Manifestantes voltaram às ruas em Israel nos últimos dias conforme a controversa reforma judicial de Binyamin Netanyahu volta a tramitar no Congresso. Apesar de mudanças no texto inicial, setores econômicos do país estão preocupados que o grau de instabilidade e erosão das instituições democráticas prejudiquem ainda mais uma economia que já está em queda e ameaça o futuro na “nação startup”.
Apesar do boom econômico impulsionado por um pulsante setor de tecnologia, Israel está vendo um aumento da pobreza nos últimos anos e a queda econômica se acentuou após a proposição da reforma do Judiciário. A coalizão de direita radical de Netanyahu culpa os protestos pela maré ruim, mas relatórios do Banco Central e instituições internacionais são claros ao apontar a desconfiança de investidores frente ao desgaste democrático causado pelas propostas de lei de Bibi e sua aliança com extremistas religiosos.
Em um raro pronunciamento político, o presidente do Banco Central do país, Amir Yaron, alertou que a reforma prejudicou a forma como os mercados enxergam a estabilidade econômica de Israel. “Isso não significa que de repente o mundo vai parar de negociar com Israel”, disse. “Mas significa que a incerteza contínua tem custos econômicos significativos. Portanto, os tomadores de decisão devem restaurar a certeza sobre a economia de Israel. Na medida em que as mudanças constitucionais são feitas, elas devem manter a força e a independência das instituições”.
O Banco de Israel chegou a projetar dois cenários: um em que a reforma seria resolvida pacificamente, o país teria um crescimento no PIB de 2,5% em 2023 e 3,5% em 2024 (frente aos 6.5% que cresceu em 2022 e 8.6% em 2021). Mas em um cenário em que a reforma abala a confiança no país, haveria impacto nas exportações, consumo e investimento com o PIB variando entre 0,8% e 2,8% ao ano, em média, nos próximos três anos.
Em maio, o Fundo Monetário Internacional (FMI) emitiu alertas no mesmo sentido, sinalizando que o crescimento do PIB desaceleraria para 2,5% em 2023, frente ao crescimento “notável” de 6,5% em 2022.
“Na ausência de uma solução durável e politicamente sustentável, a incerteza continuada pode aumentar significativamente o preço do risco na economia, apertando as condições financeiras e dificultando o investimento e o consumo, com potenciais repercussões para o crescimento, também no longo prazo”, afirmou o FMI.
“A preocupação para uma crise econômica em Israel está totalmente conectada ao projeto da reforma judicial e isso é um alerta geral no país de economistas, de contadores e especialistas em diversas áreas, que se essa reforma passar do jeito que querem que ela passe, a crise econômica vai ser inevitável, vai ser um golpe muito grande e vai aumentar muito a pobreza no país”, explica o historiador João Miragaya, colaborador do Instituto Brasil-Israel (IBI) e autor no site Conexão Israel.
Ameaça à ‘Nação startup’
O setor que já está sentindo esses impactos econômicos é justamente o carro chefe da economia israelense: o de tecnologia. Conhecida como “Nação start up”, Israel viu sua economia despontar com o surgimento de empresas de tecnologia que ganharam o mundo, como Waze, Moovit, Wix e ICQ. Hoje, estima-se que 10% da força de trabalho de Israel esteja no setor que é responsável por 15% da produção econômica do país.
Porém, relatórios do primeiro trimestre deste ano mostram uma queda de investimento no setor, que vê seus contratos paralisados. Ainda mais preocupante é que cada vez mais empresas dão sinais de cogitar sair de Israel por medo dos impactos econômicos do distúrbio social.
Uma pesquisa conduzida pela Autoridade de Inovação de Israel, agência estatal que apoia empresas de alta tecnologia, descobriu que 80% das start ups estabelecidas no país este ano foram abertas fora de Israel, incorporadas a uma outra empresa estrangeira. Além disso, as empresas disseram que pretendem registrar suas futuras propriedades intelectuais no exterior. O motivo: a incerteza causada nos investidores.
De acordo com um relatório sobre o ecossistema tecnológico de Israel publicado em abril pela Start-Up Nation Policy Institute, um think tank com sede em Tel-Aviv, o primeiro trimestre de 2023 registrou o menor nível de investimento em start ups israelenses desde 2018. Foram US$ 1,7 bilhão (R$ 8,1 bilhões) neste período. Além disso, o número de contratos fechados foi o mais baixo já registrado: 112.
O relatório é claro em pontuar dois motivos: a recessão econômica global e a reforma judicial de Netanyahu. “O alto nível de incerteza em torno das instituições democráticas de Israel e a erosão da coesão social representam riscos significativos para a indústria de alta tecnologia”, aponta o documento. “Instamos o governo a reconhecer os danos causados à indústria de alta tecnologia e tomar todas as medidas necessárias para restaurar a estabilidade do setor”.
O documento ainda aponta que se a taxa de investimento se mantiver assim até o final do ano, os investimentos de Israel totalizarão US$ 6,8 bilhões (R$ 32,5 bilhões) em 2023, uma queda de aproximadamente 60% em relação ao ano anterior e 75% em relação a 2021. Porém, a maior preocupação é com a fuga de capital e de mão de obra para outros países. “Uma saída substancial de empresas e indivíduos deste setor para fora de Israel afetaria severamente as taxas de produtividade, tributação e qualidade de vida”.
“A cereja estragada do bolo são as agências de avaliação de crédito internacional que estão se manifestando abertamente e recomendando ao Netanyahu não aprovar a reforma porque isso pode afetar na avaliação do país”, lembra o historiador João Miragaya. Em maio, a agência de classificação de risco Standard & Poor’s afirmou que manteria a classificação favorável de Israel em AA- com uma perspectiva “estável”, mas citou “persistentes riscos políticos e de segurança domésticos e regionais” como ameaças potenciais à economia em seu relatório trimestral sobre o país.
Aumento da pobreza
Este cenário sombrio para o futuro vai ao encontro de uma economia que já se via em declínio. A história econômica de Israel começa com altos índices de pobreza, embora pouco desigual. Com a criação do Estado de Israel, há 75 anos, o país se viu com pouca infraestrutura, sem indústrias e uma alta inflação.
O começo da mudança veio no anos de 1960 quando Israel recebeu investimento por parte da Alemanha por causa do Holocausto, o que permitiu que o país iniciasse seu processo de industrialização. Mas o divisor de águas, explica Miragaya, foi a Guerra dos Seis Dias, que transformou Israel em uma potência militar na região, aumentou o tamanho do Estado e trouxe petróleo da Península do Sinai conquistada do Egito e reservas de água das Colinas do Golan conquistadas da Síria.
Finalmente, após conter uma hiperinflação na casa dos 400% nos anos 1980 e a perspectiva positiva após os Acordos de Oslo, a indústria de tecnologia de Israel começou a florescer. O cenário pós anos 1990 fez crescer a classe média israelense e colocou o país no “clube dos países ricos”, a OCDE. Porém, apesar da imagem de economia vibrante por causa do setor High Tech, o país configura entre os piores indicadores do grupo, atrás apenas da Costa Rica.
“Israel está entre os países menos desenvolvidos da OCDE, e durante muitos anos a explicação para isso foi que o Estado destinava uma fatia muito grande do orçamento pra defesa”, afirma Miragaya. “Com isso, obviamente que você deixa de investir em outras áreas”.
Ainda assim, durante esse tempo, a pobreza no país estava limitada a grupos sociais específicos: os ultra ortodoxos e os árabes-israelenses, cujas famílias tendem a ser muito grandes e necessitam de subsídios do Estado para sobreviver. Estes primeiros configuram como importante base de sustentação da atual coalizão de Netanyahu e muitos são apoiadores da reforma.
No entanto, nos últimos anos, com o aumento do custo de vida - Tel-Aviv é a terceira cidade mais cara para se viver segundo a The Economist - cada vez mais famílias das classes médias começam a regredir economicamente. Segundo um relatório publicado em dezembro pela ONG Latet, 27,7% dos israelenses estavam abaixo da linha da pobreza, um número que cresceu 14,9% desde o começo da pandemia de covid-19.
Mas até então, a inflação não era uma realidade em Israel, que chegou a ver taxas de deflação em anos recentes. Tanto a covid-19 quanto outras instabilidades políticas recentes do país que viveu cinco eleições em três anos, não impactaram a economia como fez nos últimos seis meses a tramitação judicial.
“A gente não viu o impactos dessas medidas anteriores na economia israelense, e as empresas de alta tecnologia inclusive tiveram um crescimento grande na época da covid-19, que foi o que segurou a economia de Israel durante esse momento”, ressalta o historiador.
“Israel tem uma crise de moradia que é antiga já e vem se acentuando, em que os alugueis são insustentáveis para as famílias. Mas a gente tem visto, principalmente no último ano, um aumento muito significativo dos alimentos, das frutas, das verduras, da carne e do leite e seus derivados, que são a base da alimentação do israelense”, continua.
À incerteza gerada pela reforma judicial se soma o crescimento demográficos dos árabes e ortodoxos na sociedade israelense, o que joga preocupação de um crescimento acentuado dessa tendência de pobreza no futuro. “Às vezes é preciso um choque de realidade para que as pessoas entendam que é necessário acelerar a mudança. Talvez seja isso que aconteça em Israel, ou talvez não. Mas essa situação preocupa muito uma parte grande de população”, completa o historiador.
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