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Crescimento da esquerda na América Latina ameaça política externa dos EUA

Com os EUA preocupados com Ucrânia, Irã e Coreia do Norte, os americanos poderiam ver sua influência continuar a declinar na região

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Por Samantha Schmidt
Atualização:

THE WASHINGTON POST, BOGOTÁ — Por mais de dois séculos, a Colômbia foi considerada um bastião do conservadorismo na América Latina. Mesmo enquanto governos de esquerda surgiam e desapareciam pela região, um establishment de centro-direita sempre permaneceu no controle do país — uma continuidade que cimentou o papel dos colombianos como aliados cruciais dos Estados Unidos.

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Mas na noite do domingo, tudo mudou. O senador e ex-guerrilheiro Gustavo Petro foi eleito para a presidência, tornando-se o primeiro presidente de esquerda na história da Colômbia, amalgamando a vontade de milhões de colombianos pobres, jovens, passando dificuldades e desesperados por um líder diferente.

A vitória de Petro, impensável uma geração atrás, foi o exemplo mais estarrecedor até aqui da medida em que a pandemia transformou a política na América Latina. A pandemia castigou as economias desta região mais duramente que quase qualquer outro lugar no mundo, expulsando 12 milhões de pessoas da classe média em um único ano. Por todo o continente, eleitores puniram ocupantes do poder por fracassar em tirá-los da miséria. E a vencedora tem sido a esquerda latino-americana, um movimento diverso de líderes que agora poderão assumir um papel proeminente no Hemisfério.

Cartaz de campanha mostra o presidente eleito da Colômbia, Gustavo Petro, e a vice, Francia Márquez, em Bucaramanga Foto: Luis Eduardo Noriega / EFE

“Eleição após eleição, a direita tenta assustar as pessoas convencendo-as de que o monstro do comunismo está à espreita”, afirmou o cientista político Alberto Vergara, da Universidade do Pacífico, no Peru. “E eleição após eleição, a direita tem sido derrotada.”

Isso aconteceu no Peru, onde os eleitores elegeram no ano passado o professor marxista Pedro Castillo. Aconteceu no Chile, o exemplo de livre-mercado na região, onde o ex-ativista estudantil Gabriel Boric, de 36 anos, levou a esquerda de volta ao poder.

E agora aconteceu na Colômbia, um país em que a esquerda é associada com movimentos guerrilheiros há muito tempo, ao longo de décadas de conflito interno. Candidatos de esquerda que ousavam concorrer à presidência no passado com frequência eram assassinados. Desta vez, o escolhido do establishment conservador não foi capaz nem de passar para o segundo turno, após sua mensagem sobre os perigos de uma presidência de Petro não convencer.

Avanço da esquerda na América Latina

Todos os olhares recaem agora sobre o Brasil, o maior país da América Latina, onde o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva lidera as pesquisas para derrotar o presidente Jair Bolsonaro na eleição de outubro.

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A vitória de Lula significará que todos os maiores países da região, incluindo México e Argentina, serão liderados por presidentes de esquerda. De Bogotá a Santiago, muitos eleitores não estão mais comprando o argumento de que uma guinada à esquerda resultará em um governo liderado por tipos como Hugo Chávez ou Fidel Castro.

E isso ocorre em parte porque os atuais líderes de esquerda têm aparência muito diferente e dizem coisas muito diferentes em comparação a esquerdistas do passado, pelo menos nos casos de Petro e Boric. Em vez de construir uma economia rica em petróleo — a base da catastrófica revolução socialista da vizinha Venezuela — eles procuram construir uma frente unificada contra as mudanças climáticas.

Em encontro da Cúpula do Mercosul no Paraguai, em 2009, alguns dos presidentes da onda rosa original, como Lula, Cristina Kirchner, Fernando Lugo, Tabaré Vázquez, Evo Morales, Rafael Correa e Michelle Bachelet  Foto: Marcio Fernandes/ AE

Eles têm tentado se distanciar do machismo de eras anteriores de lideranças da esquerda, conquistando o poder sob a promessa de proteger direitos de mulheres, pessoas LGBT+ e comunidades afro-indígenas. E eles contam com apoio de um eleitorado jovem e engajado politicamente, que tomou as ruas massivamente nos últimos anos para protestar contra a desigualdade.

Petro afirmou em entrevista ao Washington Post este ano que tem em mente formar uma aliança progressista com Chile e Brasil. Se Lula vencer e Petro concretizar sua visão, essa coalizão seria capaz de constituir uma força poderosa no Hemisfério — que poderia escantear os EUA.

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“Pode ser uma daquelas oportunidades em que a América Latina assume a liderança”, afirmou Bernard Aronson, que atuou como o mais graduado diplomata americano para América Latina durante as presidências de George H. W. Bush e Bill Clinton. Aronson, que também atuou como enviado especial para o processo de paz na Colômbia, descreveu a vitória de Petro como “um tipo de terremoto na Colômbia”.

Na noite do domingo, Petro conclamou um “diálogo nas Américas sem exclusões (…) com toda a diversidade que é a América”, em uma clara referência à Cúpula das Américas, organizada este mês em Los Angeles. O presidente mexicano, Andrés Manuel López Obrador, decidiu não comparecer à cúpula depois do presidente Joe Biden ter se recusado a convidar líderes autoritários de três países: Cuba, Venezuela e Nicarágua. Ainda que tenha comparecido, Boric também criticou Biden, dizendo ao Post que os EUA estão perdendo oportunidades de avançar na direção de objetivos democráticos para a América Latina ao se recusar a conversar com seus adversários.

