Narcotráfico e rota das drogas impulsionam violência até nos países mais seguros da América Latina

Gangues se espalham, driblam autoridades e desenvolvem fluxos alternativos

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Foto do author Jéssica Petrovna
Atualização:

O Estado de Colima, famoso por belas praias na costa do Pacífico, já se orgulhou de ter o maior porto do México. Até que o crime organizado viu ali uma oportunidade: a rota para o tráfico do fentanil, o opiáceo sintético fatal que inunda os Estados Unidos. A violência disparou com a disputa de gangues pelo controle da zona portuária e a capital de mesmo nome hoje amarga o título de cidade mais violenta do mundo.

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A briga ali é entre os carteis de Sinaloa e Jalisco Nueva Generación (CJNG) pelo porto de Manzanilo, por onde chegam os insumos para fabricação de drogas sintéticas vindos da Ásia (frequentemente da China). E, com o reflexo dessa disputa, um dos menores Estados do México se tornou um dos mais violentos.

Há dois anos, a capital Colima aparece no topo do ranking de cidades mais violentas do mundo feito pela ONG Mexicana Conselho Cidadão para Segurança Pública e Justiça Criminal. Segundo o levantamento, foram 140 homicídios por 100 mil habitantes em 2023. O número representa uma melhora em relação ao ano anterior e, ainda assim, é mais de 20 vezes maior que a média global, de 6 homicídios a cada 100 mil habitantes.

Cidades do México ocupam o topo do ranking há quase uma década, mas histórias como a de Colima se repetem até mesmo em países antes considerados seguros. Foi o que aconteceu no Equador, onde a violência saiu de controle no começo do ano. Gangues tocaram o terror nas ruas de diferentes cidades e homens armados invadiram o estúdio de uma TV para dar um recado ao vivo: “não se brinca com a máfia”, disseram. Uma semana depois, o promotor que investigava o caso foi assassinado à luz do dia.

Toneladas de drogas que saíram de Guayaquil são apreendidas no Panamá; destino final da droga era a Espanha. Foto: Serviço Aeronaval do Panamá/ AFP

A América Latina tem apenas 8% da população mundial, mas concentra 29% das mortes violentas intencionais, mostrou o levantamento mais recente do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc), de 2023. Mesmo Argentina e Chile, que mantêm taxas nacionais de homicídios bem abaixo da média regional, têm focos de violência ligadas às gangues e rotas do narcotráfico.

“Não há nenhum país que se possa dizer que está isento do aumento dos mercados ilegais na região”, afirma a pesquisador Lucía Dammert, uma das autoras do estudo “Por que há tanta violência homicida na América Latina? Caracterizando o fenômeno e expandido seu marco de interpretação”, publicado este ano.

Mais de 117 mil pessoas foram assassinadas na América Latina e Caribe em 2023, segundo levantamento feito pelo Insightcrime, que investiga o crime organizado na região. O número já supera o estimado de mortos na Ucrânia, que está em guerra há dois anos, e tende a ser ainda maior porque esses dados mais recentes ainda não estão disponíveis em vários países.

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“Os homicídios estão vinculados à cobranças de dívidas, acertos de contas, situação que é muito dos mercados ilegais, estão ligados às organizações criminosas mais regionais”, afirma Lucía Dammert, destacando que não há uma organização central que controle o crime na região. “Pelo contrário, parece haver uma rede flexível de conexões entre gangues em várias cidades”, explica.

Rotas do tráfico

Com os três maiores produtores de cocaína do mundo - Bolívia, Colômbia e Peru - na região, a América Latina tem um emaranhado de rotas que levam toneladas de drogas para os mercados ilegais dos Estados Unidos e Europa, principalmente.

E esses fluxos são cada vez mais dinâmicos. “As organizações criminosas estão constantemente buscando quais são os lugares onde há menor presença policial, mais espaço para corrupção, mais fraqueza do Estado, alguma crise que possam aproveitar”, afirma Lucía Dammert.

Exemplo dessa adaptação é a rota pelo Caribe. Com, o reforço do policiamento na costa colombiana, o crime organizado encontrou uma alternativa no transporte de drogas com barcos rápidos, de ilha por ilha, até chegar à portos e aeroportos de maior porte da República Dominicana. De lá, parte a cocaína que é traficada, geralmente para Espanha, pela facilidade do idioma, e distribuída para outros países da Europa, mostrou o Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS).

