Enquanto ocorria uma guerra no norte da Etiópia e a região avançava em direção a pior fome em décadas, um importante enviado americano voou para a capital do país, Adis-Abeba, no mês passado, na esperança de persuadir o primeiro-ministro Abiy Ahmed a tirar o país da espiral negativa que, muitos temem, o destrua por completo.
O primeiro-ministro, porém, queria dar uma volta de carro.
Ao assumir o volante, o líder etíope levou seu convidado americano, o enviado da administração Joe Biden ao Chifre da África, Jeffrey D. Feltman, em uma excursão improvisada de quatro horas por Adis-Abeba, disseram autoridades americanas. Ahmed o conduziu passando por novos e elegantes parques da cidade e uma praça central reformada e até caiu em um casamento onde os dois homens posaram para fotos com a noiva e o noivo.
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A tentativa de mudar o foco, mostrando o progresso econômico enquanto partes de seu país pegavam fogo, foi apenas o mais recente sinal de uma trajetória conturbada que confundiu observadores internacionais, que se perguntam como interpretaram o líder etíope tão mal.
Não muito tempo atrás, Abiy, que enfrenta os eleitores etíopes nas urnas segunda-feira, 21, em eleições parlamentares há muito adiadas, era uma esperança para o país e o continente. Depois de chegar ao poder em 2018, ele embarcou em um turbilhão de reformas ambiciosas: libertar prisioneiros políticos, receber exilados do exterior e, o mais impressionante, fechar um acordo de paz histórico com a Eritreia, o antigo inimigo da Etiópia, em questão de meses.
O Ocidente, ansioso por uma história de sucesso na África, ficou maravilhado e, em 18 meses, Abiy, um ex-oficial de inteligência, recebeu o Prêmio Nobel da Paz.
Mas, em apenas nove meses, a imagem de Abiy mudou radicalmente. A guerra civil que eclodiu na região norte de Tigré, em novembro, tornou-se sinônimo de atrocidades contra cidadãos etíopes.
As forças de Abiy foram acusadas de promoverem massacres, agressões sexuais e limpeza étnica. Na semana passada, um alto funcionário das Nações Unidas declarou que Tigré estava passando por uma crise de fome - a pior do mundo desde que 250 mil pessoas morreram na Somália há uma década, disse ele.
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Em outros lugares da Etiópia, a violência étnica matou centenas e forçou dois milhões de pessoas a fugir de suas casas. Uma disputa de fronteira latente com o Sudão se transformou em um grande impasse militar.
Mesmo a votação desta segunda-feira, antes anunciada como a primeira eleição livre do país, e uma chance de virar a página em décadas de governos autocráticos, apenas reforçou as divisões internas e alimentou advertências sombrias de que o futuro da Etiópia está em dúvida.
"Essas eleições são uma distração", disse Abadir M. Ibrahim, professor adjunto de direito da Universidade de Adis-Abeba. "O Estado está à beira de um penhasco e não está claro se ele pode recuar. Só precisamos superar essa votação para que possamos nos concentrar em evitar uma calamidade."
O gabinete do primeiro-ministro não respondeu a perguntas e a um pedido de entrevista do The New York Times.
Espera-se que o Partido da Prosperidade de Abiy, formado em 2019 a partir de uma ex-coalizão governista, vença as eleições facilmente. Mas não haverá votação em 102 dos 547 distritos da Etiópia por causa da guerra, distúrbios civis e falhas logísticas. Os principais líderes da oposição estão presos e seus partidos estão boicotando a votação em Oromia, uma região extensa de 40 milhões de habitantes.
Abiy deu uma cara de bravura aos problemas de sua nação, repetidamente minimizando o conflito de Tigré como uma "operação de lei e ordem" e defendendo sua visão de uma Etiópia modernizada e economicamente vibrante.
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Os Estados Unidos, que deram à Etiópia US$ 1 bilhão (R$ 5,04 bilhão) em ajuda no ano passado, estão pressionando-o a mudar o foco imediatamente.
Depois de ser conduzido por Adis-Abeba pelo primeiro-ministro em maio, Feltman escreveu uma análise detalhada de sua viagem para o presidente Joe Biden e outros líderes em Washington, até mencionando uma sacudida repentina do veículo que espalhou café em sua camisa.
Semanas depois, o secretário de Estado, Antony J. Blinken, impôs proibições de visto para autoridades etíopes não identificadas.
Outros estrangeiros deixaram a Etiópia preocupados com a limpeza étnica em andamento. Pekka Haavisto, um enviado da União Europeia que visitou o país em fevereiro, disse ao Parlamento Europeu na semana passada que os líderes etíopes lhe disseram "eles vão destruir os Tigrayans."
O Ministério das Relações Exteriores da Etiópia considerou os comentários de Haavisto "ridículos" e uma "espécie de alucinação".
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A condenação global mais recente de Abiy, na cúpula do G7 da semana passada, representa uma queda vertiginosa para um jovem líder que até recentemente era mundialmente celebrado.
O turbilhão de reformas que ele instituiu após ser nomeado primeiro-ministro em 2018 foi uma forte repreensão à Frente de Libertação do Povo Tigré (TPFL, na sigla em inglês), um partido de rebeldes que se tornaram governantes que dominaram a Etiópia desde 1991 em um sistema autoritário que alcançou um crescimento econômico impressionante à custa de direitos civis.
Abiy prometeu governar de uma nova maneira. Ele permitiu partidos de oposição, antes proibidos, indicou mulheres para metade dos cargos em seu gabinete e alcançou a paz com a Eritreia, o que lhe rendeu um Prêmio Nobel.
Mas, ao agir rapidamente, Abiy também desencadeou frustrações reprimidas entre grupos étnicos que foram marginalizados do poder por décadas - principalmente seu próprio grupo, o Oromo, que representa um terço dos 110 milhões de habitantes da Etiópia. Quando os protestos em massa eclodiram, ele voltou ao velho manual: prisões, repressão e brutalidade policial.
Ao mesmo tempo, as tensões aumentaram com o TPLF, que se ressentia com Abiy. A liderança do partido recuou para Tigré, onde, em setembro passado, desafiou Abiy ao prosseguir com eleições regionais que haviam sido adiadas em todo o país por causa da pandemia.
No início de novembro passado, chegou a Washington a notícia de que a guerra estava se aproximando em Tigré. O senador Chris Coons, que tem um interesse de longa data na África, ligou para Abiy para alertar sobre os perigos de recorrer à força militar.
Coons, um democrata de Delaware, disse que lembrou ao líder etíope que a Guerra Civil Americana e a Primeira Guerra Mundial começaram com promessas de vitória militar rápida, apenas para se arrastar por anos e custar milhões de vidas.
O primeiro-ministro, contudo, não se intimidou. "Ele estava confiante de que tudo terminaria em seis semanas", disse Coons. Dias depois, na noite da eleição presidencial americana, eclodiram combates em Tigré.
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Abiy Ahmed deu poucas entrevistas. Mas as pessoas que lidaram com ele descrevem um homem cheio de autoconfiança, até mesmo "messiânico" - uma descrição encorajada por relatos próprios dele, de que sua ascensão ao poder foi predeterminada. Quando ele tinha 7 anos, disse Abiy ao The New York Times em 2018, sua mãe sussurrou em seu ouvido que ele era "único" e previu que "acabaria no palácio".
Um ex-conselheiro disse que uma forte fé cristã também orienta Abiy. Ele é um cristão pentecostal, uma fé que cresceu em popularidade na Etiópia, e acredita piamente no "evangelho da prosperidade" - uma teologia que considera o sucesso material como recompensa de Deus - disse o ex-conselheiro, que falou sob condição de anonimato para evitar represálias. Não é por acaso, acrescentou, que o partido fundado por Abiy em 2019 se denomine Partido da Prosperidade.
A fé evangélica de Abiy atraiu apoiadores influentes em Washington, incluindo o senador James M. Inhofe, republicano de Oklahoma, que disse ao Senado em 2018 como ele conheceu Abiy em uma reunião de oração onde "ele contou a história de sua jornada e fé em Jesus."
No mês passado, Inhofe viajou para a Etiópia para mostrar seu apoio a Abiy contra as sanções americanas.
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Outro relacionamento crucial para Abiy é com o líder ditatorial da Eritreia, Isaias Afwerki. As tropas da Eritreia que invadiram Tigré para apoiar a campanha de Abiy foram acusadas pelas Nações Unidas e grupos de direitos humanos das piores atrocidades do conflito. Agora, eles são um fator importante para a crise alimentar na região.
Soldados eritreus "usando a fome como arma de guerra" estão bloqueando os carregamentos de ajuda para as partes mais vulneráveis de Tigré, disse Mark Lowcock, o principal funcionário humanitário da ONU, ao Conselho de Segurança na semana passada.
A questão da Eritreia é a maior responsabilidade internacional do vencedor do Nobel da Paz, e alguns analistas o descrevem como sendo manipulado por Afwerki, um veterano com uma reputação de manobras estratégicas implacáveis. Segundo outros relatos, Abiy não tem escolha - se os eritreus partirem de repente, ele pode perder totalmente o controle de Tigré.
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A eleição provavelmente destacará os desafios crescentes no resto da Etiópia. Apenas no mês passado, 400 mil pessoas foram forçadas a deixar suas casas nas regiões de Amhara e Afar, disse Lowcock. Os militares assumiram o controle em várias partes de Oromia, onde eclodiu uma rebelião armada.
Coons, enviado por Biden para argumentar com Abiy em fevereiro, advertiu o líder etíope que a explosão de ódio étnico poderia abalar o país, assim como fez com a ex-Iugoslávia durante os anos 1990.
Abiy respondeu que a Etiópia é "uma grande nação com uma grande história", disse Coons.
A transformação de Abiy de ganhador do Prêmio Nobel da Paz em líder de tempo de guerra levou alguns de seus aliados a uma reflexão silenciosa. O brilho do Prêmio Nobel e um desejo ardente por uma história de sucesso na África cegaram muitos países ocidentais para suas falhas evidentes, disse Judd Devermont, um ex-oficial de inteligência nacional dos EUA para a África, agora no Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais.
Com interesse limitado na África, o Ocidente facilmente categoriza os líderes do continente como "bons" ou "maus", com pouco espaço para nuances, acrescentou.
"Temos que reconhecer que ajudamos a construir a visão de Abiy sobre si mesmo", disse ele. "Abordamos esses desafios muito cedo. Demos a ele um cheque em branco. Quando deu errado, inicialmente fechamos os olhos. E agora pode ser tarde demais".