Dilemas da geopolítica dão corpo a games

Exposição em São Paulo leva jogadores a lidar com terrorismo, trabalho infantil e diplomacia

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Por Renata Tranches

Acostumado a empunhar fuzis e a matar muita gente no campo de batalha, o supervisor de segurança Everaldo Rodrigues, de 43 anos, sentiu uma certa estranheza ao se ver procurando comida e meios de sobrevivência em uma cidade devastada pela guerra. No universo fictício dos games, onde essas situações hipotéticas ocorrem, ele encontrou essa inversão de papéis ao experimentar alguns dos jogos da exposição Games e Política, no Centro Cultural São Paulo, até o dia 30.

Nos projetos independentes, alguns deles até vetados nas lojas mais famosas de venda de games, os organizadores propõem debater política por meio dos jogos eletrônicos, nos quais muitas vezes mudar de fase ou acumular pontos significa encarar algum dilema moral ou ético. Esses dilemas estão ligados a algumas das crises globais mais sérias, que envolvem terrorismo, espionagem, conflitos, guerras, entre outros. 

Jogos propõem reflexão sobre problemas da atualidade Foto: DANIEL TEIXEIRA/ESTADÃO

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Rodrigues conta que estava acostumado a jogos clássicos de guerra, como Call of Duty e Battlefield, nos quais sempre assumiu o papel de soldado e combatente. Ao experimentar This War of Mine (11 Bit Studios) se viu vasculhando escombros e brigando com personagens debilitados pela fome por um pouco de comida. “Nesses outros jogos, como o Battlefield, por exemplo, você invade os locais e as vítimas da guerra são meros coadjuvantes”, diz, acrescentando que achou interessante a proposta de se fazer refletir enquanto se joga. 

No total, foram 18 jogos divididos em 6 categorias: reação à política, imigração, questões militares, crítica de mídia, games como instrumento de reflexão e jogos de poder. 

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Uma das responsáveis por trazer a exposição ao Brasil, Anja Riedeberger, diretora do Serviço de Informação para América do Sul do Instituto Goethe, explica que a ideia era concentrar o foco no território político, uma tendência no setor independente que vem crescendo desde 2004, a partir da reeleição de George W. Bush, nos Estados Unidos, e a Guerra no Iraque. 

A exposição já passou por Jacarta (Indonésia), Seul (Coreia do Sul), Boston (EUA) e São Paulo. Depois de um período de manutenção na Alemanha, seguirá para Rússia, Vietnã e Grécia. 

Como exemplo de um dos dilemas, a alemã cita o jogo 1378 (km – Jens M. Stober). A história se passa na Guerra Fria com a Alemanha dividida em Ocidental e Oriental. Na narrativa, o jogador pode ser o guarda de fronteira que tem de impedir qualquer pessoa de tentar atravessar a barreira que separa as duas Alemanhas. Para isso, terá de matar todos que se arriscam.

“O jogo não foi proibido, mas sofreu muitas críticas na Alemanha, acusado de desrespeitar as vítimas que morreram nessa fronteira”, relata. Por outro lado, diz, ele lembra a violência que houve no local há tão pouco tempo. O nome, 1378, remete à distância da fronteira que dividiu as duas Alemanhas até 1989.

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Proibido na loja virtual Apple Store, o Phone Story (Molleindustria) é um dos mais ácidos da exposição. Seu desenvolvedor, Paolo Pedercini, propõe uma reflexão sobre as condições desumanas sob as quais os smartphones são produzidos. Pedercini afirmou em entrevista ao Guardian que a Apple atribuiu a remoção do jogo da loja ao fato de ele ter “cruzado linhas específicas sobre as diretrizes para a aceitação de aplicativos”.

No primeiro nível do jogo, há um cenário estilizado de crianças em uma mina de coltan no Congo. A combinação desse minério é utilizada na fabricação de smartphones e tablets. No papel de guarda armado, o jogador tem a missão de “motivar” as exaustas crianças a continuarem trabalhando. A próxima fase faz referência à série de suicídios nas fábricas taiwanesas de eletrônicos Foxcoon que produz, entro outros, o iPhone. A missão do jogador é tentar resgatar trabalhadores que se jogam do teto da fábrica e fazer com que voltem ao trabalho.

As discussões são densas para uma mídia de entretenimento. Segundo o coordenador local da exposição, Jean Rafael Tomceac, idealizador do Coletivo Jogo Limpo, o desafio é “contar coisas que não são ditas” dentro desse universo lúdico. 

“Tentamos mascarar dentro da mecânica de jogo, que é divertido e envolve, uma mensagem que faça as pessoas refletirem”, conta. “Quem imaginaria que manter as velas num jogo acesas teria algum sentido?” Ele se refere ao game Madrid (Gonzalo Frasca), criado como uma reação ao ataque contra os trens na Espanha, em março de 2004, que deixou 191 mortos. 

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