sang-Hun

SEUL — A guerra da Rússia na Ucrânia segue furiosa. A China dobrou a aposta em sua promessa de tomar Taiwan. Nos Estados Unidos, confrontos entre democratas e republicanos acentuaram divisões políticas. Com o governo de Joe Biden ocupado em várias frentes, a Coreia do Norte, uma nação minúscula e isolada de 25 milhões de habitantes, tem parecido determinada a fazer Washington lhe dar atenção, com seu líder, Kim Jong-un, alertando que os EUA não deveriam mais se considerar uma superpotência “unipolar” na nova “Guerra Fria”.

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Kim passou grande parte do ano se antagonizando com os EUA e seus aliados, testando um número recorde de mísseis — 86 — e até ensaiando o lançamento de um míssil nuclear contra a Coreia do Sul. Em um único dia este mês, a Coreia do Norte disparou 23 mísseis, um dos quais atingiu águas da costa leste sul-coreana, fazendo ilhéus buscarem abrigo subterrâneo. Os norte-coreanos acionaram aviões da era soviética e dispararam centenas de projéteis de artilharia nas proximidades da fronteira com o Sul nas semanas recentes, além de lançar um míssil balístico de médio alcance sobre o Japão.

Com a Rússia sugerindo o uso de armas atômicas e as relações entre Washington e Pequim piorando, Kim muito provavelmente percebe oportunidade: em um mundo cada vez mais desestabilizado, não há hora melhor para testar suas armas, exibir sua tecnologia avançada e provocar seus inimigos de maneira virtualmente impune, ao mesmo tempo que tenta obter peso diplomático.

O líder norte-coreano, Kim Jong-un, durante um evento oficial em Pyongyang, em maio Foto: KCNA via REUTERS - 01/05/2022

“A Coreia do Norte tem atirado contra o que quer atirar, testado o que pretende testar”, afirmou Lee Seong-Hyon, pesquisador-sênior e especialista em Coreia do Norte da Fundação George H.W. Bush para Relações EUA-China. “Mas estamos em um momento em que nem EUA nem Coreia do Sul podem fazer muita coisa a respeito.”

Segundo admitiu o próprio Kim, a economia da Coreia do Norte está sofrendo agudamente, atingida por anos de sanções da ONU e pela pandemia de coronavírus. Mas Kim, de 38 anos, que assumiu o poder mais de uma década atrás, parece perceber a maré geopolítica virando ao seu favor. Durante um discurso em uma sessão parlamentar, no ano passado, ele descreveu uma “nova Guerra Fria” emergindo ao redor do planeta. Em outra fala, ele encorajou seu país a se preparar para “a mudança de um mundo unipolar defendido pelos EUA para um mundo multipolar”, no qual China e outros adversários americanos lideram como iguais.

Esses desdobramentos levantaram esperanças em Pyongyang de que a Coreia do Norte poderia outra vez desfrutar do tipo de apoio financeiro e militar que obtinha de Pequim e Moscou durante a Guerra Fria, afirmaram analistas. “Nenhum país anseia uma nova guerra fria mais do que a Coreia do Norte, porque isso aumenta seu valor estratégico para China e Rússia”, afirmou Lee. “Para um país isolado e subdesenvolvido como a Coreia do Norte, que percebe a si mesmo em impasses constantes com inimigos externos, nenhum ambiente é mais propício para sua sobrevivência do que uma guerra fria.”

Há uma escola de pensamento segundo a qual a Guerra Fria nunca acabou, que classifica a divisão entre as duas Coreias, conhecida como Zona Desmilitarizada, como um símbolo de questões pendentes entre grandes potências em disputa (a Guerra da Coreia terminou em um armistício, em 1953, o que significa que, tecnicamente, as duas nações ainda estão em guerra).

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O plano de sobrevivência da dinastia Kim é há muito atrelado ao seu programa de armas nucleares e à narrativa de que o desenvolvimento econômico se seu país é tolhido pelo Ocidente.

Kim considera seu arsenal nuclear essencial para garantir a segurança de seu regime e manter vantagem sobre a Coreia do Sul, que ele ridiculariza qualificando como uma vassala dos tempos modernos, que segue as ordens dos EUA. Kim espera não apenas que um grande arsenal atômico o ajude a cimentar sua liderança domesticamente, mas também acredita que armas nucleares aumentam seu poder de barganha caso negociações com os americanos sejam retomadas.

Após várias rodadas de negociações fracassadas e convites mais recentes de reavivá-las ficarem sem resposta, Washington ficou cada vez mais cético em relação à possibilidade de conversas com Pyongyang ainda existirem, deixando a Coreia do Norte mais determinada do que nunca a exigir sua atenção.

Teste nuclear

Washington, Seul e Tóquio afirmam que a Coreia do Norte poderá realizar um teste nuclear, seu sétimo, a qualquer momento. Se os norte-coreanos forem adiante, Washington e seus aliados poderão ver suas mãos atadas para buscar impor penalidades.

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Neste mês, o Conselho de Segurança da ONU não foi capaz de avançar com novas sanções contra a Coreia do Norte em resposta aos testes de mísseis mais recentes, que violaram resoluções da ONU. China e Rússia, que possuem poder de veto no conselho, se opuseram à proposta liderada pelos EUA.

