De repente os EUA estão enfrentando China e Rússia ao mesmo tempo; leia artigo de Thomas Friedman

Com Pequim, a luta é menos visível e não envolve troca de fogo, mas terá um impacto tão grande quanto, ou até maior do que o conflito com Moscou

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Por Thomas Friedman (The New York Times)
Atualização:

Caso ninguém tenha notado, permita-me alertar a todos para uma robusta alteração no curso dos acontecimentos: os Estados Unidos estão agora em conflito com Rússia e China ao mesmo tempo. A vovó já dizia, “Nunca combata Rússia e China ao mesmo tempo”. Henry Kissinger também. Fazer isso pode até ser necessário para assegurar nossos interesses nacionais. Mas não tenham dúvida: os americanos estão navegando águas desconhecidas. Espero que não sejam as novas “guerras eternas”.

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A luta contra a Rússia é indireta, mas óbvia, em escalada e violenta. Estamos armando os ucranianos com mísseis inteligentes e informações de inteligência para forçar os russos a se retirar da Ucrânia. Sem desmerecer de nenhuma maneira a bravura dos ucranianos, o apoio dos EUA e da Otan tem desempenhado um papel importantíssimo nos sucessos da Ucrânia no campo de batalha. Perguntem aos russos. Mas como esta guerra vai acabar? Ninguém é capaz de dizer.

Hoje, porém, quero colocar o foco na luta contra a China, que é menos visível e não envolve troca de fogo, porque é travada principalmente no campo dos transistores que alternam entre os 1s e 0s digitais. Mas ela terá um impacto tão grande quanto, ou até maior, sobre o equilíbrio global de poder do que o ocasionado pelo combate entre Rússia e Ucrânia. E isso tem pouco a ver com Taiwan.

O presidente dos EUA, Joe Biden, diante de um computador quântico enquanto visita as instalações da IBM em Poughkeepsie, Nova York Foto: Mandel Ngan/AFP - 06/10/2022

Trata-se da luta pelos semicondutores — a tecnologia que está na base da era da informação. A aliança que projeta e fabrica os chips mais inteligentes no mundo também terá as armas de precisão mais inteligentes, as fábricas mais inteligentes e as ferramentas de computação quântica mais inteligentes para decifrar virtualmente qualquer forma de criptografia. Hoje, os EUA e seus parceiros lideram, mas a China está determinada em alcançá-los — e agora nós estamos determinados em evitar que isso aconteça. Começa o jogo.

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Na semana passada, o governo de Joe Biden publicou uma nova série de regulações para exportação que de fato diz aos chineses: “Achamos que vocês estão três gerações de tecnologia atrasados em relação a nós em termos de chips lógicos e de memória e equipamentos — e vamos garantir que vocês nunca nos alcancem”. Ou, conforme colocou mais diplomaticamente o conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan: “Dada a natureza essencial de certas tecnologias, tais como os avançados chips lógicos e de memória, devemos manter a maior liderança possível” — eternamente.

“Os EUA essencialmente declararam guerra contra a capacidade de avanço da China em seu uso de computação de alto desempenho para ganhos econômicos e em segurança”, disse ao Financial Times o especialista em China e alta tecnologia Paul Triolo, da firma de consultoria Albright Stonebridge. Ou, conforme fraseado pela Embaixada da China em Washington, os EUA almejam uma “hegemonia científico-tecnológica”.

Mas onde essa guerra vai acabar? Ninguém é capaz de dizer. Não quero que sejamos roubados por uma China que cada vez mais se vale da tecnologia para exercer um controle doméstico absoluto e empreender uma sinistra projeção de poder no exterior. Mas agora nos atrelamos ao caminho de negar à China tecnologias avançadas eternamente — eliminando qualquer esperança de colaborações com Pequim em que ambos os lados ganhem, em assuntos como meio ambiente e crimes cibernéticos, campos em que enfrentamos ameaças comuns e em que somos as duas únicas potências capazes de fazer alguma diferença. Que tipo de mundo isso produzirá? A China deve estar se fazendo essa mesma pergunta.

Minha única certeza é que as regulações publicadas na sexta-feira pelo Departamento de Comércio do presidente Joe Biden são uma nova barreira enorme em relação a controles de exportação e impedirão a China de poder comprar a maioria dos semicondutores mais avançados do Ocidente, assim como equipamentos que lhe permitam fabricá-los por conta própria.

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As novas regulações também impedem qualquer engenheiro ou cientista dos EUA de ajudar a China a fabricar chips sem autorização prévia, mesmo que os americanos estejam trabalhando na China em equipamentos não sujeitos aos controles de exportação. As regras também intensificam a vigilância para garantir que os chips de tecnologia americana vendidos para empresas na China não caiam nas mãos dos militares do país.

E, talvez de maneira ainda mais controvertida, a equipe de Biden acrescentou às regulações uma “regra para produto importado diretamente” que, conforme notou o Financial Times, “foi usada pela primeira vez pelo governo de Donald Trump contra o grupo chinês de tecnologia Huawei” e “efetivamente impede qualquer empresa, americana ou não, de fornecer a empresas chinesas especificadas hardware ou software cujas cadeias de fornecimento contenham tecnologia americana”.

Esta última regra tem implicações enormes, porque os semicondutores mais avançados são fabricados em uma cadeia que eu qualifico como “uma complexa coalizão adaptativa” de empresas americanas, europeias e asiáticas.

