Da guerrilha aos sequestros no Brasil

Intervencionismo do regime cubano entrou em declínio com retirada de tropas da Etiópia e de Angola e com acordo de paz em El Salvador

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Foto do author Marcelo Godoy

A política precisa de símbolos. Fidel Castro tinha seu uniforme militar. A farda verde oliva representava o principal produto de exportação de Cuba: a revolução. Aventura ou solidariedade, essa política marcou o 3.º Mundo. Serviu de pretexto a golpes de estado, quarteladas e conspirações. Alimentou guerrilhas, atentados, exércitos, assassinatos e sequestros na América Latina, na África e no Oriente Médio.

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O intervencionismo cubano morreu antes de Fidel. Seu longo fim começou com a retirada de suas tropas da Etiópia (1989), e de Angola (1991) e com a deposição das armas em 1992 pela Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN), a guerrilha salvadorenha. Fez parte desse processo o expurgo do general Arnaldo Ochoa, o poderoso homem das forças especiais do Ministério do Interior cubano, fuzilado em 1989 depois de condenado por traição. Há muito Fidel aposentara o uniforme. Trocara-o pelo terno e gravata.

O fim dessa política, os fracassos econômicos e o desrespeito pelos direitos humanos não retiraram a simpatia da esquerda latina pelo Viejo. Gratidão é o que explicava essa atitude. “Hoje somos todos democratas, não concordamos com censura e prisões arbitrárias. Mesmo assim tínhamos dificuldade em criticá-lo, pois não esquecemos sua solidariedade”, diz o ex-guerrilheiro brasileiro Chizuo Ozava.

Ele tinha 25 anos quando desembarcou em Havana em 1970. Por dois anos, foi o homem da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), em Cuba. Tratava dos assuntos da organização com Direção Geral da Inteligência (DGI), do Ministério do Interior – chefiada pelo lendário barbudo Manuel Piñero Losada, “Mandamos de 20 a 25 homens para treinar guerrilha em Cuba”, conta Ozava, conhecido então como Mário Japa.

Quem mais formou guerrilheiros em Cuba foi a Aliança Libertadora Nacional (ALN) – entre eles o petista José Dirceu. Era o auge do sonho da esquerda de construir um, dois, muitos Vietnãs, de fazer a “revolução da revolução”, como defendia Regis Debray, o companheiro de Che Guevara na Bolívia, onde o revolucionário argentino morreu em 1967. A DGI e seus homens entraram na Venezuela em 1962 para apoiar a guerrilha de Douglas Bravo. No mesmo ano, mandavam armas às Ligas Camponesas, no Brasil – o material foi descoberto em Divinópolis, em Goiás – quando o País ainda vivia o governo democrático de João Goulart.

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O fracasso da intervenção direta na Venezuela afastou da América Latina as tropa cubanas. Dinheiro e treinamento eram as ofertas de Fidel para seus parceiros na região, como o ex-governador Leonel Brizola, que enviou em 1965 homens à Cuba com o objetivo de reproduzir a Sierra Maestra no Brasil – a iniciativa produziria apenas um fiasco, a guerrilha do Caparaó, desbaratada em 1967.

Fidel desistiu rápido do político gaúcho, então exilado no Uruguai, após o golpe contra Goulart em 1964. Trocou-o no Brasil por Carlos Marighella, o líder comunista que rompeu com o PCB para criar a ALN. “Em relação ao Brasil, a ALN era o interlocutor preferencial de Fidel. Mas os cubanos também mantinham laços conosco e com o MR-8 (Movimento Revolucionário 8 de Outubro)”, lembra Ozava.

