Com o súbito colapso do regime do ex-presidente sírio Bashar Assad, o império do Irã e de seus aliados no Oriente Médio foi devastado — em Gaza, no Líbano e agora na Síria. Mas suprir o vácuo de poder resultante na região com governos estáveis é um desafio urgente e complexo.
O jogo virou: há apenas 14 meses, o Estado de Israel estava aterrorizado e cambaleava após combatentes do Hamas atravessarem a cerca de Gaza; agora, os inimigos dos israelenses na região estão mortos ou em fuga. Um processo convulsivo e repleto de promessas, mas talvez carregado de uma toxina de instabilidade e turbulência.
Assad fugiu de Damasco rumo a Moscou no domingo, deixando o controle de sua capital para o Hayat Tahrir al-Sham, ou HTS, um grupo insurgente jihadista apoiado pela Turquia. Fontes árabes disseram-me no domingo que o HTS estava se inserindo na sede do serviço de inteligência sírio, em Damasco, e tentando conter a violência na capital. Mas com milhares de sírios subitamente livres de anos de tortura nas prisões de Assad, há sede de vingança.
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Potências árabes da região estão tentando estabilizar a transição. Liderados pelos Emirados Árabes Unidos, esses países vinham tentando havia meses convencer Assad a romper com o Irã e voltar para a esfera árabe. Assad hesitou tempo demais e acabou abandonado por seus antigos aliados. “No fim, o Exército sírio não lutou, e Irã e Rússia não se apresentaram”, notou um ex-agente da CIA com extensa experiência na região.
“Finalmente, o regime de Assad caiu”, disse o presidente Joe Biden no domingo. Para os Estados Unidos, a deposição de um déspota apoiado por Moscou e Teerã é “um enorme movimento estratégico na direção certa”, conforme colocou uma autoridade do governo. Os EUA vinham buscando a substituição de Assad, abertamente e secretamente, desde 2011. Ainda assim, conforme alertou Biden corretamente, sua queda ocasiona “um momento de risco e incerteza” para a região.
O caos em Damasco no domingo foi abrandado pela decisão do HTS de permitir que o atual primeiro-ministro conduza um governo interino sob a proteção do grupo, disse-me uma graduada autoridade do governo Biden. O HTS afirmou que pretende manter as instituições administrativas do atual governo, incluindo o Exército — o que certamente facilitaria a transição.
O Catar, há muito um apoiador secreto do HTS, parece estar liderando um esforço árabe para criar um governo de transição patrocinado pelas Nações Unidas. Um comunicado do governo catariano emitido no domingo sublinhou “a necessidade de preservar as instituições nacionais e a unidade do Estado para evitar que o caos predomine”.
Os catarianos pedem a implementação de antigas resoluções do Conselho de Segurança da ONU pedindo um novo governo sírio que inclua membros do regime e da oposição. Por enquanto, contudo, a Síria é um mosaico violento, com grupos apoiados pela Turquia controlando o oeste até Damasco, uma milícia curda apoiada pelos EUA controlando o nordeste e milícias apoiadas pela Jordânia dominando o sul.
EUA e Rússia sem dúvida desempenharão um papel diplomático na formação da futura Síria, mas os jogadores regionais serão decisivos. “Houve um tempo em que as grandes potências definiam o que ocorreria depois. Isso acabou. Para o bem ou para o mal, essa responsabilidade cabe agora a Israel, Turquia, Arábia Saudita, EAU e Jordânia”, notou a ex-autoridade da CIA.
O presidente eleito dos EUA Donald Trump enfatizou sua falta de interesse no papel dos EUA na Síria em um post em rede social no sábado: “ESSA LUTA NÃO É NOSSA. (…) NÃO SE ENVOLVAM!”. Num post no domingo, Trump sugeriu que, depois de abandonar Assad, o presidente Vladimir Putin deveria negociar um fim à carnificina na Ucrânia. Trump escreveu: “Eu conheço bem Vladimir. É sua hora de atuar. A China pode ajudar. O Mundo está esperando!”.
A transformação da Síria nos últimos dez dias ecoa três outros eventos, cada qual contendo sua própria lição. Primeiramente, a velocidade da derrocada de Assad nos recorda do colapso do governo apoiado pelos EUA no Afeganistão. A queda de Cabul ocorreu somente nove dias depois da perda da primeira capital provincial para o Taleban. Quando um Exército se sente abandonado e desmoralizado, pelos EUA no Afeganistão e por Rússia e Irã na Síria, a força militar descamba para uma queda-livre.
Uma segunda correspondência é com a rápida investida do Hamas através da cerca de Gaza e seu sucesso em atacar kibbutzim e bases militares israelenses nas proximidades em 7 de outubro de 2023. Da mesma forma que o Hamas, o HTS foi bem treinado e bem equipado, com capacidades de ataques rápidos que os defensores não imaginavam. A Turquia, obviamente, desempenhou uma função importante na Síria, assim como o Catar com suas antigas relações com a liderança do HTS.
Um terceiro paralelo é o Iraque, que demonstra o caos que pode se seguir a uma mudança de regime. Quando depuseram Saddam Hussein em Bagdá, em 2003, os EUA desprenderam conflitos étnicos e regionais que perduram até hoje. De maneira similar, Israel esmagou o poder militar do Hamas em Gaza, mas o enclave tornou-se agora uma terra sem lei, regida por bandidos e gangues, sem nenhum traço de governança estável.
Um fato assustador é que, desde o início da insurreição síria, em 2011, grupos jihadistas têm sido a facção militar mais forte. Eu conheci seu poder na oposição em primeira-mão em outubro de 2012, quando entrei na Síria para cobrir os primeiros momentos do levante que finalmente triunfou neste domingo.
Uma milícia de oposição nominalmente pró-Ocidente combatia o Exército de Assad no dia em que cheguei a Alepo. Com projéteis explodindo a poucas centenas de metros dali, eu perguntei a um dos líderes seculares se o potente ramo da Al-Qaeda conhecido como Frente Al-Nusra combatia ao seu lado. Claro que sim, disse ele, apontando para o quartel dos jihadistas a uma quadra de lá. “Eles são os melhores combatentes.”
O HTS, que liderou o ataque que acaba de derrubar Assad, é descendente do grupo que eu vislumbrei de relance 12 anos atrás. Conforme uma graduada autoridade me disse no domingo, em meio à animação da Casa Branca com a queda de Assad, há um reconhecimento de que “nós temos um problema de contraterrorismo”.
No Oriente Médio, toda fresta de esperança implica em algum risco./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO