PARIS - A ministra do Interior do Reino Unido, Priti Patel, foi acusada ontem pelo ministro do Interior da França, Gérald Darmanin, de fazer chantagem financeira em uma discussão diplomática que se aprofunda sobre os esforços para impedir que os imigrantes cruzem o Canal da Mancha de barco. Os refugiados têm arriscado suas vidas em uma das rotas de navegação mais movimentadas do mundo em pequenos botes.
Darmanin disse que os planos do Reino Unido, divulgados na noite de quarta-feira, de devolver os barcos com pessoas vulneráveis às águas francesas não seriam aceitos. “A França não aceitará qualquer prática que vá contra as leis marítimas e não aceitará qualquer chantagem financeira”, disse o francês.
Vários jornais britânicos afirmam que Patel já aprovou a medida e a força de fronteira britânica será treinada em novos métodos para obrigar as embarcações lotadas de migrantes a retornar antes que alcancem as costas do sul da Inglaterra. Michael Ellis, o procurador-geral interino do Reino Unido, elaborará uma base legal para os oficiais de fronteira implementarem a nova regra.
A estratégia, respaldada pelo primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, seria utilizada apenas em circunstâncias limitadas, segundo o jornal The Daily Telegraph, para as embarcações maiores e quando for considerado seguro adotar a medida. E, para aplicá-la, afirma o jornal The Times, Patel solicitou que a interpretação do Reino Unido do direito marítimo internacional seja reescrita.
Mas, ao advertir que as devoluções em alto-mar podem prejudicar a cooperação entre os dois países, que passam por um momento de tensão desde o Brexit, Darmanin pediu ontem ao Reino Unido que cumpra seu compromisso.
O governo do Reino Unido se comprometeu, em julho, a pagar à França mais de € 60 milhões (cerca de R$ 376 milhões), em 2021-2022, para financiar a maior presença policial francesa nas costas. Mas, segundo a imprensa britânica, Patel ameaçou, no início da semana, não transferir os recursos prometidos caso não sejam registrados avanços na questão migratória.
Londres nega que esteja fazendo chantagem e o porta-voz de Johnson garantiu que o governo trabalha com a França para implementar os acordos. Patel e Darmanin se reuniram na quarta-feira.
A ministra britânica afirmou, após o encontro, que desejava obter resultados e faria do fim dessas travessias uma prioridade absoluta. Mas, em carta a Patel, com data de segunda-feira e divulgada ontem, Darmanin advertiu sobre o perigo para a segurança dos migrantes. “No mar, a salvaguarda da vida humana tem prioridade sobre as considerações de nacionalidade, status e política migratória, em estrito cumprimento do direito marítimo internacional”, disse.
O próprio Johnson afirmou, na quarta-feira, no Parlamento, que o Reino Unido deve utilizar todos os meios a seu alcance para acabar com o comércio ilegal dos traficantes que atravessam o Canal da Mancha. Nas últimas semanas, foram registrados recordes de chegadas de migrantes irregulares, estimulados pelo tempo bom em alto-mar.
Na segunda-feira, 785 imigrantes chegaram ao Reino Unido desta maneira, após o recorde registrado em agosto de 828 pessoas em apenas um dia, o que elevou o total do ano a mais de 13 mil, segundo a agência de notícias britânica PA.
Londres quer impossibilitar as perigosas travessias do Canal da Mancha e pressiona Paris a redobrar seus esforços para evitar as viagens. “Dependemos muito do que os franceses fazem”, admitiu Johnson.
Mas, em sua carta, Darmanin rejeitou a proposta britânica de criação de um centro de comando conjunto único para as forças francesas e britânicas por considerá-la contrária à soberania francesa e desnecessária porque a coordenação no local já é boa e eficaz, segundo ele. O ministro francês destacou que o aumento do número de imigrantes que desembarcam no Reino Unido se deve principalmente ao uso de embarcações maiores por parte dos traficantes, que podem transportar até 65 pessoas, em comparação às 15 que costumavam levar.
ONGs e instituições de apoio a imigrantes disseram que os planos britânicos podem ser ilegais. O Channel Rescue, grupo de patrulha que procura migrantes que chegam ao longo da costa inglesa, disse que a lei marítima internacional estipula que os navios têm o dever claro de ajudar os que estão em perigo.
Clare Mosely, fundadora da instituição de caridade Care4Calais, que ajuda migrantes, afirmou que o plano colocaria em risco a vida dessas pessoas. “Elas não vão querer ser mandados de volta. Elas poderiam tentar pular do barco”, disse.
O número de migrantes que cruzam o Canal da Mancha em pequenos botes aumentou este ano, depois que os governos britânico e francês restringiram outras formas de entrada ilegal, como esconder-se na traseira dos caminhões que cruzavam os portos na França.
A quantidade de migrantes que tentam chegar ao Reino Unido é minúscula em comparação aos fluxos migratórios para países como o Líbano e a Turquia, que abrigam milhões de refugiados. No entanto, a questão se tornou um grito de guerra para os políticos do Partido Conservador, de Johnson. A imigração foi uma questão central na decisão do referendo de 2016 de deixar a União Europeia./ AFP e REUTERS
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