Desafios para 2024: sede do G-20, Brasil terá que buscar equilíbrio para propor agenda internacional

Brics ampliado e presidido pela Rússia tende a complicar esforço brasileiro de neutralidade no momento em que o país quer aproveitar holofotes para defender mudanças no sistema de governança global

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Foto do author Jéssica Petrovna
Atualização:

O Brasil chega a 2024 focado na Cúpula do G-20 que promete ser, ao mesmo tempo um desafio e uma oportunidade para política externa. Enquanto isso, terá que lidar ainda com algumas pendências que se arrastam desde o ano passado. É o caso do acordo de livre comércio do Mercosul com a União Europeia e da crise na fronteira norte. Embora, uma agressão militar do ditador Nicolás Maduro contra Guiana pareça cada vez mais distante, a eleição na Venezuela será um teste para liderança regional brasileira.

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Especialistas ouvidos pelo Estadão afirmam que o governo tem oportunidades que pode aproveitar este ano, depois da retomada da presença do País no cenário externo - esforço considerado positivo, apesar das polêmicas do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Para conquistar resultados, no entanto, será preciso ter equilíbrio e evitar cometer os mesmos erros que comprometeram o saldo da política externa até aqui.

“O Brasil tem a possibilidade de passar o discurso para ação”, destaca a diretora do programa de Estudos Brasileiros da Universidade de Oxford, Laura Trajber Waisbich. “A presidência do G-20 reafirma a capacidade de liderança de um país, que é ainda uma potência aspirante, mas que está entre as maiores economias do mundo”, acrescenta.

Placa ao lado do Museu do Amanhã, zona portuária do Rio de Janeiro, anuncia G-20 no Brasil. Foto: PEDRO KIRILOS

O grupo tem ganhado relevância à medida em que o modelo de multilateralismo das Nações Unidas se mostra limitado diante dos grandes conflitos. E o país que o ocupa a presidência tem o poder de pautar as discussões como fez a Índia, no ano passado, com a defesa da transição digital e do desenvolvimento sustentável, movido por energias renováveis.

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O Brasil dará continuidade ao tema, que está entre as prioridades da sua própria política externa. Junto com o combate à desigualdade a reforma do sistema de governança global, o desenvolvimento sustentável foi eleito como um dos eixos centrais do G-20 enquanto o país se prepara, em paralelo, para receber a COP, a conferência da ONU para o Clima, em 2025.

Esse timing é considerado oportuno para o Brasil se apresentar como solução de um problema global, defendem Izabella Teixeira, Co-Chair do Painel Internacional de Recursos Naturais da ONU, e André Clark, vice-presidente sênior da Siemens Energy para América Latina, ambos conselheiros do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI) em artigo publicado no Estadão.

“Quem não lidera o jogo irá seguir pelas regras de outros, que têm matriz energética muito menos vantajosa que a nossa”, alertam. “O Brasil é das poucas localidades onde as metas de zerar emissões podem se materializar antes de 2050. Não à toa, devemos iniciar o encontro dizendo o que precisa ser dito: somos a solução verde para o mundo”, defendem.

Mudança de foco

No momento em que o foco da política externa está dentro de casa, Lula deve reduzir o ritmo de viagens, depois de passar o equivalente a dois meses do primeiro ano de mandato fora do Brasil. O governo justifica que o tour diplomático trouxe investimentos e era necessário para “reapresentar” o país depois do isolamento promovido pelo ex-presidente Jair Bolsonaro.

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Especialistas corroboram que as viagens foram importantes e tiveram um saldo final positivo, apesar das polêmicas. “O esforço de recolocar o Brasil no mundo, olhando para trás, foi bem sucedido”, avalia Laura Trajber Waisbich. “No sentido de retomar o protagonismo nos temas em que o país tem de fato credibilidade, mas também de normalizar a participação brasileira nos espaços - a nível bilateral e multilateral - e, para além disso, colocar o Brasil como ator capaz de ser propositivo”, conclui ela citando como exemplo as iniciativas na área ambiental, como a Cúpula da Amazônia.

Entre os eleitores, no entanto, a percepção foi diferente: 60% disseram que o presidente se dedicava mais do que deveria à pauta internacional, mostrou a pesquisa Genial/Quaest divulgada no final de outubro. Outros 55% responderam que o petista viajava em “excesso”. Agora, o próprio Lula já disse que o foco em 2024 será “rodar o Brasil”.

Enquanto isso, uma centena de reuniões técnicas e ministeriais será dividida entre as cinco regiões do país e vai preparar terreno para a Cúpula dos chefes de Estado e Governo do G-20, marcada para ocorrer entre os dias 18 e 19 de novembro, no Rio de Janeiro. Um trabalho que envolve do Itamaraty ao ministério da Fazenda.

“O Brasil tem sido proativo”, afirma o diplomata e ex-embaixador em Washington Roberto Abdenur. “A diplomacia brasileira terá muito trabalho no ano que vem e precisará equilibrar esse ímpeto de movimento com o equilíbrio em relação a questões sensíveis, como as guerras na Ucrânia e na Faixa de Gaza”, acrescenta.

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Política externa brasileira vai precisar de equilíbrio entre o dinamismo e a moderação.

Diplomata e ex-embaixador em Washington Roberto Abdenur

Desafio do Brics

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Justamente porque estará concentrado no G-20, o Brasil decidiu não exercer a presidência rotativa do Brics este ano e trocou com o país que seria o próximo da fila, a Rússia. A reunião será em Kazan, cidade que virou uma espécie de polo diplomático de Moscou para o Oriente. Lula ainda não confirmou presença. Até agora, o petista anunciou apenas que pretende participar encontros dos União Africana, na Etiópia, e o da Caricom (comunidade de países do Caribe), na Guiana, mas alguns eventos internacionais costumam fazer parte do calendário anual dos presidentes brasileiros, como é o caso do Brics.

Enquanto trava uma guerra com a vizinha Ucrânia e vocifera contra os parceiros ocidentais de Kiev, em especial os Estados Unidos, Vladimir Putin já disse que a Cúpula deve apresentar uma espécie de nova ordem global.

Durante o seu encontro anual com jornalistas russos, em dezembro, ele foi questionado sobre o impacto do encontro para a mudança da ordem baseada em regras do Ocidente. Ao que respondeu: “Mostrará que existe um grande número de forças no mundo, países poderosos que querem viver não de acordo com estas regras não escritas, mas de acordo com as regras prescritas em documentos fundamentais, incluindo a Carta das Nações Unidas”, disse Putin embora a própria Rússia tenha violado os princípios da ONU ao invadir a Ucrânia. “Não impõem nada a ninguém, não criam blocos militares, mas criam condições para um desenvolvimento conjunto eficaz”, alfinetou na sequência.

Putin, que participou por vídeo da última Cúpula do Brics, na África do Sul, para evitar ser preso já que é acusado por crimes de guerra pelo Tribunal Penal Internacional (TPI), agora, pode presidir um encontro expandido. Isso porque há a expectativa para entrada dos países convidados a entrar no bloco dos emergentes. São eles: Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes, Etiópia, Irã e Argentina. Esse último, sob comando do libertário Javier Milei, já recusou.

Para o diplomata de carreira e ex-embaixador em Washington Roberto Abdenur, essa configuração do Brics tende a complicar a defesa brasileira da reforma no sistema de governança global. Ele, que durante a carreira no Itamaraty, participou da construção desse diálogo Norte-Sul entre as décadas de 60 e 80 hoje acredita que o bloco não tem como ditar uma nova nova ordem global.

Presidentes do Brasil, Lula, da China, Xi Jinping e da África do Sul, Cyril Ramaposa, primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi e chanceler da Rússia, Sergei Lavrov na Cúpula do BRICS em 2023. Foto: GIANLUIGI GUERCIA / AFP

“O Brics, agora, não tem a menor condição política e moral de pedir mudanças na governança Global. Que mudança será? Para adotar a tese da Rússia? Do direito de um país conquistar o outro? Que ordem internacional é essa?”, questiona Abdenur. Nesse contexto, ele sugere o Brasil deve atuar como um moderador dentro do grupo, sem subscrever as ideias e propostas da Rússia e da China. E considera que foi um erro do Brasil ceder à pressão da China para ampliar o bloco e incluir países como o Irã - ideia que tem sido repetida por diferentes analistas desde que a expansão foi anunciada.

“A inclusão do Irã faz com que o Brics seja visto como uma aliança antiocidental liderada por Pequim e Moscou”, escreveu o analista político e professor de Relações Internacionais da FGV-SP Oliver Stuenkel em sua coluna no Estadão após o anúncio dos novos países-membros.

“Isso deve ficar particularmente evidente em 2024, quando o presidente russo presidirá o Brics e organizará a cúpula dos líderes na cidade de Kazan para mostrar que as tentativas ocidentais de isolá-lo fracassaram”, acrescentou ao alertar que esse BRICS “antiocidental” dificulta o esforço de países como o Brasil, à medida em que tenta se posicionar como atores neutros em meio aos conflitos e disputas globais.

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As ‘simpatias inconvenientes’ de Lula

Na Guerra na Ucrânia, o presidente tentou se lançar como mediador ao propor o que chamou que “clube da paz”. Frequentemente, no entanto, foi visto como leniente com a Rússia de Vladimir Putin. Exemplo disso foi a sugestão de que o chefe do Kremlin poderia vir ao Brasil sem medo de ser preso, mesmo sendo alvo de um mandado de prisão do TPI. Depois de uma série de polêmicas o petista pareceu evitar o assunto nos últimos meses e praticamente não falou mais sobre o conflito no leste europeu.

“Lula, embora pregando a paz, perdeu totalmente a possibilidade de ser um mediador pelas declarações incorretas dele. Equiparou o agressor (Rússia) ao agredido (Ucrânia), disse que os europeus e os Estados Unidos dão continuidade a guerra e ignorou a Ucrânia. O Brasil não fez nenhum gesto para Ucrânia”, destaca Roberto Abdenur.

