O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva recebeu mal movimentos recentes do embaixador de Israel em Brasília, Daniel Zonshine, que envolveram reuniões com parlamentares de oposição e o ex-presidente Jair Bolsonaro, além de declarações públicas sobre a suposta presença de representantes da milícia radical xiita Hezbollah no Brasil.
A insatisfação com as autoridades israelenses foi expressada publicamente pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, e pela Polícia Federal. Internamente, Itamaraty e Planalto também reconhecem o desconforto. Em nota, a embaixada de Israel disse que Bolsonaro apareceu sem ser convidado na reunião da Câmara e agradeceu ao governo brasileiro pela operação contra o Hezbollah.
“A reunião de ontem no Congresso Nacional teve como intenção mostrar as atrocidades do 7 de outubro cometidas pelos terroristas do Hamas. Um material muito bruto e sensível. Convidamos parlamentares e apenas parlamentares. A presença do ex-presidente não foi coordenada pela Embaixada de Israel e não era de nosso conhecimento antes da reunião”, diz o texto. “Gostaríamos também de agradecer às autoridades brasileiras pelo sucesso da operação para evitar os ataques terroristas que teriam sido planejados aqui pelo Hezbollah.”
Ao Estadão, o embaixador reafirmou o conteúdo da nota divulgada pela embaixada. Ele disse também que os brasileiros retidos em Gaza devem deixar o enclave na sexta-feira, 9.
A assessoria de Bolsonaro confirmou que ele apareceu na reunião sem ser convidado, levado por parlamentares aliados.
Reunião e entrevista
O descontentamento com o governo israelense e seus emissários não é recente. A insatisfação já vinha de alguns dias, em virtude da demora na retirada dos 34 brasileiros que querem deixar a Faixa de Gaza. Mas a situação piorou na quarta-feira, tanto pela reunião de Zonshine e sua entrevista ao jornal O Globo, como também por declarações do gabinete do premiê israelense, Binyamin Netanyahu, sobre o envolvimento do Mossad, o serviço secreto israelense, na Operação Trapiche, da Polícia Federal.
Na quarta-feira, Zonshine participou de uma reunião com parlamentares em Brasília, que contou com a presença de Bolsonaro, para mostrar as imagens do atentado do Hamas do dia 7, que deixou 1,4 mil israelenses mortos e 240 reféns. Um pequeno vídeo foi publicado pelo ex-presidente em suas redes sociais, mas detalhes do encontro não foram tornados públicos.
No mesmo dia, ao Globo, Zonshine afirmou que o Hezbollah planejou ataque terrorista no Brasil por ter apoiadores no País. “Se escolheram o Brasil, é porque tem gente que os ajuda.”
Em Israel, após a operação, o gabinete do premiê Binyamin Netanyahu divulgou nota agradecendo as autoridades brasileiras pela Operação Trapiche, ressaltou a colaboração do Mossad, o serviço secreto israelense, e afirmou que o Mossad continuará operando para prevenir esses ataques onde e quando for necessário.
Críticas de Flávio Dino
Nesta quinta-feira, 9, surgiram os primeiros indícios de desagrado do governo com as autoridades israelenses. Pela manhã, o ministro da Justiça Flávio Dino reagiu à nota do gabinete de Netanyahu em um post no X, o antigo Twitter.
“Nenhuma força estrangeira manda na Polícia Federal do Brasil. E nenhum representante de governo estrangeiro pode pretender antecipar resultado de investigação conduzida pela Polícia Federal, ainda em andamento”, disse Dino.
A PF, por sua vez, repudiou as declarações de Zonshine ao Globo em nota oficial, frisando que suas ações são técnicas e que não cabe à corporação ‘analisar temas de política externa’.
“Manifestações dessa natureza violam as boas práticas da cooperação internacional e podem trazer prejuízos a futuras ações nesse sentido”, declarou a coorporação. A PF ressaltou ainda que o inquérito que culminou na fase ostensiva da Trapiche é conduzido de forma ‘imparcial e isenta’ e indicou não admitir intromissões externas nas apurações.
Desconforto no Planalto
No Planalto, a orientação é não comentar os episódios recentes com Zonshine publicamente, sobretudo para não atrapalhar os esforços para retirar o grupo de 34 brasileiros da Faixa de Gaza. Internamente, no entanto, o governo reconhece que há uma proximidade do diplomata com parlamentares de oposição, sobretudo os mais próximos a Bolsonaro. Por isso, a reunião com o ex-presidente foi mal recebida.
A aposta no Ministério das Relações Exteriores é que o ato do embaixador terá consequências políticas e de relacionamento diplomático. Um embaixador da ativa ouvido pela reportagem disse, sob condição de anonimato, que Zonshine deverá receber no mínimo “um gelo”.
Em outras palavras, o diplomata israelense deverá ter mais dificuldades de ser recebido no Itamaraty e atendido pelo chanceler Mauro Vieira, em razão da indisposição política.
Para Denilde Holzhacker, professora de relações internacionais da Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM), a relação entre Brasil e Israel está deteriorada após os episódios recentes. “O encontro com Bolsonaro no momento crucial de tentar liberar os brasileiros em Gaza foi visto como muito fora do padrão porque Bolsonaro é ex-presidente e está inelegível”, avalia.
De acordo com a analista, no entanto, a permanência dos brasileiros em Gaza até certo ponto impede uma reação mais dura do governo, como uma convocação de um embaixador para consultas, por exemplo.
“Depois (que os brasileiros saírem de Gaza) é possível que o embaixador seja convocado para dar explicações. Pode ser que chame também o embaixador em Tel-Aviv como sinal de descontentamento. Mas enquanto os brasileiros estiverem em Gaza, o Brasil deve ter uma postura mais cautelosa”, explica.
Enquanto os brasileiros estiverem em Gaza, o Brasil deve ter uma postura mais cautelosa com Israel
Denilde Holzhacker, professora da ESPM
Rusgas diplomáticas
Integrantes do governo já haviam notado críticas de Zonshine em entrevistas, em virtude de declarações tanto do presidente Lula quanto do Itamaraty em defesa de soluções diplomáticas rechaçadas por Israel.
A simpatia de parte da esquerda e do PT à causa palestina também provocou rusgas nos últimos dias.A embaixada de Israel, por exemplo, rebateu nota do PT em que o partido equiparava os atos terroristas do Hamas à reação militar com os bombardeios em Gaza.
Na última semana, quando estava à frente do Conselho de Segurança da ONU, Mauro Vieira fez um discurso com cobranças aos israelenses de garantias e proporcionalidade na resposta militar e pediu o fim dos assentamentos na Cisjordânia.
Lula citou o termo genocídio para descrever a operação de guerra das Forças de Defesa de Israel. Depois, buscou reequilibrar o tom e se reuniu com famílias de vítimas dos dois lados no conflito. Nesta quinta, o assessor de relações internacionais Celso Amorim também usou o termo para se referir aos ataques israelenses em Gaza./ COLABOROU PEPITA ORTEGA
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