ENVIADO ESPECIAL A GEORGETOWN – É impossível esquecer que a Guiana vive uma disputa territorial com a Venezuela quando se está em Georgetown.
Outdoors e adesivos colados em automóveis exibem mensagens sobre o Essequibo por toda a cidade. Na televisão, a emissora pública põe uma tarja entre um programa e outro com a frase “Essequibo is we own” (Essequibo somos nós, em crioulo guianense) e transmite reprises de declarações do presidente Mohamed Irfaan Ali sobre o tema.
Nada é mais urgente no país hoje que a defesa da região. Desde o dia 3, quando a Venezuela a considerou parte de seu território após um plebiscito e nomeou uma autoridade para governá-la, a ideia do Essequibo sofrer uma invasão militar ganhou contornos reais entre os guianenses e aumentou os temores do território ser perdido. “Essa não é apenas uma declaração de guerra contra o Estado da Guiana, mas uma guerra real. O que podemos fazer?”, disse Ravi Dev, um político do país que defende a instalação de uma base americana na região, ideia que começou a ser discutida após o plebiscito.
A pergunta de Dev paira na Guiana ante os riscos de uma invasão. O país conta com apenas 3,4 mil soldados, dos quais metade estão em funções de segurança pública e enfrentaria um exército 36 vezes maior se a Venezuela utilizasse todos seus 123 mil soldados em atividade. O serviço militar do exército guianense também é inferior ao venezuelano, de oito meses contra dois anos.
Ciente da disputa territorial com a Venezuela, existente há mais de um século, o governo da Guiana se aproximou dos Estados Unidos para reduzir a fragilidade militar quando o petróleo foi descoberto no Essequibo em 2015.
Nos primeiros anos, os americanos auxiliaram os guianenses na construção de políticas de segurança nacional e desenvolvimento de projetos militares, mas a relação se aprofundou no ano passado com a assinatura de um acordo de cooperação.
A aliança incluiu à princípio exercícios rotineiros que os EUA possuem com diversas nações, mas na semana passada o anúncio de um exercício militar aéreo na região do Essequibo fugiu à regra e foi vista como um sinal de disposição dos americanos para a defesa da Guiana. Os exercícios foram realizados durante um dia.
A aproximação, ante as ameaças da Venezuela anexar o Essequibo, deram origem à discussão sobre a instalação de uma base militar americana na região. Alguns políticos do país, como Ravi Dev, e parte dos cidadãos tem apoiado a ideia. Outros discordam e consideram a presença militar americana como ameaça à soberania do país.
“A presença de uma base militar estrangeira na Guiana serviria como o resgate de uma era que chegou ao fim, quando nações poderosas procuravam exercer controle sobre as pequenas”, escreveu um colunista do jornal guianense Kaieteur News, identificado como Peeping Tom, no dia 11.
Quando perguntado sobre o plano, o presidente Irfaan Ali não tem descartado a presença americana. “Faremos o que for necessário para defender o nosso país”, declarou esta semana em mais de uma entrevista para jornais internacionais.
O guianense também garante que vai dar continuidade às cooperações militares para “defender a soberania do país”. Nesta quinta-feira, 14, o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, e o presidente da Guiana, Irfaan Ali, se encontraram e fecharam um acordo no qual ambos os países descartaram o uso da força na disputa sobre o Essequibo, um território rico em petróleo disputado há mais de um século. Guiana e Venezuela “concordaram que direta ou indiretamente não se ameaçarão, nem usarão a força mutuamente em nenhuma circunstância, incluindo aquelas decorrentes de qualquer controvérsia existente entre ambos os Estados”, indicou parte de uma declaração conjunta lida por Ralph Gonsalves, primeiro-ministro de São Vicente e Granadinas, sede do encontro.
O tema militar se tornou ainda mais sensível no país após a queda de um helicóptero com cinco soldados que sobrevoavam o Essequibo na semana passada, causada pelo mau tempo na região.
Desde então, o governo tem prestado uma série de homenagens às vítimas, consideradas heróis nacionais, e às famílias. “Não eram apenas militares. Eram guardiões de nossa soberania e defensores de nossos valores”, declarou em rede nacional um assessor do presidente Irfaan Ali, Randy Persand.
Os funerais foram transmistidos na televisão estatal e noticiado nos jornais e uma estrada do país inaugurada na segunda-feira ganhou o nome de “Rodovia dos Heróis”.
Nas ruas da capital, a queda do helicóptero é tratada como uma fatalidade que expôs o que a Guiana pode sofrer em uma guerra. “A verdade é que nós não queremos guerra, porque sabemos que somos um país pobre e pequeno que teria muitas dificuldades”, disse Shawn Lynch, um guianense de 38 anos que trabalha como garçom em um restaurante da capital.
Saiba mais
Para ele, as ações de Maduro são para distrair os venezuelanos de problemas do país, mas tem potencial de atingir os guianenses por reviver uma disputa que estava há anos esquecida. “Quando não tínhamos nada, ninguém tocava nesse assunto”, afirmou. “Agora que estamos crescendo, querem tomar o que temos”, concluiu.
Divergência histórica
A divergência do Essequibo foi resolvida em uma arbitragem em Paris, em 1899. De um lado, a Venezuela. Do outro, o país mais poderoso do mundo na época: o Reino Unido. A questão seria decidida por cinco árbitros. Um neutro, dois britânicos e dois indicados por Caracas, que por pressão de Londres não poderiam ser venezuelanos.
Os escolhidos foram Melville Weston Fuller e David Josiah Brewer, magistrados da Suprema Corte dos EUA. A Venezuela confiava que a Doutrina Monroe, a ideia fixa de Washington de afastar os europeus das Américas, seria suficiente para garantir a lealdade dos americanos. Mas o resultado foi uma goleada. Por 5 a 0, o Reino Unido amealhou o território. Caracas protestou, mas acatou.
Tudo teria terminado ali não fosse uma inconfidência. O jurista americano Severo Mallet-Prevost, que integrava o conselho de defesa da Venezuela, junto com o presidente americano, Benjamin Harrison, escreveu um memorando contando os bastidores da maracutaia, para ser divulgado só depois de sua morte.
O documento dizia que o tal árbitro neutro, Friedrich Martens, que presidia o julgamento, fechou um acordo secreto com o Reino Unido. Martens era um jurista e diplomata estoniano que prestava serviço para a Rússia imperial.
De acordo com Mallet-Prevost, ele se reuniu em Londres com os britânicos e chegou com uma oferta fechada para os dois juízes da Suprema Corte dos EUA: queremos que seja 5 a 0; se for 3 a 2, tomaremos da Venezuela ainda mais território, incluindo a foz do Rio Orinoco. Os americanos cederam.
O memorando de Mallet-Prevost foi entregue ao governo venezuelano de fato após a sua morte, em 1949, pelo advogado americano Otto Schoenrich. Escancarada a bola nas costas, Caracas retomou a briga pelo Essequibo, que ressuscita de acordo com o apetite do governo de turno.
Os britânicos se defendem, dizendo que o conluio com os russos é especulação, já que não é corroborado por nenhum documento ou registro diplomático do Reino Unido ou da Rússia – apenas aparece no depoimento de Mallet-Prevost.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.