O autocrata russo e o ditador da Venezuela, Nicolás Maduro, se enquadram no que o diplomata chama de “simpatias inconvenientes” do petista. Foram essas relações que levaram o Brasil a perder o prêmio de país do ano da Economist em 2023. A publicação lembra que Brasil se sobressaiu por retornar à “moderação” e destaca a redução de 50% no ritmo de desmatamento da Amazônia. “O registro impressionante do Brasil foi manchado, contudo, pelo hábito de Lula de se aconchegar com Putin e com o déspota venezuelano, Nicolás Maduro. Como resultado, o Brasil perdeu o prêmio”, conclui.

Presidente Lula recebe ditador da Venezuela Nicolás Maduri em Brasília, 29 de maio de 2023.  Foto: Andre Coelho / EFE

No caso venezuelano, entretanto, o Brasil tem o poder para atuar como liderança regional, afirmam analistas. Como exemplo disso, a presidência brasileira no Mercosul propôs a declaração sobre a crise do Essequibo. Um texto curto, que alertava contra ações unilaterais e terminou sendo assinado por 8 dos 12 países da América do Sul, sendo os quatro membros do bloco (Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai) mais Chile, Colômbia, Equador e Peru.

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Também foi iniciativa brasileira a reunião em que Caracas e Georgetown descartaram ações militares na disputa territorial. Os dois lados também concordaram em se reunir novamente no Brasil no prazo de até três meses, contados a partir de meados de dezembro. O risco de um conflito armado parece cada vez mais distante agora, mesmo assim, a Venezuela ainda não é uma crise pacificada.

O país tem eleições marcadas para o ano que vem e a ditadura chavista prometeu que serão livres e justas, mas a candidata da oposição, Maria Corina Machado está impedida de ocupar cargos públicos por 15 anos. “Acho que está claro a essa altura que as eleições serão livres”, afirma Roberto Abdenur, que defende um tom mais firme do Brasil com a ditadura chavista. O diplomata afirma que o diálogo é necessário e que o governo Jair Bolsonaro errou ao fechar a embaixada brasileira em Caracas, mas pondera que isso não significa “passar a mão na cabeça” de Nicolás Maduro.

“Tem que assumir um tom mais firme, atuando preventivamente no esforço de viabilizar eleições realmente livres na Venezuela, com o direito de opositores, como Maria Corina Machado, de competirem em condições de igualdade para que a disputa seja legítima. Temo que ele faça com a Venezuela o mesmo que faz com a Rússia de Putin”, afirma Abdenur.

O acordo Mercosul-UE

Outra “pendência” que ficou de 2023 é o acordo de livre comércio do Mercosul com a União Europeia. O Brasil tentou concluir a negociação que se arrasta há duas décadas na cúpula do bloco sul-americano mês passado no Rio de Janeiro.

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O problema foi que a Argentina, no apagar das luzes do governo Alberto Fernández, resistiu em assinar o acordo faltando apenas três dias para a posse de Javier Milei, que questionou a existência do próprio Mercosul em campanha. Apesar da frustração, tanto os sul-americanos como os europeus confirmaram que houve avanço e que ainda pretendiam fechar o acordo em breve.

Na saída da Cúpula no Rio, o ministro das Relações Exteriores brasileiro, Mauro Vieira, disse que a conclusão ainda seria possível entre janeiro e fevereiro. O acordo, entretanto, ainda é motivo de dúvida entre os analistas ouvidos pelo Estadão. Isso porque o livre comércio enfrenta resistência do setor agrícola europeu, expressada principalmente pelo presidente francês, Emmanuel Macron.

O Brasil viu a cobrança adicional da União Europeia em matéria ambiental como uma espécie de “protecionismo verde”, mas aproveitou o que considerou uma reabertura da negociação para rediscutir a questão das compras públicas. Lula resiste em abrir as licitações para empresas europeias e alega que os contratos do governo são um mecanismo para fomentar a indústria local.

O diplomata Roberto Abdenur considera que o Brasil tem atuado bem na negociação do acordo que vê como “fundamental” para o bloco sul-americano. “Para que o Mercosul se fortaleça e se projete no plano internacional, deixe de ser uma espécie de fortaleza protecionista e se transforme de fato no que era a ideia original, um vetor de inserção econômica e financeira dos seus membros”. Essa cobrança tem sido feita pelo Uruguai, que pede constantemente por maior abertura dentro do bloco enquanto busca um acordo com a China.

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O problema é que a eleição do Parlamento Europeu se aproxima. A votação, marcada para junho deste ano, tende a paralisar as conversas com os sul-americanos, segundo especialistas. Seria o fim do que vem sendo tratado como uma janela de oportunidade para conclusão do que pretende ser o maior acordo entre blocos do mundo. Depois de concluído, o texto ainda precisa se ratificado pelo Parlamento Europeu e por cada um dos 31 países dos dois blocos.

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