Começando na primeira série, os alunos de toda a Rússia em breve terão aulas semanais com filmes de guerra e passeios virtuais pela Crimeia. Eles receberão uma dose constante de palestras sobre temas como “a situação geopolítica” e “valores tradicionais”. Além da habitual cerimônia de hasteamento da bandeira, eles terão lições que celebram o “renascimento” da Rússia sob o presidente Vladimir Putin.
E, de acordo com a legislação sancionada por Putin na quinta-feira, todas as crianças russas serão incentivadas a se juntar a um novo movimento patriótico juvenil parecido com os “Pioneiros” de gravata vermelha da União Soviética – liderado pelo próprio presidente.
Desde a queda da União Soviética, as tentativas do governo russo de transmitir uma ideologia de governo às crianças em idade escolar não tiveram sucesso, disse recentemente um burocrata sênior do Kremlin, Sergei Novikov, a milhares de professores russos durante um workshop online. Mas agora, em meio à guerra na Ucrânia, Putin deixou claro que isso precisa mudar, disse ele.
“Precisamos saber como infectá-los com nossa ideologia”, disse Novikov. “Nosso trabalho ideológico tem por objetivo mudar as consciências”.
Enquanto a guerra na Ucrânia se aproxima da marca de cinco meses, as grandes ambições de seus planos para o front doméstico estão entrando em foco: uma reprogramação em massa da sociedade russa para acabar com 30 anos de abertura ao Ocidente.
O Kremlin já prendeu ou forçou ao exílio quase todos os ativistas que se manifestaram contra a guerra; criminalizou o que restava do jornalismo independente da Rússia; reprimiu acadêmicos, blogueiros e até mesmo um jogador de hóquei com lealdades suspeitas.
Mas em nenhum lugar essas ambições são mais claras do que na corrida do Kremlin para revisar o que as crianças aprendem nas 40 mil escolas públicas do país.
Doutrinação de crianças
As iniciativas nacionais de educação, que começam em setembro, fazem parte do esforço do governo russo para doutrinar crianças com a versão militarizada e antiocidental de Putin, ilustrando o alcance de sua campanha para usar a guerra para mobilizar ainda mais a sociedade russa e eliminar qualquer dissidência.
Embora alguns especialistas estejam céticos de que os grandes planos do Kremlin darão frutos rapidamente, a potência de sua propaganda para mudar a mente de jovens impressionáveis já estava se fazendo aparente mesmo antes do novo ano letivo.
Irina, aluna do nono ano, disse que uma aula de informática em Moscou no mês de março, por exemplo, foi substituída pela exibição de uma reportagem da televisão estatal sobre ucranianos se rendendo às tropas russas e uma palestra explicando que apenas informações de fontes oficiais russas eram confiáveis.
Ela logo notou uma transformação entre alguns amigos que inicialmente haviam ficado assustados ou confusos com a guerra.
“De repente, eles começaram a repetir tudo que a televisão dizia”, disse Irina em entrevista por telefone ao lado de sua mãe, Lyubov Ten. “De repente, começaram a dizer que tudo isso é merecido, que isso tinha que acontecer. Eles não conseguiam nem tentar explicar as coisas para mim”.
Irina disse que, quando questionou seus amigos sobre os crimes de guerra russos em Bucha, eles revidaram: “É tudo propaganda estrangeira”.
Ten e seu marido, motivados por sua recusa em criar os filhos em um ambiente cada vez mais militarizado, partiram para a Polônia nesta primavera.
Os professores também estão percebendo uma mudança. Na cidade de Pskov, perto da fronteira com a Estônia, a professora de inglês Irina Milyutina disse que as crianças de sua escola no início debatiam vigorosamente se a Rússia estava certa ou errada em invadir a Ucrânia – e às vezes até brigavam.
Mas logo as vozes de dissidência evaporaram. As crianças começaram a rabiscar Z e V – símbolos de apoio à guerra, em referência às marcas de identificação das tropas invasoras – nas lousas, nas carteiras e até no chão.
No recreio, alunos da quinta e sexta séries brincam de ser soldados russos, disse Milyutina. “Eles chamam de ucranianos os colegas de quem gostam muito”.
Escolas de todo o país receberam essas ordens, de acordo com ativistas e reportagens russas. Daniil Ken, chefe de um sindicato independente de professores, compartilhou com o New York Times algumas diretrizes que ele disse que os professores haviam passado para ele.
Em determinada aula, os alunos aprendem sobre “conflitos híbridos sendo realizados contra a Rússia”, com uma reportagem da BBC sobre um ataque russo na Ucrânia e uma declaração do presidente Volodymyr Zelenskyy apresentada como exemplos de “falsificações” destinadas a semear discórdia na sociedade russa. Um questionário de acompanhamento ensina os alunos a desconfiar de qualquer ativista da oposição em suas próprias comunidades.
“Uma das medidas efetivas do conflito híbrido é a promoção de agentes de influência na população local”, diz uma questão de tipo verdadeiro ou falso.
A resposta correta é “verdadeiro”, claro.
O novo impulso representa uma intensificação do esforço de Putin para militarizar a sociedade russa, aproveitando os esforços ad hoc das autoridades após a invasão para convencer os jovens de que a guerra era justificada.
Novikov, chefe da diretoria de “projetos públicos” do Kremlin, disse que, com a invasão da Ucrânia em fevereiro, os professores vêm enfrentando “uma tarefa bastante urgente”: “realizar um trabalho explicativo” e responder às “perguntas difíceis” dos alunos.
“Tudo é mais ou menos controlável com os mais novos, mas os mais velhos recebem informações por meio de uma ampla variedade de canais”, disse ele, reconhecendo os temores do governo de que a internet influencie as opiniões dos jovens. Uma pesquisa realizada no mês passado pelo Levada Center, um instituto independente, revelou que 36% dos russos de 18 a 24 anos se opuseram à guerra na Ucrânia, em comparação com apenas 20% de todos os adultos.
Antes do próximo ano letivo, o Kremlin está trabalhando para codificar suas ambições educacionais. Uma proposta de decreto publicada pelo Ministério da Educação no mês passado mostra que as duas décadas de Putin no poder devem ser consagradas no currículo padrão como um ponto de virada histórico, e o próprio ensino da história se tornará mais doutrinário.
O decreto diz que as aulas de história russa serão obrigadas a incluir vários tópicos novos, como “o renascimento da Rússia como grande potência no século 21″, “reunificação com a Crimeia” e “a operação militar especial na Ucrânia”.
Mesmo que o padrão educacional existente na Rússia diga que os alunos devem ser capazes de avaliar “várias versões da história”, a nova proposta diz que eles devem aprender a “defender a verdade histórica” e “descobrir falsificações na história da pátria”.
Como funcionários do governo, os professores geralmente têm pouca escolha a não ser cumprir as novas demandas – embora haja sinais de resistência popular. Ken diz que a Aliança dos Professores, seu sindicato, forneceu orientação legal a dezenas de professores que se recusaram a ministrar as aulas de propaganda política nesta primavera, observando que a agitação política nas escolas é tecnicamente ilegal sob a lei russa. Em alguns casos, diz ela, os diretores simplesmente cancelaram as aulas, sabendo que eram impopulares.
“Você só precisa encontrar a força moral para não promover o mal”, disse em entrevista por telefone Sergei Chernyshov, que dirige uma escola particular na cidade siberiana de Novosibirsk e resistiu a promover propaganda do governo. “Se você não pode protestar contra isso, pelo menos não ajude”. /NYT, COM TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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