Em um sinal da amplitude da aceitação dessa visão na região, tanto Petro quanto seu rival no segundo turno da eleição, o magnata da construção civil Rodolfo Hernández, expressaram apoio à normalização das relações com a Venezuela, um país invocado há muito tempo pela direita como alerta a respeito dos perigos dos governos de esquerda.

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Milhares marcham com faixa com os retratos dos presidentes de esquerda na América Latina na época (da esq. para a direita) Fidel Castro, Hugo Chávez, Néstor Kirchner, Luiz Inácio Lula da Silva e Tabaré Vazquez, durante um protesto contra a presença de George W. Bush na 4ª Cúpula das Américas, em Mar del Plata, em 4 de novembro de 2005 Foto: David Mercado/Reuters

Distanciamento dos EUA?

Em seu discurso de vitória, Petro afirmou que sua política externa colocará a Colômbia na vanguarda do combate às mudanças climáticas. Ele disse que chegou a hora de se sentar com os EUA e conversar a respeito de emissões de gases de efeito estufa, que estão sendo absorvidos por “uma das maiores esponjas”, a latino-americana floresta tropical amazônica.

“Se estão emitindo por lá e estamos absorvendo por aqui, por que não dialogamos?”, disse Petro em um salão de eventos lotado em Bogotá. “Por que não encontramos outra maneira de nos entendermos?”

Com os EUA preocupados com Ucrânia, Irã e Coreia do Norte, os americanos poderiam ver sua influência continuar a declinar na América Latina, afirmou Cynthia Arnson, pesquisadora destacada e ex-diretora do Programa para América Latina do Wilson Center, em Washington.

“Os EUA entram cada vez menos na conversa”, afirmou Arnson. Os americanos vêm há muito tempo suas relações na região através da lente da competição com Rússia e China, afirmou Adam Isacson, da ONG Escritório de Washington na América Latina.

“Se eles mantiverem essa visão de Guerra Fria 2.0, de competição entre grandes potências na região”, disse Isacson, “eles simplesmente terão perdido a noção a respeito de sua pedra angular”.

Os EUA mandaram bilhões de dólares em ajuda para a Colômbia ao longo de anos, grande parte destinada ao combate de criminalidade transnacional e tráfico de drogas. Alguns se preocupam com a possibilidade da presidência de Petro tensionar essa parceria antiga e duradoura.

Petro argumenta que as políticas antinarcóticos aplicadas nas últimas décadas fracassaram e que a tentativa de erradicação da coca por fumigação aérea das plantas não foi capaz de reduzir absolutamente o fluxo de cocaína para os EUA. Ele promete, em vez disso, apostar na substituição de cultivos. Ele também sugeriu mudar o tratado de extradição e o acordo de comércio exterior entre os países.

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Mas em seu discurso de vitória, Petro não fez nenhum comentário sugerindo que adotaria uma posição hostil em relação aos EUA, e especialistas duvidam que ele o faça.

Os EUA têm um histórico de boas relações com alguns presidentes de esquerda na América do Sul, como o uruguaio José Mujica e o brasileiro Lula, observou Aronson. Mas “pouquíssimos países no mundo desfrutaram da duradoura relação bipartidária que a Colômbia construiu com os EUA”. Se Petro for prudente, acrescentou o ex-diplomata, “ele tentará preservar isso”.

Críticas ao novo presidente eleito da Colômbia

O secretário de Estado americano, Antony Blinken, se apressou em congratular Petro na noite do domingo, enquanto Brian Nichols, subsecretário de Estado para assuntos do Hemisfério Ocidental, afirmou em uma entrevista de rádio na segunda-feira que o governo Biden tem “muitos pontos de concordância” com o governo de esquerda que assumirá na Colômbia, incluindo o compromisso compartilhado de combater as mudanças climáticas.

Críticos de Petro temem que seus planos ambiciosos, incluindo suas políticas de redistribuição de renda e sua proposta de banir novas prospecções de petróleo, possam arruinar a economia da Colômbia. Outros se preocupam com sua disposição de contornar instituições democráticas para avançar com sua agenda; ele propôs um estado de emergência econômica para combater a fome.

Da mesma maneira que muitos presidentes que o antecederam, o maior desafio para Petro será cumprir suas promessas para os pobres — especialmente com uma legislatura dividida. Aproximadamente a metade dos colombianos experimentam algum tipo de privação ou pobreza e tem dificuldade para obter comida suficiente.

Entre eles está a estudante Erika Andrea Nuñez, de 22 anos, que mal consegue pagar por seu curso para cuidadora de creche. Ainda que viva com o parceiro e sua filha de 2 anos em um bairro de classe trabalhadora em Bogotá, ela frequenta a casa de seus pais para economizar na comida.

Nuñez não se considera apoiadora de Petro, mas decidiu votar nele por causa “do que ele promete que vai fazer pelos jovens”, especialmente sua proposta para educação superior gratuita e universal.

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“Não sei se ele fará mesmo isso”, afirmou ela. “Mas foi isso que me fez dar a ele uma chance. (…) Tenho esperança de que ele pelo menos fará algo diferente.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO