Dois minutos no chuveiro e navios-tanque cheios de gás: a Europa se prepara para o inverno

Países de todo o continente adotaram medidas excepcionais para diminuir o uso de energia e elevar a oferta, afastando-se acentuadamente de sua fornecedora de principal, a Rússia

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Por Liz Alderman e Patricia Cohen

Uma frota de navios-tanque carregados com gás natural liquefeito está empacada em um congestionamento marítimo nas proximidades da costa da Espanha nos dias recentes, aguardando para poder entregar sua preciosa carga para alimentar o sistema de energia da Europa. Na Finlândia, o governo está pedindo que amigos e famílias tomem saunas — passatempo nacional— juntos para poupar energia.

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Ambos os esforços são emblemáticos em relação às medidas que a Europa está adotando para aumentar a oferta de energia e economizar combustível anteriormente a um inverno sem o gás da Rússia.

A tática do presidente russo, Vladimir Putin, de transformar a energia em arma contra os países que apoiam a Ucrânia produziu uma inquietante transformação na maneira com que a Europa gera e poupa eletricidade. Países estão se juntando para comprar, tomar emprestado e construir sistemas de fornecimento de energia, ao mesmo tempo que lançam grandes programas de armazenamento que lembram a resposta às crises do petróleo nos anos 70.

Instalações subterrâneas de armazenamento de gás em todo o continente foram abastecidas completamente por fornecimentos de emergência. Usinas nucleares que tinham fechamento programado permanecerão em atividade. Da França à Suécia, os termostatos dos sistemas de aquecimento dos ambientes estão sendo baixados para 19ºC. A Eslováquia está até pedindo aos cidadãos que limitem seu tempo debaixo do chuveiro para 2 minutos.

Navios aportados em Emshaven, na Holanda; gás natural liquefeito é aposta da Europa para contornar falta de gás russo. Foto: Ilvy Njiokiktjien/The New York Times

Enquanto novembro se aproximava, o esforço coletivo deixou alguns analistas mais otimistas do que estiveram em meses, no sentido de que a Europa conseguirá chegar até a primavera sem racionamentos de energia nem apagões, ao mesmo tempo que acelera sua independência energética.

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As medidas adotadas pelas nações europeias “são notáveis e muito provavelmente transformarão o ambiente energético”, afirmou Simone Tagliapietra, pesquisadora-sênior do instituto de análise Bruegel, com base em Bruxelas. “A Europa conseguirá se independizar completamente da Rússia, algo que era visto anteriormente como impossível.”

Ainda assim, essa mudança implica em um alto custo, e a segurança energética da Europa poderia entrar em perigo nos próximos meses.

Mesmo que a Europa tenha se ajustado aos severos cortes nas exportações de gás russo — a Rússia fornece agora menos de 10% do gás natural consumido pelos europeus; anteriormente à guerra o índice era de 45% — os preços do gás permaneceram em uma alta histórica, o que forçou fechamentos de empresas intensivas em uso de gás, incluindo nos setores metalúrgico, químico e de produção de vidro. Empresas estão dando licença aos funcionários. Governos estão concedendo mais crédito para proteger lares e negócios. Há cada vez mais projeções de que a crise energética levará a Europa à recessão no próximo ano.

Os navios repletos de gás na costa da Espanha estão parados porque a Europa, que empreendeu um frenesi de compra, depositou tanto gás em seus tanques de reserva que não há mais espaço para armazenar o gás que chega ao continente. A Europa ainda está obtendo um fornecimento pequeno — equivalente a 7% de seu consumo — de gás natural da Rússia por meio de gasodutos que atravessam subterraneamente a Ucrânia. Se esse fluxo for cortado, vários países sofrerão.

E alguns europeus podem decidir que, afinal, não estão assim tão dispostos a fazer sacrifícios pessoais pela Ucrânia à medida que suas contas de energia começarem a subir ainda mais. Protestos de rua contra o custo de vida em elevação irromperam em Paris, Praga e outras cidades, desgastando a frente unida da Europa pelas sanções contra a Rússia.

