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Análise|Discurso de Biden vai ressaltar seu legado e preparar a cena para sua aposentadoria

Biden deveria ser o ator principal na reunião de seu partido; em vez disso, protagonizará um número de abertura

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Por Matt Viser (Washington Post)
Atualização:

CHICAGO — Ao longo de uma vida de triunfos e tragédias, o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, aprendeu, segundo suas palavras, a respeitar o destino. Quatro anos atrás, ele sentiu que sua biografia tinha finalmente se alinhado com a história: ele era o homem certo, na hora certa, no lugar certo.

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Agora, conforme seu partido se reúne em torno de outra indicação, Biden deixou de ser o favorito do destino. Ele discursará no primeiro dia da Convenção Nacional Democrata, nesta segunda-feira, 19, e depois planeja sair de férias com a família enquanto o jubiloso encontro partidário segue sem sua presença.

Na hora que os balões forem soltos, na noite da quinta-feira, 22, sobre a multidão entusiasmada em Chicago, ele terá partido há muito tempo. E ainda que tenha esperado que esta semana fosse tratar de reunir seu partido em torno de sua visão para um segundo mandato, Biden reorientou-se no sentido de impulsionar a vice-presidente Kamala Harris, num reconhecimento de que seu legado está profundamente ligado à capacidade dela de vencer em novembro.

Biden, que passou o fim de semana em Camp David trabalhando em seu discurso com graduados conselheiros, ao ser questionado na noite de sexta-feira, 16, a respeito de que mensagem pretende transmitir aos democratas, respondeu: “Vençam”.

Quando ele subir no palanque na noite desta segunda-feira, os democratas se recordarão do meio século de Biden como um de seus líderes. Ele estará cercado de sua família; a primeira-dama, Jill Biden, vai falar; e o presidente ouvirá homenagens de vários oradores. Os delegados receberão uma bolsa de brindes que inclui uma “Caneca do Joe”, e os banners digitais exibirão a frase “Propague a Fé”, em referência a uma fala que ele costuma pronunciar no encerramento de seus discursos. Um grupo de seus assessores da campanha de 2020 planeja reunir-se em uma festa na noite desta segunda.

Mas alguns dos indivíduos que aplaudirão o discurso do presidente nesta noite serão os mesmos que poucas semanas atrás o pressionavam para abandonar a disputa contra sua vontade, convencidos de que ele deixara de representar o futuro do partido. Quando os aplausos silenciarem, os democratas seguirão adiante, fazendo uma transição visível para sua nova geração, enquanto Biden desaparece de férias na Califórnia.

Será um acorde dissonante numa vida inteira dedicada à política e, como grande parte da vida de Biden, um momento repleto de emoções conflitantes.

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A noite honrará o que muitos democratas consideram uma presidência histórica, mas também refletirá a rapidez com que a sorte de Biden virou em questão de semanas. Primeiro veio o desempenho calamitoso no debate presidencial que, para muitos, colocou em dúvida sua competência. E então a tentativa de permanecer no poder e a campanha de pressão de um partido angustiado; a dolorosa decisão de sair de cena; e agora o discurso para impulsionar sua sucessora.

Biden compareceu a todas as convenções democratas nos últimos 50 anos, exceto uma. Ele presenciou as brigas entre as bases e as profundas divisões em 1980; foi testemunha da eloquência desmedida de um novato promissor chamado Barack Obama, em 2004; e então, quatro anos depois, discursou como seu colega de chapa. Mas Biden nunca participou de uma convenção como esta, onde ele próprio desempenha um papel inédito.

Esta convenção deveria ter tratado de indicar Biden novamente para a disputa presidencial e posicioná-lo para conquistar outros quatro anos no topo do poder mundial. Em vez disso, porém, será uma passagem de bastão. Poucas semanas atrás, Biden pensava sobre a agenda de um segundo mandato; agora pondera a respeito da vida fora da política.

