Crise sobre lei marcial na Coreia do Sul reaviva memórias do Massacre de Gwangju, de 1980

Revolta contra o golpe de Estado que instaurou a ditadura no país foi duramente reprimida e pode ter deixado mais de mil mortos, segundo estudos acadêmicos

PUBLICIDADE

Por Kelsey Ables (The Washington Post )

A súbita declaração de lei marcial do presidente sul-coreano, Yoon Suk-yeol, na noite da terça-feira, surpreendeu o mundo, mas para muitos na Coreia do Sul também trouxe à tona memórias obscuras sobre a luta brutal por democracia ocorrida em seu país décadas atrás.

PUBLICIDADE

O movimento de Yoon foi revertido em horas, o que comprova, segundo alguns especialistas, a força da democracia sul-coreana. Mas nas horas de incerteza durante a madrugada da quarta-feira muitos se recordaram com medo de momentos críticos na história sul-coreana: o golpe de Estado de 1979 que instalou uma ditadura militar e a mortífera Revolta de Gwangju.

“Nós perdemos gente demais por causa de leis marciais no passado”, disse Choi Myung-jin, de 60 anos, que se encaminhou para o edifício da Assembleia Nacional assim que soube da notícia. “Eu tive de vir para cá para evitar que a história se repetisse”, afirmou ela.

Protestos exigem renúncia do presidente Yoon Suk Yeol após lei marcial, que reviveu as memórias da ditadura sul-coreana.  Foto: Philip Fong/AFP

Quando o professor de sociologia contemporânea da Universidade Stanford Gi-Wook Shin soube da declaração, “eu pensei que isso só poderia ser fake news. Como isso poderia ocorrer em 2024?”. Ele enfatizou que a situação atual é muito diferente do que ocorria quando a Coreia do Sul lutava contra a ditadura. “Acredito que a democracia (sul-)coreana se fortalecerá depois disso.”

Publicidade

A última imposição de lei marcial na Coreia do Sul tinha ocorrido em 1980, meses depois do golpe de Estado de 12 de dezembro de 1979, conhecido como o incidente 12/12, que instaurou no país uma ditadura militar liderada pelo general Chun Doo-hwan.

Em 17 de maio de 1980, Chun declarou a lei marcial em todo o país, e no dia seguinte, na cidade de Gwangju, no sudoeste sul-coreano, ativistas pró-democracia — em sua maioria estudantes — se levantaram contra a ditadura e foram alvo de uma violenta repressão em resposta.

Durante a insurreição, forças militares ocuparam a cidade, agentes a serviço do Estado espancaram manifestantes e generais ordenaram que seus soldados disparassem indiscriminadamente contra multidões. Os moradores de Gwangju se uniram para formar uma milícia e resistir à violência, conseguindo manter-se no controle de Gwangju por vários dias — até que tanques foram acionados e esmagaram o levante definitivamente.

A Coreia do Sul só iniciou a transição para a democracia sete anos depois, mas a revolta é vista com frequência como um momento crítico que acelerou o progresso.

Publicidade

Não há uma estimativa universalmente aceita sobre o número de mortes na ação frequentemente chamada de Massacre de Gwangju. Registros do governo afirmam que mais de 160 pessoas morreram, enquanto alguns acadêmicos colocam o número em mais de mil. O incidente é considerado o exemplo mais sangrento de repressão do governo na história contemporânea da Coreia do Sul, de acordo com o Wilson Center.

“Acredita-se, de certa forma”, afirmou Shin, o professor de Stanford, “que os novos militares estavam uma vez mais marcando uma posição ao reprimir essas pessoas em Gwangju”, cidade onde vivia o maior líder opositor na época e localizada numa região negligenciada havia muito pelo governo. “O povo de Gwangju lutou por dignidade humana básica”, afirmou ele.

O professor de estudos coreanos Andrew David Jackson, da Universidade Monash, na Austrália, disse que há paralelos entre a declaração da terça-feira e o passado que “assombrarão muitos sul-coreanos que se lembram dessa época”. Ele apontou para o fato de nem Yoon nem Chun terem informado autoridades dos Estados Unidos a respeito de suas intenções e notou que ambos os líderes colocaram a culpa na Coreia do Norte e em forças internas não especificadas ao justificar a aplicação da lei marcial.

Imagens do rosto de Yoon sobreposto a um retrato de Chun se espalharam em redes sociais após a ordem de Yoon, que, segundo o presidente, serviu para impedir atividades “anti-Estado” na Assembleia Nacional.

Publicidade

Jackson disse ter imaginado que muitos sul-coreanos assistiram à declaração “e pensaram, ‘Aqui vamos nós outra vez’”.

Esse período tumultuado é revisitado regularmente em filmes e livros, assim como no sempre presente discurso cultural sul-coreano. Han Kang, cujo romance “Atos humanos” gira em torno da Revolta de Gwangju, ganhou um Prêmio Nobel este ano. Um filme recente sobre o golpe de 1979, “12.12: The Day”, recebeu vários prêmios.

Polícia monitora protestos contra o presidente Yoon Suk Yeol. Foto: Philip Fong/AFP

O professor de história coreana Donald Baker, da Universidade da Colúmbia Britânica, que testemunhou os desdobramentos em Gwangju em 1980, disse que o anúncio de Yoon desencadeou memórias dolorosas.

“Afinal, foi a expansão da lei marcial nacionalmente, em 17 de maio de 1980, que sinalizou o que estava por vir: os massacres em Gwangju e os sete anos sob a ditadura brutal e corrupta de Chun Doo-hwan”, afirmou ele. “Essas memórias são particularmente dolorosas para aqueles de nós que estávamos em Gwangju na primavera de 1980 e viram os corpos sem vida nas ruas.”

Publicidade

Mas Baker também encontrou otimismo na conexão entre esses dois momentos: “Talvez as memórias da violência e da corrupção do regime de Chun tenham sido suficiente para até pessoas de direita se oporem à tentativa de Yoon de arrebentar a democracia que os (sul-)coreanos construíram com tanto esmero”, afirmou ele. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

* Julie Yoon e Adam Taylor colaboraram nesta reportagem

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.