Paraguai e o avanço do PCC

Outro exemplo é a via fluvial entre Paraguai, Argentina e Brasil. O último relatório do Unodc sobre cocaína identificou, a partir dos dados de apreensões envolvendo Hidrovia Paraná-Paraguai e incidentes com aeronaves, um fluxo que passa pelo território brasileiro e segue para abastecer os mercados ilegais da Europa e também da África.

O Paraguai funciona como intermédio para a cocaína que vem da Bolívia e é também o maior produtor de maconha da América do Sul. E virou um dos focos do Primeiro Comando da Capital (PCC), em sua estratégia de expansão na venda de drogas pelo atacado.

A disputa entre as organizações criminosas brasileiras (PCC e Comando Vermelho) e as gangues paraguaias levou a região de Amambay, na fronteira, a ser considerada um dos focos da violência na América Latina nos últimos anos em análise do Insightcrime publicado no ano passado.

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Amambay registrou uma taxa de 70 homicídios por 100 mil habitantes em 2021 - o ano mais violento em um período de quatro anos. A crise está concentrada principalmente na capital de Pedro Juan Caballero. Separada por uma rua de Ponta Porã, no Mato Grosso do Sul, a cidade virou uma espécie de sede do PCC no Paraguai, que disputa com gangues locais.

Trem de Aragua, a temida gang da Venezuela

O avanço do Primeiro Comando da Capital também é marcada por cooperações com facções de outros países, como o temido Trem de Aragua, da Venezuela, com a qual guarda algumas semelhanças: a capacidade de organização, expansão e diversificação dos negócios do crime.

O Trem de Aragua, por exemplo, tem cerca de 20 práticas criminosas mapeadas. Além das drogas, a organização também está envolvida com tráfico de imigrantes, que fugiram da crise econômica nos últimos anos, e armas, aponta a jornalista Ronna Rísquez, que investiga a facção.

Esse último, inclusive, seria um dos pontos de contato com o PCC: as investigações indicam que o Trem de Aragua forneceria armas para a facção brasileira. “Eles também fizeram acordos nas fronteira entre Colômbia e Venezuela, não operam juntos, mas cada um respeita a sua parte”, afirma.

Durante a pesquisa para o seu livro “Trem de Aragua”, Ronna se passou por familiar de um detento para entrar no presídio de Tocorón, berço e QG da facção. Lá, ela se deparou com bares, restaurantes, boates e até um zoológico. O luxo dos criminosos depois receberia atenção internacional, quando mais de 11 mil policiais e soltados retomaram o controle da penitenciária a mando do ditador Nicolás Maduro. Mas o seu detento mais famoso, Héctor “El Niño” Guerrero, havia fugido.

“Parecia uma pequena cidade dentro de uma prisão”, lembra Ronna Rísquez. “Uma pessoa com quem falei dizia que era uma prisão para ricos. Era preciso ter dinheiro para estar bem. Só desfrutavam que tudo aquilo que viam aqueles que pudessem pagar. Havia lojas na prisão, mas roupas, licores, comer nos restaurantes... Tudo custava muito dinheiro e todo esse dinheiro, esses negócios eram negócios da organização criminosa”.

Internamente, as disputas de outras gangues e os enfrentamentos com as forças de segurança puxam para cima as mortes violentas na Venezuela ao mesmo tempo em que o Trem de Aragua se expande para além das fronteiras.

Crime acende alerta no Chile, um dos países mais seguros da região

Esta semana, o Ministério Público do Chile concluiu que o Trem de Aragua está por trás do assassinato do dissidente venezuelano Ronald Ojeda. O ex-militar crítico ao regime Nicolás Maduro foi sequestrado da casa onde vivia, em Santiago. Dias depois, o corpo foi encontrado dentro de uma mala.

A capital chilena tem uma taxa de 10 homicídios a cada 100 mil habitantes, o dobro da média nacional (4,7/100 mil, bem abaixo da média na América Latina). Mas foi no Norte do país que a violência acende o alerta. Situada na fronteira com Bolívia e Peru, a região de Arica y Parinacota, é considera uma rota estratégica para maconha e cocaína e se viu invadida nos últimos anos por facções de outros países, como o Trem de Aragua.