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Pensem nisso da seguinte maneira: AMD, Qualcomm, Intel, Apple e Nvidia detêm excelência em projetar chips que possuem bilhões de transistores empacotados cada vez em menos espaço para produzir o poder de processamento almejado. Synopsys e Cadence criam sofisticadas ferramentas computacionais de design e software nas quais os fabricantes de chips de fato desenham suas novas ideias. Applied Materials cria e modifica materiais para forjar os bilhões de transistores e conectar os fios nos chips.

ASML, uma empresa holandesa, fornece as ferramentas de litografia em parceria com, entre outras, Zeiss SMT, uma empresa alemã especializada em lentes óticas, que aplica o tracejado sobre os pedaços de silicone a partir desses projetos, usando luz ultravioleta profunda e extrema — uma longitude de onda capaz de imprimir designs minúsculos em microchips. Intel, Lam Research, KLA e empresas da Coreia do Sul, do Japão e de Taiwan também desempenham papéis cruciais nessa coalizão.

Imagem da fábrica de semicondutores TSMC em Nanjing, na província chinesa de Jiangsu Foto: China OUT/AFP - 10/08/2022

O ponto é: quanto mais explorarmos os limites da física e da engenharia de materiais para enfiar cada vez mais transistores nos chips para obter mais poder de processamento e continuar fazendo a Inteligência Artificial avançar, menos provável será que qualquer empresa — ou nação — alcance excelência sozinha em relação a todas as partes do processo de design e manufatura dos chips. A coalizão inteira é necessária. A razão pela qual a Taiwan Semiconductor Manufacturing Co., conhecida como TSMC, é considerada a melhor fabricante de chips no mundo é que todos os membros dessa coalizão confiam à TSMC seus segredos comerciais mais íntimos, que a TSMC então mescla e equilibra para o benefício de todos.

Em razão da China não ter a confiança da coalizão no sentido de que não roubará suas propriedades intelectuais, resta a Pequim tentar replicar a excelência em fabricação de chips por conta própria, usando suas antigas tecnologias. Os chineses conseguiram surrupiar parte da tecnologia dos chips, incluindo, em 2017, de 28 nanômetros da TSMC.

Até recentemente, pensava-se que a maior fabricante de chips da China, Semiconductor Manufacturing International Co., estava empacada principalmente nesse nível de chips, apesar de a empresa afirmar ter produzido chips de 14 nanômetros e até 7 nanômetros, em larga escala, fabricados às pressas a partir de litografias de chips Deep UV, de uma geração anterior, da ASML. Especialistas americanos me disseram, porém, que a China não é capaz de produzir em massa esse chip com precisão sem a tecnologia mais recente da ASML — que agora foi banida do país.

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Entrevistei nesta semana a secretária do Comércio dos EUA, Gina Raimondo, que supervisiona tanto os novos controles de exportação sobre os chips quanto os US$ 52,7 bilhões que o governo Biden acaba de assegurar para apoiar mais pesquisa americana para o desenvolvimento de chips de última geração e trazer de volta ao país a manufatura de chips avançados. Raimondo rejeita a ideia de que as novas regulações equivalem a uma declaração de guerra.

“Os EUA estavam em uma posição inaceitável”, disse-me ela em seu gabinete. “Hoje estamos comprando 100% dos nossos chips lógicos avançados no exterior — 90% da TSMC, em Taiwan, e 10% da Samsung, na Coreia” (isso é mesmo loucura, mas é verdade).

“Nós não fabricamos nos EUA nenhum dos chips de que precisamos para Inteligência Artificial, nossas Forças Armadas, nossos programas espaciais” — sem mencionar a miríade de aplicações não militares que alimentam nossa economia. A recente Lei dos Chips, afirmou ela, foi nossa “iniciativa ofensiva” para fortalecer todo nosso ambiente de inovação, para que os chips mais avançados sejam fabricados dentro dos EUA.

‘Estratégia defensiva’

Impor sobre a China os novos controles de exportação de tecnologias avançadas de fabricação de chips, afirmou ela, “foi nossa estratégia defensiva. A China tem uma estratégia de fusão civil-militar”, e Pequim deixou claro que “tem intenção de se tornar totalmente autossuficiente em relação às tecnologias mais avançadas” para dominar tanto os mercados comerciais civis quanto os campos de batalha no século 21. “Não podemos ignorar as intenções da China.”

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Então, para proteger a nós mesmos e os nossos aliados — e todas as tecnologias que inventamos individualmente e coletivamente — acrescentou ela, “demos o passo lógico, para evitar que a China dê o passo seguinte”. Os EUA e seus aliados projetam e fabricam “os chips mais avançados de supercomputação, e não queremos eles nas mãos da China e usados para objetivos militares”.

Nosso foco principal, concluiu Raimondo, “é jogar na ofensiva — para inovar mais rapidamente que os chineses. Mas ao mesmo tempo, afrontaremos a crescente ameaça que eles representam protegendo o que precisamos proteger. É importante desescalar onde pudermos e fazer negócios onde pudermos. Não queremos um conflito. Mas temos de nos proteger e ficar de olhos bem abertos”.

O Global Times, jornal chinês dirigido pelo Estado, opinou que o banimento somente “fortalecerá a vontade e a capacidade da China de caminhar por conta própria em ciência e tecnologia”. A Bloomberg citou um analista chinês não identificado, segundo o qual “não há nenhuma possibilidade de reconciliação”.

Bem-vindos ao futuro… / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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