A Ilha Hans não passa de um pedaço de rocha em forma de rim, em um ponto desolado no Ártico. Mas por 49 anos, foi fonte de uma rara disputa territorial para o Canadá, porque se situa bem no meio do limite internacional entre o país e a Groenlândia, um território autônomo que pertence à Dinamarca.
Ao longo de décadas, a disputa entre Canadá e Dinamarca foi travada de maneiras extravagantes.
Desde que militares canadenses começaram a visitar a ilha, em 1984, cravando suas bandeiras com folhas de bordo e deixando para trás garrafas de uísque canadense, os dinamarqueses têm aparecido com frequência para substituir os itens canadenses por seus schnapps e suas bandeiras. E ministros dos governos dos dois países chegaram de helicóptero para afirmar os clamores em competição de suas nações e explorar a rocha que eles alegavam governar.
Agora, brilhou uma luz do fim desse longo — e amplamente benigno — impasse diplomático.
Canadá e Dinamarca assinaram um acordo nesta terça-feira definindo formalmente a fronteira marinha no Árico entre os países e resolvendo a questão sobre o status da Ilha Hans. A ilha será dividida: cerca de 60% da rocha fica com a Dinamarca, e o restante fica com o Canadá.
Os ministros de Relações Exteriores de ambos os países contrastaram a pacífica e bem-sucedida resolução da disputa, apesar de adiada, com a violência e a instabilidade de outras lutas por território, mais notadamente a invasão russa à Ucrânia.
“Isso manda um forte sinal num tempo em que vemos grandes potências violando brutalmente fundamentos do direito internacional, como o que a Rússia tem feito na Ucrânia”, afirmou o ministro de Relações Exteriores dinamarquês, Jeppe Kofod. “Mas considerando o que está ocorrendo no mundo neste momento, particularmente desde a invasão russa à Ucrânia, nós quisemos realmente dedicar mais força e renovar nossas energias para garantir que encontraríamos uma solução.”
A luta pelo insignificante pedaço de rocha remonta a 1973, quando Dinamarca e Canadá empreenderam negociações a respeito de fronteiras e direitos submarinos, mas não alcançaram acordo a respeito da Ilha Hans. Sob os 35 quilômetros de largura do Estreito de Nares, que separa os países e abriga a Ilha Hans, há reservas de petróleo e gás natural. Mas segundo Michael Byers, professor de direito internacional da Universidade da Colúmbia Britânica que estuda soberania no Ártico, os recursos estão situados em profundidades extremas, e a região tem icebergs demais para permitir a extração marítima.
“Seria um petróleo extremamente caro”, afirmou Byers. “Se chegarmos ao ponto de ter de extrair petróleo nessas profundidades, em um local como esse, daqui a 10, 20 ou 30 anos, é porque teremos perdido a luta contra as mudanças climáticas.”
Algumas questões relativas a direitos de pesca foram resolvidas há muito tempo por outros tratados internacionais.
Mas Mélanie Joly, chanceler do Canadá, afirmou que o limite marítimo recentemente acordado entre Canadá e Dinamarca, que ela caracterizou como o mais extenso do mundo, constituirá um exemplo importante para outras nações lidarem com questões relativas ao leito do Ártico e os recursos que ele contém.
Os ministros afirmaram que, para alcançar o acordo, foram necessárias negociações de ambos os países com comunidades inuit que vivem dos dois lados da fronteira e conhecem a ilha como Tartupaluk. Kofod afirmou que o acordo protege seu direito a caçar e pescar em ambos os lados e também garante que a nova fronteira não dificultará viagens que passem pela Ilha Hans.
Dado que Canadá e Dinamarca são aliados de longa data e desfrutam de relações amistosas, por que o acordou tardou tanto?
Parte da resposta, afirmou Byers, é o ritmo moroso dos processos da Organização das Nações Unidas (ONU) para solucionar questões de limites marítimos, que são governados pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, de 1982.
Mas ele também notou que as presenças altamente publicizadas dos militares de ambos os países despejando suas garrafas sobre a ilha costumaram preceder eleições, sugerindo que alguns governos arrastaram a disputa para se beneficiar politicamente.
“Era simplesmente uma maneira de inflamar um pouco o sentimento patriótico em um contexto completamente desprovido de risco”, afirmou Byers.
O acordo significará o fim da guerra do uísque. Os ministros dos países se presenteariam com garrafas pela última vez nesta terça-feira. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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