Derrubar direito ao aborto é uma escolha radical, não conservadora; leia o artigo

A palavra ‘conservador’ engloba muitas ideias e hábitos, nenhum mais importante do que a prudência

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Por Bret Stephens
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - Caros Chefes de Justiça Roberts e juízes Barrett, Gorsuch, Kavanaugh e Thomas:

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Como vocês sem dúvida concordarão, Roe vs. Wade foi uma decisão mal julgada quando foi proferida em 22 de janeiro de 1973.

Sustentou-se no princípio jurídico do direito à privacidade encontrado, à época, principalmente nas penumbras da Constituição. Arrogou ao menos democrático dos Poderes a resolução de uma questão que teria sido melhor decidida pelo Congresso ou pelas legislaturas estaduais.

Isso desencadeou uma guerra cultural que polarizou o país, radicalizou suas fronteiras e tornou o debate mais difícil. Ajudou a transformar as audiências de confirmação para a Suprema Corte nas lutas livres profanas que são agora. Apequenou o tribunal, transformando-o em um ramo cada vez mais político do governo.

Manifestantes pró-aborto realizam protesto em frente à Suprema Corte, em Washington. Foto: AP Photo/Alex Brandon

Mas meio século é muito tempo. Os EUA são um lugar diferente, com a maioria de sua população nascida depois da decisão. E derrubar Roe vs. Wade - o que o tribunal parece prestes a fazer, de acordo com o vazamento de um rascunho de parecer do juiz Samuel Alito - faria mais para replicar o dano do que revertê-lo.

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Seria uma escolha radical, não conservadora.

O que é conservador? É, acima de tudo, a convicção de que mudanças abruptas e profundas nas leis estabelecidas e expectativas comuns são totalmente destrutivas para o respeito à lei e às instituições criadas para defendê-la - especialmente quando essas mudanças são instigadas de cima, sem consentimento democrático nem amplo consenso.

Isso é em parte uma questão do stare decisis, a premissa da força vinculante das decisões proferidas pelos juízes em casos repetitivos, mas não apenas isso. Como conservadores, vocês são filosoficamente obrigados a dar peso considerável aos precedentes judiciais, particularmente quando eles foram ratificados e refinados - como Roe foi na decisão de 1992 da Planned Parenthood vs. Casey - por um longo período. O fato deste caso de 1992 ter alterado um pouco o esquema original de Roe vs. Wade, um ponto que o juiz Alito enfatiza muito em seu parecer, não muda o fato de que o tribunal defendeu amplamente o direito ao aborto. “Casey é precedente sobre precedente”, como o juiz Kavanaugh colocou apropriadamente em sua audiência de confirmação.

É também uma questão de originalidade. “Para evitar uma decisão arbitrária nos tribunais”, escreveu Alexander Hamilton no Federalist nº 78, “é indispensável que eles” - os juízes - “se limitem a regras e precedentes estritos, que servem para definir e apontar seus deveres em cada caso particular que lhes seja apresentado”. Hamilton entendeu então o que muitos dos originalistas de hoje ignoram, que o propósito central dos tribunais não é se engajar em exegese textual (inevitavelmente seletiva) para chegar a conclusões preferidas. É evitar um “arbítrio arbitrário” - resistir à tentação de procurar remodelar todo o cenário moral de uma vasta sociedade com base nas preferências de duas ou três pessoas em um único momento.

O que o tribunal supõe que acontecerá se votar para derrubar Roe vs. Wade? Acabar com os abortos legalizados em todo o país não aconteceria, então os pró-vida teriam pouco a comemorar em termos do número total de gestações não interrompidas, que diminuiu constantemente, por uma série de razões, com Roe e Casey ainda sendo a lei do país.

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Mas os pró-vida logo redescobririam o significado de outro truísmo conservador: cuidado com as consequências não intencionais. Isso inclui o retorno do antigo, muitas vezes inseguro, aborto ilegal (ou abortos no México), o entrincheiramento de maiorias pró-escolha em Estados democratas e a provável consolidação de maiorias pró-escolha em muitos Estados sem um partido dominante, impulsionados por eleitores ansiosos seus direitos reprodutivos. Os americanos estão quase igualmente divididos em suas opiniões pessoais sobre o aborto, de acordo com anos de pesquisa Gallup, mas apenas 19% acham que o aborto deveria ser ilegal em todas as circunstâncias.

Manifestantes pró-vida protestam na Suprema Corte, em Washington. Foto: Nicholas Kamm/ AFP

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Não deve ser difícil imaginar como os americanos reagirão ao tribunal fornecer ajuda e conforto apenas aos 19%. Vocês podem raciocinar, juízes, que ao aderir à opinião do juiz Alito, vocês estarão apenas mudando os termos em que as questões do aborto são decididas nos Estados Unidos. Na realidade, vocês estarão acendendo outra fogueira cultural - que levou décadas para ficar sob controle - em um país já em chamas por questões raciais, currículos escolares, justiça criminal, leis eleitorais, diversas teorias da conspiração e assim por diante.

E qual será o efeito no próprio tribunal? Aqui, novamente, vocês podem ser tentados a pensar que derrubar Roe vs. Wade é um ato de modéstia judicial que coloca as disputas sobre o aborto nas mãos das legislaturas. Talvez - depois de 30 anos de divisão e caos.

No entanto, a decisão também desacreditará o tribunal como um guardião do que resta da firmeza e sanidade americanas, e como um baluarte do nosso respeito às instituições e à tradição, que está se esgotando rapidamente.

O fato de que o rascunho da decisão do juiz Alito vazou - o que o juiz Roberts corretamente descreveu como uma “grave quebra de confiança” - é uma amostra do tipo de guerrilha que o tribunal deve esperar daqui para frente. E não apenas sobre o aborto: um tribunal que trair a confiança dos americanos em uma questão que afeta tantos, tão pessoalmente, perderá a confiança em todas as outras questões também.

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A palavra “conservador” engloba muitas ideias e hábitos, nenhum mais importante do que a prudência. Juízes: Sejam prudentes.

*Bret Stephens é colunista de opinião do The New York Times desde de 2017. Ganhou o Prêmio Pulitzer por comentários no The Wall Street Journal em 2013.

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