A coalizão governista na Argentina naufraga dividida em um cenário político em ebulição. A poucos meses das eleições primárias, que irão definir os partidos que vão disputar o controle da Casa Rosada, a esquerda, reunida na frente eleitoral Unión por la Pátria — movimento recém fundado pelo atual presidente da Argentina, Alberto Fernández, junto com a vice-presidente Cristina Kirchner — não consegue definir um candidato comum para as eleições.
Brigas internas e atritos pelo poder bloqueiam qualquer possibilidade de acordo político entre as facções peronistas, que buscam reter o governo nas eleições deste ano em um país politicamente exaurido e imerso em uma crise econômica corrosiva.
Dentre os nomes mais cotados para representar a coalizão, estão o ex-ministro de Economia Sergio Massa, o embaixador da Argentina no Brasil Daniel Scioli, o ministro do interior Eduardo “Wado” de Pedro e o advogado e militante político Juan Grabois. De Pedro confirmou a candidatura na noite de quinta-feira, 22. A tendência, no momento, é de uma disputa entre o afilhado político de Cristina e o embaixador em Brasília.
Esquerda em baixa
Mas diante da ausência de Fernández, Cristina e o ex-presidente Mauricio Macri na disputa, que declinaram se candidatar nestas eleições devido aos baixíssimos índices de popularidade obtidos após anos de governos com pouca aprovação, as chances de participar em um segundo turno das eleições em outubro podem se dissipar rapidamente se agentes externos, como por exemplo o ultraliberal Javier Millei, conseguirem ocupar o vácuo deixado por partidos tradicionais na esfera pública.
Para Carlos De Angelis, professor de Sociologia da Opinião Pública da Universidade de Buenos Aires, este cenário tem gerado um “desconforto social muito grande” que apenas “contribui com a redução das intenções de voto na coalizão governista”.
Reportagens especiais
Com apoio do kirchnerismo, Massa aceitou a difícil tarefa de ser ministro da economia acreditando que teria sucesso em controlar a inflação. Contudo, o aumento da inflação fez o nome do político perder peso frente aos eleitores; e as políticas pouco populares dentro da coalizão minaram um pouco o apoio kirchnerista.
“Se Massa não tivesse aceitado ser ministro da economia, ele seria um candidato unânime. Mas, agora, o kirchnerismo mais radical não quer ele”, diz o analista político Sergio Berensztein. “A visão de Massa é moderada em relação à política monetária argentina. Para ele, mudanças radicais na devaluação da moeda devem ser evitadas a todo custo. E isso vai na contramão do que certos políticos da coalizão [Unión por la Pátria] acreditam”.
Por outro lado, Daniel Scioli tem a aprovação de Fernández — que não demonstra a preferência publicamente—, mas não conta com o apoio dos Kirchner, com quem mantém atrito desde o início de sua campanha. Recentemente, o Partido Justicialista da província de Buenos Aires emitiu um forte comunicado de Máximo Kirchner, filho da Cristina e presidente do partido, no qual ele acusa o presidente argentino Alberto Fernández e o embaixador no Brasil de “se vitimizarem” e colocarem em risco o futuro do peronismo com a ameaça de judicializar a discussão partidária.
De acordo com Berensztein, Wado de Pedro é um dos candidatos considerados como favoritos da ex-presidente, mas ele é pouco conhecido pelo público argentino.
Juan Grabois, por sua vez, também é um dos nomes de interesse de Cristina. O sindicalista acredita que pode ter o apoio da ex-presidente para as primárias. No mês anterior, Grabois afirmou no programa de rádio El Destape Sin Fin: “Vamos fazer um acordo com Cristina, não com aqueles que a cercam”, comentando sobre as opiniões favoráveis a Massa dos aliados da ex-presidente.
A indecisão no campo peronista é um reflexo da crise de identidade do eleitorado argentino, sobretudo os mais pobres, que não conseguem se ver representados na política tradicional.
“O sistema político na Argentina esteve há muito tempo dividido entre o peronismo e o radicalismo. O panorama mudou depois de 2001, com o kirchnerismo e subsequentemente o macrismo no poder. Mas o sistema que evolui desde o início do século está atualmente em crise, e a expansão de uma classe pobre que não acredita mais nesse sistema tem gerado rachaduras nas alianças do passado”, afirma De Angelis em entrevista ao Estadão. “A população então acaba cansando de escutar apenas que há atritos pelo poder, sem soluções racionais para a crise”, completou ele.
Uma coalizão sem projeto comum
No ato público em razão da fundação do Unión por la Pátria (que previamente chamou-se Frente de Todos), que ocorreu na última quinta-feira, 15, o presidente argentino afirmou: “Cristina e eu, acima de quaisquer diferenças, temos a mesma visão e o mesmo objetivo com relação ao país que queremos construir”.
