Quando o ativista de direitos humanos Rafael Uzcategui ouviu que o chavismo estava voltando com a prática de anular passaportes, não quis pagar para ver e optou por se mudar para o México cerca de três meses atrás. Como previu, pouco tempo depois viu a palavra “anulado” em seu documento no sistema de migração da Venezuela.
Ele contou o episódio pessoal durante uma entrevista ao Estadão sobre o aumento da repressão de Nicolás Maduro após as eleições de 28 de julho. A anulação de passaportes é apenas um dos métodos de repressão intensificado pelo chavismo desde as eleições de 28 de julho, que já inclui mais de 1700 pessoas presas, o maior número já registrado em um curto intervalo de tempo, sendo mais de uma centena delas menores de idade.
Uzcategui não é o único que se vê agora em um limbo migratório. Cifras subnotificadas indicam que mais de 30 pessoas já reportaram ter seus passaportes anulados sem qualquer explicação.
Embora seja uma prática antiga do chavismo, que vem desde a explosão de protestos de 2014, a ação ganhou novos patamares após 28 de julho. Antes restrita a opositores, ativistas de direitos humanos e jornalistas, agora a prática também afeta cidadãos comuns, afirma Uzcategui que coordena a ONG Laboratório de Paz, por meio da qual recebeu dezenas de denúncias semelhantes de pessoas dentro e fora da Venezuela.
“Recebemos um caso de uma pessoa da sociedade civil que foi perguntar por que seu passaporte havia sido cancelado e foi detida por 8 horas”, relata, “Isso gera muito medo das pessoas apenas dizerem que estão nessa situação”. Isso explicaria a subnotificação de casos, diz o ativista.
Isso faz parte das técnicas ‘suaves’ que foram diagnosticadas como parte do padrão repressivo. Não é tortura, não é assassinato, mas faz parte dessas técnicas complementares para poder reduzir o exercício dos direitos na Venezuela
Rafael Uzcategui, diretor da ONG Laboratório de Paz
A prática também foi documentada por outras organizações como Foro Penal, Provea, Espacio Público, além da Comissão de Direitos Humanos da OEA e a Human Rights Watch.
Isso ocorre em um momento em se espera que a emigração no país volte a crescer após Maduro se declarar vitorioso sem apresentar as provas dos resultados. Já antes das eleições, mais de um milhão de venezuelanos diziam em pesquisas que planejavam deixar o país caso Maduro não deixasse o poder.
“Nós recebemos dezenas de relatos de pessoas que, ao se aproximarem de um posto migratório, seja em Maiquetía [onde fica o aeroporto internacional] ou em postos de controle terrestre e descobriram que seu passaporte estava anulado”, relata a diretora para as Américas da HRW Juanita Goebertus Estrada. “Isso restringe a mobilidade e a possibilidade de as pessoas saírem do território venezuelano quando desejarem.”
“Também gera restrições para acessar outros países. No caso da Colômbia, por exemplo, há pessoas que estão buscando acessar a proteção do seu direito de asilo, que é, naturalmente, uma proteção internacional que pessoas perseguidas politicamente deveriam ter na Colômbia. No entanto, elas têm encontrado dificuldades devido à impossibilidade de carimbar seu passaporte ao sair da Venezuela”, continua.
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Sem explicação
Além de limitar a saída de venezuelanos do país, os ativistas acreditam que a ferramenta tem sido utilizada como uma arma coercitiva e não só contra opositores.
“É possível que isso também esteja ocorrendo dentro dos próprios setores do governo, com gerentes de empresas públicas e altas patentes militares que tenham tido seus passaportes anulados como medida coercitiva frente a este clima de alta volatilidade social e política”, sugere o diretor da organização Provea, Oscar Murillo.
A prática ganhou moldes jurídicos a partir de 2021 com uma legislação que a autorizava, explica Rafael Uzcategui. “Isso começou antes do ano de 2017, quando algumas figuras públicas dissidentes, como líderes políticos ou jornalistas conhecidos da Venezuela, começaram a denunciar que seus passaportes eram cancelados ou eram informados de que o passaporte havia sido cancelado quando tentavam viajar pelo aeroporto internacional de Caracas”
“O argumento, nesses primeiros casos, era que o passaporte havia sido denunciado como roubado e, por isso, havia sido cancelado, mas, claro, isso não era verdade, eles não haviam relatado ter perdido o passaporte”, completa.
Na página do Serviço Administrativo de Identificação, Migração e Extrangeiro (Saime, na sigla em espanhol) se informa que um passaporte pode ser anulado pelo próprio portador em caso de roubo, extravio, perda ou danificação. A nova legislação de 2021 permitiu que o cancelamento também ocorresse por determinação judicial em caso de uso indevido do documento. Mas as denúncias de agora não apresentam qualquer justificativa.
Foi o que aconteceu com o ex-presidente do Conselho Nacional Eleitoral (CNE) e agora político opositor Andrés Caleca. Ao escutar que estavam anulando passaportes depois das eleições, ele decidiu checar no sistema qual era o status do seu documento. Ali viu a palavra “anulado” em vermelho.
“Assim, sem aviso, porque têm vontade, porque está fora do seu alcance”, escreveu na rede social X (antigo Twitter) em 11 de agosto.
“Simplesmente anularam mesmo que tivesse data de vigência até 2032, sem nenhum aviso ou explicação. É tudo o que sei”, disse ao Estadão.
Outro caso emblemático foi de Yendri Velásquez, diretor do Observatório Venezuelano de Violência LGBT+, que foi preso por algumas horas em 3 de agosto quando tentou viajar pelo Aeroporto Internacional Simón Bolívar e descobriu que seu passaporte estava anulado.
“A partir de 28 de julho, o cancelamento é massivo”, observa Uzcategui. “E note que há líderes sociais e políticos que tiveram seus passaportes cancelados, mas há também uma série de cidadãos que não têm um perfil público significativo que também denunciaram que seu passaporte foi cancelado, mesmo estando fora do país”
O coordenador nacional do partido opositor Voluntad Popular no Equador, Luis Magallanes, também denunciou que seu passaporte e de outros dirigentes do partido haviam sido anulados sem explicação. Também houve relatos na Colômbia, Peru, Chile e Argentina.
Em nota, a CIDH classificou a prática, junto com uma série de outras, como terrorismo de Estado. “A CIDH recebeu informações sobre a anulação ilegal de passaportes de pelo menos 36 pessoas defensoras, comunicadoras e suas famílias”, escreveu.
“Um exemplo é o caso de Yendri Velásquez, defensor dos direitos humanos das pessoas LGBTI, que foi detido arbitrariamente e teve seu passaporte anulado quando se preparava para viajar e participar de uma sessão do Comitê para a Eliminação da Discriminação Racial”, exemplifica.
“A anulação de passaportes está sendo usada pelo regime como uma forma de reprimir e intimidar cidadãos que têm tentado exercer o direito de defesa do voto e o direito ao protesto”, afirmou a diretora da HRW.
O custo para tirar um novo passaporte na Venezuela é de mais de 200 dólares, um valor fora da realidade da maioria dos venezuelanos que enfrentam uma crise econômica profunda há anos.
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