Jogar superpotências uma contra a outra é uma estratégia que a Coreia do Norte conhece bem. Quando Kim iniciou sua diplomacia com o ex-presidente Donald Trump, em 2018, ele escorou sua aposta encontrando-se primeiro com o líder chinês, Xi Jinping. Xi, cuja relação com Kim parecia fragmentada até então, foi ávido em manter a Coreia do Norte como tampão entre a China e as instalações militares americanas na Coreia do Sul. Conforme as relações entre Washington e Pequim se deterioram, Xi parece mais disposto do que nunca em manter Pyongyang em sua órbita.

O flerte sem precedentes entre Kim e Trump ajudou o jovem líder a reafirmar o valor geopolítico de seu país para a China. Xi visitou Pyongyang em 2019, depois que as conversas entre Kim e Trump colapsaram, e afirmou que ajudaria “da melhor maneira que puder” a Coreia do Norte em suas preocupações com segurança e economia. Quando a presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, foi a Taiwan, em agosto, a Coreia do Norte retribuiu o favor à China, qualificando a visita da americana como uma “interferência imprudente” em “assuntos internos” do governo chinês.

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Kim também percebeu benefício na invasão russa à Ucrânia e tem alinhado seu país mais proximamente à Rússia. A Coreia do Norte é uma das poucas nações a apoiar oficialmente a invasão. Neste mês, Washington acusou os norte-coreanos de enviar projéteis de artilharia secretamente para ajudar a Rússia em seu esforço de guerra. (Pyongyang e Moscou negam que isso tenha ocorrido). Tanto Kim quanto o presidente russo, Vladimir Putin, ameaçaram recentemente usar armas nucleares se sentirem que seu país está em risco.

O então presidente americano Donald Trump se encontra com o líder coreano, Kim Jong-un, na Zona Desmilitarizada Foto: Kevin Lamarque/Reuters - 30/06/2019

Ainda que o número recorde de provocações da Coreia do Norte este ano possa sugerir que Kim está mais corajoso e poderoso, alguns analistas afirmam que os vários lançamentos de mísseis — assim como a decisão de melhorar as decrépitas aeronaves de Pyongyang, da era soviética — podem refletir uma ansiedade crescente no país. “Kim Jong-un não consegue financiar um confronto custoso e prolongado com os EUA”, afirmou Park Won-gon, especialistas em Coreia do Norte da Universidade de Mulheres Ewha, em Seul. “Então ele está mobilizando tudo o que tem para alcançar um benefício rápido. O que vemos é um padrão familiar da Coreia do Norte apelando para ameaças e estratégias temerárias.”

O objetivo de Kim em última instância, afirmam alguns analistas, é que seu país seja reconhecido como uma potência nuclear verdadeira e envolver os EUA em negociações de redução de armamentos, esperando trocar parte de seu arsenal atômico por um alívio nas sanções. A Coreia do Norte tem testado novos mísseis nos anos recentes, Kim provavelmente pensa que um arsenal maior aumentará seu peso de barganha na mesa de negociação.

A Coreia do Norte afirma que é capaz de atingir os EUA com um míssil balístico intercontinental carregado com uma ogiva nuclear. Mas analistas questionam essa afirmação, já que Pyongyang nunca testou seus mísseis em suas capacidades totais de alcance intercontinental nem demonstrou que esses mísseis são capazes de resistir à violenta reentrada na atmosfera terrestre ao retornar do espaço sideral. Ainda assim, a determinação de Kim em expandir o arsenal de seu país aprofundou temores de que tecnologia nuclear norte-coreana poderia acabar nas mãos de adversários dos EUA ou fazer a Coreia do Sul considerar adquirir armas atômicas. (Oficialmente, Seul nega qualquer intenção de desenvolver suas próprias armas nucleares).

Os EUA reafirmaram seu compromisso em defender a Coreia do Sul fortalecendo os exercícios militares conjuntos entre os países este ano, depois de Trump ter diminuído sua magnitude e da pandemia de coronavírus atrapalhar sua realização. A Coreia do Norte usou a volta desses exercícios como desculpa para testar o máximo possível de armamentos.

Desde 2019, Pyongyang testou uma série de novos mísseis, a maioria de curto alcance, alguns projetados para atingir velocidades hipersônicas ou manobráveis durante o voo. Os mísseis foram lançados em momentos aleatórios e de várias localidades e maneiras — incluindo de trens e de um silo submarino — para torná-los mais difícil de interceptar.

Se os norte-coreanos retomarem os testes atômicos, eles poderão testar ogivas nucleares “táticas”, de menor potência, que o país planeja instalar em seus novos mísseis de curto alcance, elevando a ameaça aos aliados dos americanos na região, afirmam autoridades de defesa da Coreia do Sul.

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Realizar esses testes não é uma questão apenas política, mas também técnica. “Eles têm de estar tecnicamente preparados”, afirmou o vice-ministro sul-coreano da Defesa, Shin Beom-chul, em uma entrevista à TV no mês passado. “Pode não ser um teste único. A Coreia do Norte pode conduzir dois ou três testes na sequência.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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