Contudo, de Santa Cruz e acompanhada pelo ministro de Obras Públicas, Gabriel Katopodis, que já foi um dos políticos mais próximos de Alberto Fernández, a vice-presidente realizou na sexta-feira, 16, diversas declarações que deixaram novamente expostas as diferenças entre o peronismo e o kirchnerismo apenas um dia depois da apresentação da nova aliança.
“Se você quer ser presidente e se candidatar ao cargo, é porque quer governar o país e decidir o que será feito”, diz ela. “Para isso, você precisa de recursos, por isso Néstor [Kirchner] fez o ato mais pragmático de que se tem memória, que foi pagar o FMI e retomar o comando da economia”, afirmou Cristina, se referindo às diferenças políticas entre o atual presidente e o falecido líder.
Acordo com o FMI
Um dos assuntos que mais divide a coalizão do governo é justamente a relação da Argentina com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Um ano após a assinatura do polêmico acordo do país vizinho com o FMI para ampliar o prazo de pagamento da dívida de US$ 45 bilhões, o presidente Fernández continua defendendo a reestruturação da dívida que sua administração realizou em relação ao empréstimo acordado pelo governo anterior, de Macri. Sergio Massa, outro nome de força na coalizão e ex-ministro da economia, também defendeu as possíveis renegociações.
Já Cristina critica o acordo e acusa seus inimigos políticos de buscar apagar o debate sobre a dívida. “Se apontarem uma arma para sua cabeça, não diga que está tudo sob controle”, afirmou ela na última sexta-feira.
Além disso, as diversas acusações de corrupção contra a ex-presidente também passaram a desgastar a relação com os aliados ideológicos, que têm buscado espaços próprios e novas alianças para tentar mudar a imagem pública dos seus respectivos partidos.
De acordo com De Angelis, essa divisão interna — que nasceu de visões bastante diferentes de como solucionar a crise econômica da Argentina, mas que depois se ampliou para outras questões essenciais — tem causado um certo desinteresse dos eleitores pelos políticos tradicionais.
“Para muitas pessoas, desencantadas com o estado atual da política nacional, nem o peronismo, nem o kirchnerismo, nem o macrismo conseguiram solucionar os problemas da inflação e da pobreza na Argentina”, comenta o sociólogo. “Por isso têm surgido no debate público figuras disruptivas como Javier Milei, que fala com o público de um jeito diferente sobre coisas como economia, quando ninguém quer tratar sobre economia”.
Sob as asas de Fernández e Cristina
No país vizinho, foi aprovada em 2009 uma lei que instaurou as Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (PASO), que são nada menos que eleições que definem quais partidos irão disputar as eleições gerais e quais serão os políticos a compor as listas. Nestas eleições, que em 2023 iniciam no dia 13 de agosto, toda a população pode participar, independentemente de serem filiados aos partidos ou não.
A escolha do candidato da coalizão é, neste momento, um dos assuntos mais sensíveis para Fernández e Cristina. Os aliados da frente de esquerda aguardam há meses um sinal claro destes políticos em relação aos nomes que seriam apoiados por ambos. Contudo, para o presidente e sua vice, manifestar apoio ao candidato “errado” pode ter um impacto radicalmente negativo na campanha eleitoral.
“A questão que está em jogo agora mesmo é a escolha da pessoa com maior força política para conseguir enfrentar, com sucesso, uma possível segunda volta [das eleições] contra a oposição, ou contra algum outro candidato ‘outsider’”, disse ao Estadão Mariel Fornoni, diretora da consultoria Management & Fit.
Para ela, um cenário muito possível para as eleições deste ano é que nenhum dos dois principais grupos políticos, Juntos por el Cambio (de centro-direita) e Unión por la Pátria obtenha o mínimo necessário de 45% dos votos para vencer no primeiro turno, nem ultrapasse dos 40% com uma diferença de 10 pontos sobre a segunda coalizão. Então, a partir deste cenário, pelo menos um outro grupo político de oposição estaria concorrendo à presidência da Argentina. Isso tem sido raro nos últimos anos, mas se acontecer, pode colocar em xeque a estratégia das coalizões principais.
“Eles acreditam que o Unión por la Pátria tem a capacidade de vencer a eleição contra a coalizão opositora. Porém, ninguém sabe como seria o cenário em uma disputa contra Milei”, afirma Mariel Fornoni. “Uma frente quebrada deixaria a eleição bastante atomizada, fraca. Para realizar as transformações que a Argentina precisa, é necessário um nome forte”.
“A poucos dias de apresentar a lista de candidatos oficiais para o PASO, ambos lados da coalizão vão ter que se arriscar de algum jeito. Mas a imagem é tudo, e propostas vazias não vão convencer os eleitores argentinos”, diz Berensztein.
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