Os mortos e feridos do hospital de Aziziya, ao sul de Trípoli, costumavam chegar com ferimentos abertos e membros despedaçados, vítimas do fogo aleatório da artilharia nas batalhas entre as milícias da Líbia. Mas agora os médicos dizem que estão vendo algo novo: buracos precisos na cabeça ou no tronco, deixados por balas que matam na hora e não saem do corpo.
Para combatentes líbios, isso é trabalho de mercenários russos, até mesmo de atiradores de elite. A ausência de ferimentos de saída das balas é típica da munição usada pelos mercenários russos em outros lugares.
Os atiradores estão entre os cerca de 200 combatentes russos que chegaram à Líbia nas últimas seis semanas, parte de uma campanha do Kremlin para reafirmar sua influência no Oriente Médio e na África.
Após quatro anos de apoio financeiro e tático a um possível líder líbio, a Rússia agora está se empenhando de maneira muito mais direta para determinar o resultado da confusa guerra civil do país. Já utilizou jatos Sukhoi, ataques de mísseis coordenados e artilharia de precisão, assim como atiradores de elite – o mesmo manual que permitiu a Moscou definir quem seria o vencedor da guerra civil da Síria. “É exatamente a mesma estratégia empregada com os sírios”, disse Fathi Bashagha, ministro do Interior do governo provisório de Trípoli.
Qualquer que seja seu efeito sobre o desenlace da guerra, a intervenção russa já deu a Moscou um poder de veto sobre qualquer resolução do conflito. Os russos intervieram em favor do líder de milícia Khalifa Hifter, que tem base no leste da Líbia e também é apoiado por Emirados Árabes, Egito, Arábia Saudita e, às vezes, pela França. Seus apoiadores o adotaram como a melhor esperança para conter a influência do islamismo político, reprimir os militantes e restaurar uma ordem autoritária.
Hifter está em guerra há mais de cinco anos contra uma coalizão de milícias do oeste da Líbia, que apoiam as autoridades de Trípoli. O governo da capital foi criado pela ONU em 2015 e é oficialmente respaldado pelos EUA e outras potências ocidentais. Mas, na prática, a Turquia é seu único protetor.
A nova intervenção de mercenários russos é apenas uma das semelhanças com a guerra civil síria. Os atiradores de elite russos pertencem ao Wagner Group, empresa privada ligada ao Kremlin que também liderou a intervenção russa na Síria, segundo autoridades líbias e diplomatas ocidentais.
Nos dois conflitos, potências regionais rivais estão armando aliados locais. E, assim como na Síria, os parceiros locais que se uniram aos EUA para combater o Estado Islâmico agora estão reclamando de abandono e traição.
Relembre: Mais conversa, menos combate
A ONU tentou e fracassou em negociar a paz nos dois países. Mas as apostas na Líbia são, de certa forma, ainda mais altas. A Líbia controla vastas reservas de petróleo, bombeando 1,3 milhão de barris por dia, apesar do atual conflito. Seu extenso litoral no Mediterrâneo, a apenas 500 quilômetros da Itália, tem sido o ponto de partida para dezenas de milhares de migrantes que vão para a Europa. E as fronteiras abertas ao redor dos desertos da Líbia servem como refúgio para extremistas do norte da África.
O conflito se tornou uma combinação do primitivo com o futurista. A Turquia e os Emirados Árabes transformaram a Líbia no primeiro campo de batalha marcado principalmente pelo confronto de frotas de drones armados. Mas, no chão, a guerra se dá entre milícias, com menos de 400 combatentes preparados para lutar a qualquer momento.
“Na Líbia, há uma enorme discrepância entre os combates terrestres e a tecnologia avançada que as potências estrangeiras introduziram no combate aéreo”, disse Emad Badi, pesquisador líbio do Instituto do Oriente Médio, que visitou o front em julho. “É como se fossem dois mundos diferentes.”
A chegada dos atiradores russos já está transformando a guerra, disse Mohamed el-Delawi, um oficial da milícia de Trípoli, relatando a morte de nove de seus combatentes – um deles baleado nos olhos. “A bala era do tamanho de um dedo.”
“Está muito claro que a Rússia vem participando do conflito”, disse o general Osama al-Juwaili, principal comandante das forças alinhadas com o governo de Trípoli. Ele reclamou que o Ocidente não está fazendo nada para proteger o governo das potências estrangeiras determinadas a colocar Hifter no poder.
Até então, a Rússia havia permanecido em segundo plano, enquanto Emirados e Egito assumiam o papel principal no apoio militar a Hifter. Dada a natureza amadora dos combates em terra, disseram alguns diplomatas, a chegada de 200 profissionais russos pode ter um impacto enorme. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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