Opinião | Discurso de Lula indica desejo de liderar o Sul Global, mas com pouca chance de prosperar

Sem excedente de poder, o Brasil busca protagonismo em questões globais que não tem como interferir e perde a oportunidade nas áreas em que tem efetivamente o que dizer e influir

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colunista convidado
Foto do author Rubens Barbosa
Atualização:

O discurso do presidente Luiz Inácio Lula da Silva não repetiu a prática usual de presidentes brasileiros que, na abertura da Assembleia-Geral da ONU, apresentam um relatório sobre a situação econômica e social no Brasil. O Fórum das Nações Unidas é global, e o interesse é conhecer o que os países acham da situação internacional e dos principais problemas que impactam os rumos dos acontecimentos globais.

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Neste ano, não faltou assunto, e o presidente Lula enfocou, com uma visão crítica, as dificuldades da comunidade internacional em enfrentá-los e superá-los. Fome e pobreza, meio ambiente e mudança de clima, governança global, protecionismo, as guerras na Ucrânia e no Oriente Médio foram focalizados quanto à capacidade das Nações Unidas responderem de forma eficaz a esses desafios. O fracasso das organizações multilaterais voltadas para a paz e Segurança e para os problemas econômicos e sociais foi enfatizado corretamente.

Sobre o Pacto para o Futuro, que discutiu as transformações globais e as mudanças geopolíticas, Lula disse que sua difícil aprovação demonstra o enfraquecimento da capacidade coletiva de negociação e diálogo e que seu alcance limitado também é a expressão do paradoxo do nosso tempo: “Andamos em círculos entre compromissos possíveis que levam a resultados insuficientes”.

Sobre os conflitos bélicos, os gastos militares e as guerras, Lula observou que será necessário criar condições para a retomada do diálogo direto entre as partes. “Essa é a mensagem do entendimento de seis pontos que China e Brasil oferecem para que se instale um processo de diálogo e o fim das hostilidades na guerra na Ucrânia”.

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Lula discursando durante a Assembleia Geral das Nações Unidas na sede das Nações Unidas em Nova York. Foto: Michael M. Santiago/Getty Images via AFP

Em Gaza e na Cisjordânia, acrescenta o presidente, ocorre uma das maiores crises humanitárias da história recente, e que agora se expande perigosamente para o Líbano. O que começou como ação terrorista de fanáticos contra civis israelenses inocentes, tornou-se punição coletiva de todo o povo palestino, com mais de 40 mil vítimas fatais, em sua maioria mulheres e crianças. “O direito de defesa transformou-se no direito de vingança, que impede um acordo para a liberação de reféns e adia o cessar-fogo”.

No tocante ao meio ambiente e mudança climática, Lula ressaltou a interdependência global e disse que “o planeta está farto de acordos climáticos não cumpridos e de metas de redução de emissão de carbono negligenciadas e do auxílio financeiro aos países pobres que não chega”.

“O negacionismo sucumbe ante as evidências do aquecimento global e 2024 caminha para ser o ano mais quente da história moderna. Furacões no Caribe, tufões na Ásia, secas e inundações na África e chuvas torrenciais na Europa deixam um rastro de mortes e de destruição”.

No sul do Brasil, registrou-se a maior enchente desde 1941. A Amazônia está atravessando a pior estiagem em 45 anos. Incêndios florestais se alastraram pelo país e já destruíram 5 milhões de hectares apenas no mês de agosto. Com um certo exagero, o presidente afirmou que seu governo “não terceiriza responsabilidades nem abdica da sua soberania. Além de enfrentar o desafio da crise climática, o Brasil luta contra quem lucra com a degradação ambiental”. Afirmou que “não transigirá com ilícitos ambientais, com o garimpo ilegal e com o crime organizado”, embora na realidade os esforços do governo não consigam controlar e reverter essa situação. Notou, com certa imprecisão que “o desmatamento na Amazônia foi reduzido em 50% no último ano e que será erradicado até 2030″, não se sabe como.

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Embora não seja exatamente o que está ocorrendo, afirmou não ser mais admissível pensar em soluções para as florestas tropicais sem ouvir os povos indígenas, comunidades tradicionais e todos aqueles que vivem nelas e que a visão do Brasil de desenvolvimento sustentável está alicerçada no potencial da bioeconomia. Nesse contexto, mencionou que o Brasil sediará a COP-30, em 2025, convicto de que o multilateralismo é o único caminho para superar a urgência climática.

Repetindo afirmações que na realidade não são respaldadas por políticas públicas, o presidente Lula voltou a mencionar que “o Brasil desponta como celeiro de oportunidades neste mundo revolucionado pela transição energética. Somos hoje um dos países com a matriz energética mais limpa: 90% da nossa eletricidade provém de fontes renováveis como a biomassa, a hidrelétrica, a solar e a eólica. Fizemos a opção pelos biocombustíveis há 50 anos, muito antes que a discussão sobre energias alternativas ganhasse tração”.

Com forte dose de exagero, observou que “o Brasil está na vanguarda em outros nichos importantes como o da produção do hidrogênio verde e que é chegada a “hora de enfrentar o debate sobre o ritmo lento da descarbonização do planeta e trabalhar por uma economia menos dependente de combustíveis fósseis”.

Mereceram também referência no discurso presidencial as dificuldades enfrentadas pela América Latina, a luta pela preservação da democracia, a esperança de condições menos pesadas nas finanças internacionais para os países mais pobres, a necessidade de a inteligência artificial ser menos assimétrica para “evitar um verdadeiro oligopólio do saber, com a concentração sem precedentes nas mãos de um pequeno número de pessoas e de empresas, sediadas em um número ainda menor de países. Interessa-nos uma inteligência artificial emancipadora, que também tenha a cara do Sul Global e que fortaleça a diversidade cultural”.

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Em mensagem final, Lula constatou que, ao final do primeiro quarto do século 21, as Nações Unidas estão cada vez mais esvaziadas e paralisadas. Foto: AP Photo/Richard Drew

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Em mensagem final, Lula constatou que, ao final do primeiro quarto do século 21, as Nações Unidas estão cada vez mais esvaziadas e paralisadas. “É hora de reagir com vigor a essa situação, restituindo à Organização as prerrogativas que decorrem da sua condição de foro universal. Precisamos contemplar uma ampla revisão da Carta. Sua reforma deve compreender os seguintes objetivos: a transformação do Conselho Econômico e Social no principal foro para o tratamento do desenvolvimento sustentável e do combate à mudança climática, com capacidade real de inspirar as instituições financeiras; a revitalização do papel da Assembleia Geral, inclusive em temas de paz e segurança internacionais; o fortalecimento da Comissão de Consolidação da Paz. a reforma do Conselho de Segurança, com foco em sua composição, métodos de trabalho e direito de veto, de modo a torná-lo mais eficaz e representativo das realidades contemporâneas”.

O discurso de Lula claramente visa colocá-lo como um dos líderes, senão o líder, do chamado Sul Global. Grande parte do discurso focalizou declarações de intenções com pouca chance de prosperar hoje pelas realidades do poder na mão de poucos países.

Sem excedente de poder, o Brasil busca protagonismo em questões globais que não tem como interferir para resolver. Com esse gesto de preocupação global, o Brasil perde tempo e oportunidade de ganhar espaço nas áreas em que tem efetivamente o que dizer e influir, se tivesse uma política coerente e eficiente internamente nas questões de meio ambiente, segurança alimentar e transição energética e uma política externa voltada essencialmente para os interesses nacionais.

Opinião por Rubens Barbosa

Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), foi embaixador do Brasil em Londres (1994-99) e em Washington (1999-2004)

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