Biden discursará no primeiro dia da Convenção Nacional Democrata, nesta segunda-feira, 19, e depois planeja sair de férias com a família. Foto: Brendan Smialowski/AFP

Ainda que a insistência de Biden em concorrer à reeleição foi percebida por muitos como empáfia, sua decisão de deixar a disputa tem sido celebrada como um ato de humildade de um político de 81 anos que passou grande parte da vida tentando virar presidente.

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“O poder da presidência é incrível. Abrir mão do Air Force One, da Casa Branca e da posição de autoridade que a função de presidente produz é um ato de abnegação e, eu diria, até de autossacrifício”, afirmou o senador Chris Coons (democrata de Delaware), um confidente de longa data de Biden. “Acho que ele chega a este momento otimista. Ele sabe perfeitamente que nada é mais importante do que derrotar Donald Trump outra vez e defender a democracia.”

A fala de Biden nesta segunda-feira deverá colocar o foco sobre os quatro anos recentes, refletindo o quanto o país avançou após ele assumir a presidência em meio a uma pandemia, um colapso econômico e uma profunda polarização política. Biden encara um difícil ato de equilíbrio entre celebrar seu próprio papel em fazer o país se mover adiante e louvar sua vice-presidente e possível sucessora.

Conforme trabalhava no discurso, Biden colocou foco em temas que orientaram sua presidência, afirmaram conselheiros. Ele planeja falar sobre suas tentativas de apoiar a classe média. Também mencionará a luta pela democracia americana — e as ameaças que, segundo ele, Trump representa para o sistema — assim como suas tentativas de promover a diplomacia em vez de uma ideologia “EUA em primeiro lugar”.

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Quatro anos atrás, Biden aceitou a indicação democrata numa convenção virtual, e raramente durante sua presidência ele atraiu multidões vibrantes. Mas nesta segunda-feira seus amigos aguardam uma homenagem de todo o partido, com os democratas que semanas atrás o pressionavam para desistir agora levantando-se para aplaudi-lo.

“Tenho esperança de que ele receberá a salva de palmas contínua mais extensa que qualquer líder que já discursou na convenção recebeu na história dos EUA”, afirmou Coons. “Ele certamente merece.”

Nas semanas recentes, Biden diminuiu dramaticamente sua presença em eventos públicos e no noticiário, o que não é nada fácil para um político de vida inteira, aceitando que o melhor caminho é deixar os holofotes para Harris. A agenda pública do presidente anda mais suave, e ele parece evitar qualquer coisa que possa ser considerada contraproducente num momento que Harris sobe em palanques de vários comícios lisonjeiros.

“É o momento lógico seguinte em um processo que ele desencadeou ao decidir abandonar a disputa e apoiá-la”, afirmou o ex-chefe de gabinete do presidente Ron Klain, que insistiu até o fim ao seu ex-chefe que continuasse na disputa. “O discurso da segunda à noite faz parte, e depois ele fará campanha para ela no outono (Hemisfério Norte).”

Biden fez as pazes com sua decisão, afirmam fontes próximas ao presidente, mas ainda está magoado com alguns democratas que o fizeram se sentir abandonado quando estava convencido de que conseguiria derrotar Trump. Biden e seu alto escalão acreditam que ele foi ferido politicamente não apenas por seu desempenho no debate, mas também pelas hesitações e dúvidas dos líderes de seu próprio partido.

Desde que se retirou da campanha, contudo, Biden sinaliza que está completamente dedicado a ajudar Harris, num reconhecimento de que seu legado está associado ao dela e de que a vice-presidente é agora o veículo de seu objetivo final: ver Trump derrotado novamente.

“Não acho que exista nenhum amargor”, afirmou Klain. “Acho que há um senso de dever, uma determinação em fazer o que tem de ser feito para garantir que ela seja eleita, não Trump.”

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Convenção Democrata será realizada entre esta segunda-feira, 18, e a próxima quinta-feira, 22. Foto: Paul Sancya/AP

Os organizadores da convenção tiveram de alterar a programação após a saída de Biden, mas afirmam que o evento não será tão radicalmente diferente em relação ao que eles passaram um ano preparando. Uma fonte envolvida na organização, falando sob condição de anonimato para discutir planejamentos internos, descreveu a convenção deste ano como “o mesmo avião, com a mesma fuselagem, a mesma pintura e a mesma capacidade de transporte, mas outros copilotos e vídeos diferentes oferecidos a bordo”.

Segundo os planos anteriores, por exemplo, haveria uma narração discorrendo sobre as leis que Biden sancionou; agora o texto será alterado em alguns momentos para enfatizar como Harris atuou ao lado do presidente para sua aprovação.

“Acho que ele quer sim marcar o tom. Acho que ele tentará manter o Partido Democrata unido em razão dessa ameaça existencial e do que uma presidência de Trump significaria para o país”, afirmou Ted Kaufman, um dos amigos mais próximos de Biden, que estará ao lado do presidente nesta segunda-feira.

“Não será de nenhuma maneira um discurso de adeus”, acrescentou Kaufman. “É uma grande oportunidade para ele fazer o que faz bem e o que é incrivelmente importante para ele: pedir que Harris seja eleita presidente, não Trump.”

Mas mesmo que não seja um discurso de despedida, a fala desta segunda-feira será provavelmente uma das últimas oportunidades de Biden se dirigir a uma plateia nacional tão grande. Um final meio melancólico para uma carreira na política nacional iniciada em 1972, quando ele surgiu como um senador-eleito de 29 anos notável por sua juventude e energia.

“Por um tempo enorme, eu fui jovem demais”, disse Biden na quinta-feira, provocando risos nos presentes, em um evento conjunto com Harris. “Agora sou velho demais.”

Os degraus que levam ao recinto da convenção terão citações inscritas — incluindo uma de Biden, “A história está nas suas mãos”, pronunciada pelo presidente em um discurso no Salão Oval quando ele explicou sua decisão de desistir de disputar a reeleição.

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Biden compareceu a quase todas as convenções democratas desde 1972. Em 1976, foi um dos coordenadores da campanha presidencial de Jimmy Carter. Em 1980, Biden discursou na noite de abertura da convenção denunciando “falsa esperança”, as “hipocrisias” e os “sonhos vazios” oferecidos ostensivamente por Ronald Reagan, enquanto a delegação de Delaware levantava um cartaz com a expressão “Biden ‘84″.

Esse discurso foi transmitido ao vivo somente por uma emissora de TV, a CBS, enquanto as demais optaram por noticiar que o ex-senador Edward Kennedy (democrata de Massachusetts) estava abandonando a disputa nas primárias para apoiar Carter, que era presidente na época.

A única convenção à qual Biden não compareceu foi a de 1988, quando ele se recuperava de um aneurisma cerebral. Quando era uma figura em ascensão no partido, ele sempre discursou no horário nobre. Em 2004, Biden usou sua fala para citar William Butler Yeats, seu poeta irlandês favorito.

Em 2008 e 2012, Biden foi um dos principais oradores como colega de chapa de Obama e foi apresentado por seu filho Beau. Em 2016, usou sua fala na convenção para elogiar a indicada do Partido Democrata para a disputa presidencial daquele ano, Hillary Clinton, alertou sobre os perigos representados por Trump e aparentemente se despediu — mas retornou quatro anos depois como indicado democrata.

A convenção de 2020 foi uma das mais incomuns na história do Partido Democrata: um evento virtual no auge da pandemia de coronavírus.

“Nenhuma geração sabe o que a história lhe exigirá. A única coisa que podemos saber é se estaremos ou não prontos quando esse momento chegar”, afirmou Biden naquela conferência. O então candidato à Casa Branca falou sobre as quatro crises que, ao seu ver, acometiam os EUA: a covid-19, a injustiça racial, o colapso da economia e a mudança climática.

“Portanto, para nós a dúvida é simples: estamos prontos?”, disse ele. “Acredito que sim. Nós temos de estar.” Quatro anos depois, a conjuntura é muito diferente. E Biden foi forçado a reconhecer o que a história lhe exige neste momento: sair de cena./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO.

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Análise por Matt Viser
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