Bloqueio naval russo à Ucrânia interrompe exportação de alimentos, dizem EUA

Documentos de agências de inteligência americana indicam ataque deliberado ao fornecimento mundial de alimentos

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Por Shane Harris
Atualização:

THE WASHINGTON POST - Informações da inteligência dos EUA recentemente abertas ao público apontam que um bloqueio naval russo interrompeu o comércio marítimo nos portos ucranianos, no que os líderes mundiais chamam de ataque deliberado à cadeia global de fornecimento de alimentos, levantando temores de instabilidade política e escassez, a menos que grãos e outros produtos agrícolas essenciais sejam autorizados a fluir livremente da Ucrânia.

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A marinha da Rússia agora controla efetivamente todo o tráfego no terço norte do Mar Negro, tornando-o inseguro para o transporte comercial, de acordo com um documento do governo dos EUA obtido pelo The Washington Post.

O documento, baseado em informações que recentemente perderam a confidencialidade, analisou a densidade da atividade naval russa ao longo de partes da costa sul da Ucrânia e da Península da Crimeia, que a Rússia ocupou e anexou em 2014. O bloqueio que se seguiu à invasão russa em fevereiro interrompeu o tráfego marítimo civil, “aprisionando as exportações agrícolas ucranianas e comprometendo o abastecimento global de alimentos”, de acordo com uma autoridade dos EUA, que falou sob condição de anonimato para descrever o conteúdo do documento.

“O impacto das ações da Rússia não pode ser subestimado, pois as exportações marítimas da Ucrânia são vitais para a segurança alimentar global”, afirmou o funcionário. “A Ucrânia fornece cerca de 10% das exportações mundiais de trigo, e a grande maioria dessas exportações – aproximadamente 95% em 2020 – partiu dos portos do Mar Negro.”

Nos últimos dias, líderes mundiais alertaram que o bloqueio da Rússia representa uma das ameaças mais terríveis à estabilidade global desde o início da guerra. A Ucrânia é uma cesta de alimentos global. O país é o maior exportador mundial de óleo de girassol, o quarto maior exportador de milho e o quinto maior exportador de trigo.

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Vista aérea de um campo de trigo em Kharkiv, na Ucrãnia e 5 de abril Foto: Thomas Peter / REUTERS

Falando no Fórum Econômico Mundial em Davos, na Suíça, na terça-feira, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse que 20 milhões de toneladas de trigo foram represadas na Ucrânia. A Rússia bombardeou deliberadamente armazéns de grãos ucranianos e está “acumulando suas próprias exportações de alimentos como uma forma de chantagem”, disse ela, “retendo suprimentos para aumentar os preços globais ou negociando trigo em troca de apoio político. Isso é usar fome e grãos para exercer poder.”

Os países politicamente frágeis são especialmente vulneráveis, disse von der Leyen, observando que os preços do pão no Líbano aumentaram 70% e os embarques de alimentos de Odessa para a Somália pararam por causa das ações da Rússia.

O secretário de Estado americano, Antony Blinken, repetiu a avaliação sombria na semana passada em comentários nas Nações Unidas, chamando o bloqueio da Rússia de “um esforço deliberado” para desestabilizar o suprimento mundial de alimentos.

Desde que a Rússia emitiu um aviso aos marinheiros em fevereiro de que áreas significativas do Mar Negro estavam fechadas ao tráfego comercial, “os militares russos bloquearam repetidamente a passagem segura de e para a Ucrânia fechando o Estreito de Kerch, reforçando seu controle sobre o Mar de Azov, mantendo navios de guerra nos portos ucranianos. E a Rússia atingiu portos ucranianos várias vezes”, disse Blinken.

“O suprimento de alimentos para milhões de ucranianos - e outros milhões em todo o mundo - foi literalmente mantido refém pelos militares russos”, disse ele.

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Durante semanas, o presidente ucraniano Volodmir Zelenski pediu às potências ocidentais que quebrassem o bloqueio. Em suas declarações ao fórum de Davos, Zelenski disse que as forças russas estavam impedindo a Ucrânia de exportar 22 milhões de toneladas de grãos, girassol e outros alimentos, que estavam “apodrecendo” na Ucrânia.

“Se não exportarmos [grãos] nos próximos meses, se não houver acordos políticos com a Rússia por meio de intermediários – haverá fome, haverá uma catástrofe, haverá déficit, haverá um preço alto”, Zelenski advertiu.

Mas as potências ocidentais têm poucas opções para acabar com o bloqueio russo.

Os Estados Unidos não têm navios no Mar Negro, disse o general Mark Milley, chefe do Estado-Maior Conjunto, a repórteres em entrevista coletiva no Pentágono na segunda-feira. O governo Biden resistiu firmemente a qualquer envolvimento militar direto na guerra.

A Ucrânia concentrou-se na prevenção de um ataque anfíbio das forças russas às principais cidades e áreas costeiras, o que poderia ajudar a Rússia a solidificar seu controle no leste do país, onde Moscou concentrou sua energia depois de não conseguir conquistar Kiev e outras cidades importantes.

