THE NEW YORK TIMES — Um é acusado de sequestrar uma mulher. Outro teria distribuído munição. Um terceiro foi descrito como tendo participado no massacre num kibutz onde 97 pessoas morreram. E todos seriam funcionários da agência de ajuda da ONU que atende escolas, abriga e alimenta centenas de milhares de palestinos na Faixa de Gaza.
As acusações estão em um dossiê fornecido ao governo dos Estados Unidos, que detalha as reivindicações de Israel contra uma dúzia de funcionários da Agência das Nações Unidas de Assistência e Obras (UNRWA) que, segundo o documento, desempenharam um papel nos ataques do grupo terrorista Hamas contra Israel em 7 de outubro ou em seus desdobramentos.
A ONU disse na sexta-feira, 26, que demitiu diversos funcionários após ser informada sobre as acusações. Mas pouco se sabia sobre as acusações até o dossiê ser analisado no domingo, 28, pelo The New York Times.
Mais sobre a guerra em Gaza
Foram estas acusações que levaram oito países, incluindo os Estados Unidos, a suspender alguns pagamentos de ajuda à UNRWA, mesmo em um momento em que a guerra mergulha os palestinos em Gaza em situações desesperadoras. Mais de 26 mil pessoas foram mortas ali e quase dois milhões foram deslocados, segundo autoridades de Gaza e da ONU.
Os trabalhadores da UNRWA foram acusados de ajudar a organizar o ataque que desencadeou a guerra em Gaza, ou de o ajudar nos dias sequentes. Cerca de 1,2 mil pessoas foram mortas em Israel naquele dia, dizem as autoridades israelenses, e cerca de 240 foram sequestradas e levadas para Gaza.
No domingo, 28, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, disse estar “horrorizado com estas acusações” e observou que nove dos 12 funcionários acusados foram demitidos. Mas Guterres implorou às nações que suspenderam os seus pagamentos de ajuda que reconsiderassem. A UNRWA é um dos maiores empregadores em Gaza, com 13 mil pessoas, a maioria palestinos, em seus funcionários.
Questionada sobre as alegações de Israel no domingo, a UNRWA disse que dois dos 12 funcionários estavam mortos, mas que não poderia fornecer mais informações enquanto o Gabinete de Serviços de Supervisão Interna da ONU ainda estivesse investigando.
Duas autoridades ocidentais confirmaram, sob condição de anonimato, que foram informadas sobre o conteúdo do dossiê nos últimos dias, mas disseram que não conseguiram verificar os detalhes. Embora os Estados Unidos ainda não tenham corroborado as alegações israelenses, as autoridades americanas dizem que as consideram suficientemente credíveis para justificar a suspensão da ajuda.
O Times verificou a identidade de um dos 12 funcionários, um gerente de almoxarifado, cujo perfil nas redes sociais o lista como funcionário da UNRWA e o mostra vestindo roupas com a marca da ONU.
O dossiê israelense, apresentado aos Estados Unidos na sexta-feira, lista os nomes e os cargos dos funcionários da agência e as acusações contra eles.
O documento diz que oficiais da inteligência israelense rastrearam movimentos de seis dos homens dentro de Israel no dia 7 de outubro pelos seus celulares; outros foram monitorados enquanto faziam chamadas de telefone dentro de Gaza durante as quais, segundo Israel, discutiam seu envolvimento no ataque do Hamas.
Outros três receberam mensagens ordenando que se apresentassem nos pontos de reunião no dia 7 de outubro, e um foi instruído a trazer granadas de propulsão armazenadas em sua casa, de acordo com o dossiê.
Os israelenses descreveram 10 dos funcionários como membros do Hamas, o grupo terrorista que controlava Gaza no momento em que ocorreu o ataque de 7 de outubro. Outro foi descrito como afiliado a outro grupo, a Jihad Islâmica.
No entanto, sete dos acusados também seriam professores em escolas da UNRWA, instruindo os alunos em matérias como matemática e árabe. Outros dois trabalharam nas escolas em outras funções. Os três restantes foram descritos como balconista, assistente social e gerente de almoxarifado.
As acusações mais detalhadas no dossiê eram sobre um conselheiro escolar de Khan Younis, no sul de Gaza, que é acusado de trabalhar com o seu filho para sequestrar uma mulher de Israel.
Um trabalhador social de Nuseirat, no centro de Gaza, é acusado de ajudar a levar o corpo de um soldado israelense morto até Gaza, bem como de distribuir munição e coordenar veículos no dia do ataque.
As acusações de Israel surgem em um contexto de fricções de décadas com a UNRWA. Desde 1949, a agência cuida das famílias dos palestinos que fugiram ou foram forçados a abandonar as suas casas durante as guerras que cercaram a criação do Estado de Israel.
A organização providencia ajuda vital para mais de 5 milhões de refugiados palestinos espalhados por todo o Oriente Médio, cujo futuro e status nunca foram resolvidos, apesar de anos de negociações.
Mas para os seus críticos, incluindo muitos israelenses, a agência é um obstáculo à resolução do conflito. A sua própria existência, dizem eles, impede os refugiados palestinos de se integrarem em novas comunidades e alimenta os seus sonhos de um dia regressar ao que hoje é Israel — um objetivo que Israel diz que nunca permitirá. E em Gaza, argumenta Israel, a UNRWA caiu sob a influência do Hamas, uma afirmação que a agência rejeita.
Essa não é a primeira vez que os Estados Unidos cortam dinheiro para a agência da ONU. O governo Trump suspendeu ajudas como parte de seus esforços para pressionar as lideranças palestinas a pararem de demandar que os refugiados sejam autorizados a voltar a Israel.
Mas a atual ameaça ao seu orçamento é considerada a mais grave da sua história porque surge em um momento de crise para Gaza.
Entre avisos de fome, o colapso do sistema de saúde e o deslocamento massivo da população palestiniana, o trabalho da UNRWA é considerado mais importante do que nunca. A agência ajuda a organizar a distribuição da ajuda — ainda que escassa — que chega todos os dias ao sul de Gaza, e as suas escolas fornecem abrigo a mais de um milhão de habitantes do enclave, de acordo com as estatísticas da agência.
A suspensão de fundos pode ser sentida rapidamente. Ao contrário de outras agências da ONU, a UNRWA não dispõe de reserva financeira estratégica. No domingo, Guterres disse que os serviços poderão precisar ser reduzidos a partir de fevereiro.
Um dia antes, o comissário-geral da agência, Philippe Lazzarini, alertou sobre uma catástrofe iminente. “Seria imensamente irresponsável sancionar uma agência e toda uma comunidade que ela serve por causa de alegações de atos criminosos contra alguns indivíduos, especialmente em um momento de guerra, desalojamento e crises políticas na região”, disse. “A vida das pessoas em Gaza depende dessa ajuda, assim como a estabilidade reginal”, acrescentou Lazzarini.
O Departamento de Estado dos EUA reconheceu na sexta-feira o papel humanitário crítico desempenhado pela UNRWA, mas disse que iria suspender os fundos enquanto enquanto avaliava as alegações e a resposta da agência a elas.
As próprias autoridades israelenses estavam preocupadas no domingo sobre se as suas acusações poderiam, no final, tornar a sua própria posição mais difícil, de acordo com três autoridades envolvidas na discussão. Um colapso na prestação de serviços a Gaza poderia forçar Israel a assumir um papel mais importante na gestão da distribuição de ajuda — um papel que não quer ter.
Os relatórios sobre as acusações contra os trabalhadores humanitários surgiram no mesmo dia em que a Corte Internacional de Justiça (CIJ) emitiu uma decisão provisória sobre as acusações de genocídio que foram levantadas contra Israel pela África do Sul. O tribunal ordenou que Israel tomasse medidas para evitar atos de genocídio cometidos pelas suas forças em Gaza e para permitir mais ajuda ao território.
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