Palco da disputa pelo controle de rotas, a região registrou, em 2022, a maior taxa de homicídios do país: 17 por 100 mil habitantes. Diante da crise, autoridades reforçaram a segurança e celebraram uma redução de homicídios no ano seguinte, mas faltam dados consolidados de 2023 para estabelecer uma comparação mais precisa.

Argentina e o crime ‘desorganizado’

Assim, como o Chile, a Argentina tem índices de mortes violentas mais parecidos com a média global e bem abaixo dos padrões na América Latina. Mas Rosário, a cidade portuária onde nasceu o ídolo da seleção Lionel Messi, foge à regra, com o recorde de 24 homicídios por 100 mil habitantes, em 2023.

A crise se arrasta há uma década, apesar de melhores pontuais. A explicação, afirma o professor de Ciência Política e pesquisador de violência na Universidade Nacional de Rosário Marco Iazzetta é o que ele chama de “crime desorganizado”

“A fragmentação criminal em Rosário é evidente com muitos grupos, gangues e bandos, mas não se assemelha ao que acontece em cidades como Rio de Janeiro e São Paulo. Aqui, são pequenos grupos locais, dedicados principalmente ao tráfico de drogas, sem uma hegemonia clara entre eles. Não houve nenhum grupo que tenha conseguido impor o seu domínio sobre os outros ou estabelecer regras de divisão de território”, explica.

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E o Estado argentino tem sido incapaz de pacificar esse fratricídio entre as gangues. A polícia, afirma o pesquisador, não tem conseguido acompanhar as novas dinâmicas do crime organizado e do tráfico de drogas. “Além disso, há corrupção policial. Grupos criminosos conseguem se infiltrar e cooptar agentes ou funcionários importantes das forças de segurança”.

Polícia chega a ponto de venda de drogas destruído pela população em Rosário, na Argentina. Foto: STRINGER / AFP

‘Pax mafiosa’

A tese do “crime desorganizado” encontra respaldo no último relatório do Unodc sobre a violência na América Latina, de 2023. A publicação faz a ressalva de que, não necessariamente, a presença de organizações criminosas se traduz em taxas de homicídio. E cita o Brasil, onde as números estão em queda desde o pico de violência em 2017, quando 59 mil pessoas foram assassinadas.

“Tipos de crime organizado, como o tráfico de drogas em larga escala, podem ser gerenciados de maneiras que podem ou não promover violência”. A existência de grupos hegemônicos, que exercem controle de territórios e mercados ilegais podem ter esse efeito. Bem como pactos informais, com outras gangues e até com agentes do Estado - a chamda “pax mafiosa”.

“Em São Paulo, a maior cidade do Brasil, áreas dominadas pelo Primeiro Comando da Capital (PCC) aparentemente experimentaram menos crimes violentos, o que alguns estudos indicam ser devido ao monopólio do grupo sobre o crime”, aponta o relatório.

Em outros Estados, como a Bahia, a disputa de gangues locais associadas ao PCC e ao Comando Vermelho impulsionam a violência, que contrasta com a redução dos homicídios. Feira de Santana despontou em 19º no ranking das cidades mais perigosas do mundo, com 58 homicídios por 100 mil habitantes, segundo a ONG mexicana.

Guerra entre facções causou massacre na penitenciária de Alcaçuz, na grande Natal, em 2017, ano em que o Brasil teve pico de homicídios, com quase 60 mil pessoas assassinadas Foto: Alex Silva/Estadão Conteúdo

O México e a ameaça dos sintéticos

Ao passo em que os mercados de cocaína se expandem, surge uma nova ameaça: as drogas sintéticas. O uso de fentanil e metanfetamina, que viraram uma crise de saúde nos Estados Unidos ainda não são tão comuns na América Latina, segundo especialistas. Mas o caso de Colima, palco da disputa de carteis por essa rota, mostra como o aumento do consumo em cidades americanas já respinga aqui.

“Ainda não temos uma crise de consumo de opioides como nos Estados Unidos”, afirma Lucía Dammert. “O que acontece com o fentanil e das drogas químicas de maior consumo nos Estados Unidos é que fortalecem as estruturas de venda dentro dos países da América Latina. Então também geram outro tipo de problemática de violência”.

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Além disso, o que acontece nos EUA deveria servir de alerta para as autoridades latino-americanas. “A maioria das agências de segurança da região não está de forma alguma preparada para uma crise de consumo de opioides, como está acontecendo nos Estados Unidos hoje. É necessária uma ação muito rápida justamente para evitar isso”, conclui.

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