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“No momento, há um impasse [na região do Mar Negro] entre os ucranianos que querem garantir que não haja nenhum tipo de desembarque anfíbio contra Odessa”, um porto estratégico importante, disse Milley. A área se tornou “uma zona proibida para o transporte comercial”, disse ele.

Os militares ucranianos obtiveram alguns sucessos notáveis contra a marinha russa, afundando o navio-almirante do Mar Negro, Moskva, com alguma ajuda da inteligência fornecida pelos Estados Unidos. Mas esses ataques foram insuficientes para reabrir os portos ucranianos.

A Comissão Europeia propôs a exportação de trigo e outros grãos da Ucrânia por via férrea, rodoviária ou fluvial. Mas não está claro como as forças aliadas poderiam proteger esses carregamentos de ataques russos.

A Dinamarca planeja enviar mísseis antinavio Harpoon e um lançador para a Ucrânia, o que poderia ajudar a romper o bloqueio e fazer com que as exportações de alimentos fluíssem novamente. Mas pode levar meses para treinar militares ucranianos sobre como usar as armas e integrá-las às defesas costeiras do país, segundo especialistas militares.

A Ucrânia é o maior exportador mundial de óleo de girassol, o quarto maior exportador de milho e o quinto maior exportador de trigo Foto: REUTERS / REUTERS

“Mesmo antes da invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia, 2002 era apontado para ser o ano mais inseguro em termos de alimentos já registrado em todo o mundo, tornando os abastecimentos vindos da Ucrânia ainda mais críticos”, disse Michael Carpenter, embaixador dos EUA na Organização para Segurança e Cooperação na Europa , em comentários na semana passada em Viena.

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Carpenter citou relatórios do governo ucraniano de que as forças russas roubaram 400 mil toneladas de trigo ucraniano, bem como equipamentos agrícolas, que foram enviados de volta ao território russo. Ele disse que as forças russas também destruíram estradas, ferrovias e estações ferroviárias necessárias para transportar produtos para exportação, além do bloqueio de portos marítimos.

“Como resultado da agressão da Rússia, a escassez global de alimentos está aumentando e os preços dos alimentos estão subindo, exacerbando o sofrimento e as dificuldades para milhões de pessoas vulneráveis em todo o mundo”, disse Carpenter, observando uma estimativa do Programa Mundial de Alimentos de que a guerra pode levar 47 milhões de pessoas a mais em todo o mundo à “insegurança alimentar aguda”.

Imagens comerciais de satélite parecem confirmar algumas das alegações de Carpenter e do governo ucraniano. Fotos tiradas na semana passada e publicadas pela Maxar Technologies mostraram navios russos carregando grãos em Sebastopol, um porto na Crimeia ocupada pelos russos.

Autoridades russas negaram que estão tentando cortar as exportações ucranianas e culparam as sanções ocidentais por interrupções no fornecimento global de alimentos.

“Essas proibições destruíram em um dia, cadeias de transporte e logística de longo prazo, convenientes e confortáveis”, disse o ministro das Relações Exteriores da Rússia, Serguei Lavrov, em comentários em Omã no início deste mês.

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Não oferecendo nenhuma evidência para apoiar suas alegações, Lavrov acusou as autoridades ucranianas de se recusarem a deixar “dezenas de navios partirem de seus portos, incluindo aqueles que entregam trigo para várias partes do mundo. Eles até fecharam seus portos colocando minas em vias de saída, impossibilitando a saída desses navios.”

O The Middle East Institute, um think tank apartidário em Washington, acusou a Rússia na semana passada de violar um acordo internacional que permite à Turquia regular o trânsito de navios de guerra em tempos de guerra através do Estreito Turco, que conecta os mares Negro e Egeu.

A Turquia acionou a Convenção de Montreux quatro dias depois que a Rússia invadiu a Ucrânia, o que impediu a Rússia de trazer mais navios de guerra para o Mar Negro, mas Moscou contornou o acordo usando navios mercantes - que não são proibidos nas vias navegáveis - para abastecer suas operações militares na Ucrânia. apurou o instituto, citando uma análise do tráfego naval.

O relatório também acusou a Rússia de roubar grãos ucranianos “em escala industrial” e usar os lucros para financiar sua guerra.

“É um absurdo que a Rússia tenha sido autorizada a usar como arma as negociações comerciais, bloqueando ilegalmente os portos de Odessa e Chornomorsk, enquanto também lucram com a venda de grãos ucranianos roubados, exportados de um porto ucraniano ocupado”, escreveram os autores do relatório.

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Quando a guerra entrou em seu quarto mês, havia poucos sinais de que o governo Zelenski ou o povo ucraniano estivessem preparados para negociar um fim que resultasse na perda do território ucraniano.

Uma pesquisa do Instituto Internacional de Sociologia de Kiev descobriu que 82% dos ucranianos não estão preparados para desistir de qualquer terra, mesmo que isso signifique que a guerra continue.

Apenas 10 por cento disseram acreditar que vale a pena abrir mão da terra para acabar com o conflito. Oito por cento estavam indecisos.

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