Somoza. Na mesma época em que Ozava vivia em Cuba, a direção do Partido Revolucionário dos Trabalhadores-Combatente (PRT-Combatente) decidiu criar na Argentina o Exército Revolucionário do Povo (ERP), seu braço armado. Entre seus criadores estava Enrique Gorriarán Merlo. Em 1974, ele participaria da guerrilha em Tucumán. Fugiu da Argentina para Cuba em 1976, após o golpe militar. Chefiou a operação militar que matou com um tiro de bazuca o ex-ditador nicaraguense Anastácio Somoza em Assunção. Deposto em 1979 pela Revolução Sandinista, Somoza vivia exilado no Paraguai.

A Nicarágua, aliás, foi a única vitória da guerrilha no período. Fidel mandou à frente sul daquele país – comandada por Eden Pastora – o batalhão chileno treinado na academia de oficiais das Forças Armadas de Cuba que constituía a Frente Patriótica Manoel Rodrigues (FPMR), criada pelo Partido Comunista Chileno em resposta ao golpe que derrubou o socialista Salvador Allende, em 1973.

Com a ajuda cubana, a FPMR montou o atentado fracassado contra o ditador chileno Augusto Pinochet, em 1986. Meses antes, a DGI cubana desembarcara 80 toneladas de armas naquele país para os rodriguistas.

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Eles e os remanescentes do chileno Movimento Esquerda Revolucionária (MIR) e do ERP forneceriam à Cuba a maioria dos homens usados por Piñero nos anos 1980 e 1990 em operações que incluíam sequestros de empresários, como Abílio Diniz, no Brasil, em 1989, e assaltos a banco. Piñero deixara a DGI em 1974 e assumira o Departamento America do PC cubano, o “ministério da revolução”. O dinheiro soviético naqueles anos minguara, e ele achou outras formas de financiar a revolução. Gorriarán participou dessas ações. Em 1989 chefiou a invasão do quartel de La Tablada, em Buenos Aires, que deixou 39 mortos – Gorriarán morreria em 2006. 

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África. Fora da América, Cuba ajudou governos na Síria e na Argélia. Apoiou ainda, após a aventura de Che no Congo, grupos como o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), de Agostinho Neto. Com a independência do país em 1975, o MPLA estava acossado pelos rivais da Frente Nacional de Libertação de Angola, de Holden Roberto, e da Unita, de Jonas Savimbi – apoiada pela África do Sul. Os cubanos chegaram a Luanda (36 mil), puseram Roberto e Savimbi para correr.

Em 1977, impediram o golpe liderado por Nito Alves – ministro do interior apoiado pelos soviéticos. Ozava estava lá. Ele chegou a Luanda quatro meses após a independência e deixou o país em meio à feroz repressão que se seguiu ao golpe fracassado. “Os cubanos tomaram a rádio, controlaram Luanda e garantiram o governo.” Em 1987, salvaram mais uma vez o MPLA na batalha de Cuito Canevale, contra tropas da Unita e da África do Sul.

Na Etiópia, sem Fidel o coronel Mengistu Haile Mariam, que assumiu o poder após derrubar o imperador Hailé Selassie e instalara um regime marxista. não teria vencido a guerra de Ogaden (1978-1979) contra os separatistas da região e a Somália. De fato, dois anos após a saída dos cubanos, Mengistu caiu.

Cuba ainda esteve no Laos, no Iêmen do Sul, em Moçambique, Vietnã, Guiné e Guiné-Bissau. Pouco restou da época em que ela participava da grande política internacional. Fidel morre ao mesmo tempo em que as últimas peças do tabuleiro revolucionário, as Forças Armadas Revolucionária da Colômbia (Farc) e o Exército de Libertação Nacional (ELN), negociam a paz na Colômbia.

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O descrédito do foco guerrilheiro associado à burocratização do regime cubano se tornaram símbolos do desgaste do projeto que prometia revolucionar a revolução. “A figura de Lula hoje é mais importante para a esquerda do que a de Fidel”,diz Ricardo Zarattini, ex-militante da ALN, exilado em Cuba de 1970 a 1972. Abandonada pela esquerda, a luta armada tornou-se um fantasma de uma desgastada retórica antagonista.

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