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Embora a parcela de energia na Europa fornecida por turbinas eólicas, painéis solares e outras fontes de energia renováveis esteja crescendo, a maioria das residências e empresas ainda é movida a gás natural. Foto: Ilvy Njiokiktjien/The New York Times

Fortalecendo sistemas de fornecimento

As medidas adotadas para construir e fortalecer sistemas de fornecimento de energia — garantindo contratos de compra de gás natural liquefeito, prolongando a atividade de usinas nucleares e reativando usinas termelétricas a carvão — são cruciais para a manutenção das redes de eletricidade na Europa.

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Os esforços representam um súbito afastamento da Rússia e incluem acordos para construir gasodutos, prospectar gás em solo europeu e construir mais plataformas para receber carregamentos de gás natural liquefeito de países distantes. Ainda que o uso de energia renovável, como eólica e solar, cresça na Europa, o gás natural ainda alimenta a maioria dos lares e negócios, portanto um fornecimento constante é vital neste momento.

Um esforço concertado empreendido desde a primavera passada ajudou nações europeias a encher a maioria de seus tanques de gás — o suficiente para três meses de consumo — apesar dos fluxos cada vez menores de gás russo. O clima atipicamente quente na Europa está diminuindo a necessidade de aquecimento nos ambientes internos, então o estoque deverá durar mais do que o esperado.

A consultoria Rystad Energy calculou que a Europa tem gás suficiente armazenado para sobreviver ao inverno a não ser que o clima fique gelado demais, e os preços do gás caíram para os níveis mais baixos desde junho.

“O risco de apagões ou grandes faltas de gás é, por agora, uma perspectiva muito remota”, acrescentou Tagliapietra.

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Mas outros problemas poderiam emergir. A Europa poderia enfrentar um inverno ainda mais gelado no próximo ano, à medida que os estoques de gás acabem e novos fornecimentos para substituir o gás russo, incluindo envios maiores dos Estados Unidos e do Catar, tardem em ser estabelecidos, afirmou a Agência Internacional de Energia em seu boletim anual, Panorama Energético Mundial, publicado na semana passada.

A iniciativa da Europa parece estar acelerando uma transição global no sentido de tecnologias mais limpas, acrescentou a AIE, enquanto países respondem à invasão russa adotando hidrogênio combustível, veículos elétricos, bombas de calor e outras energias limpas.

Mas no curto prazo, os países queimarão mais combustíveis fósseis em resposta à escassez de gás.

Usina elétrica em Megalopolis, na região de Arcádia, no sul da Grécia; instalação estava fechada, mas agora permanecerá aberta. Foto: Eirini Vourloumis/The New York Times

A Grécia está estendendo a operação de suas sujas usinas termelétricas a carvão ou linhito até 2028 e aumentando sua produção de carvão em 50%. Vários países suspenderam limites de atividade para termelétricas a carvão, incluindo Países Baixos, Alemanha e Áustria. Até a França, que já foi a maior fornecedora de energia nuclear da Europa, está retomando geração a carvão em algumas áreas, enquanto uma variedade de problemas inesperados, incluindo secas que dificultaram o resfriamento dos reatores e as condições das antigas estruturas que os abrigam, deixaram metade das usinas nucleares do país offline desde o verão.

O consumo de carvão subiu 10% na primeira metade do ano, e a expectativa é que aumente outros 7% em 2023, afirmou a AIE.

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Países que incluem Dinamarca, Reino Unido e Hungria também estão prospectando mais fontes de gás natural em seus próprios territórios, apesar da oposição de grupos ambientalistas. Os Países Baixos estão postergando o encerramento da produção de gás de suas enormes jazidas em Groningen, que tiveram o fechamento programado em razão de terremotos ocasionados pela extração do combustível.

Onze países, incluindo Alemanha, Finlândia e Estônia, estão agora construindo ou expandindo um total de 18 terminais marítimos para processar gás natural liquefeito importado. Outros projetos do tipo, na Letônia e na Lituânia, estão em consideração.

A energia nuclear está conquistando um apoio renovado em países que anteriormente haviam decidido abandoná-la, incluindo Alemanha e Bélgica. A Finlândia planeja prolongar a atividade de um reator, enquanto Polônia e Romênia planejam construir novas usinas atômicas.

Usina nuclear em Wattenbacherau, na Alemanha. Foto: Laetitia Vancon/The New York Times

Ambientes a 19ºC

Campanhas de conscientização do público estão em andamento em toda a Europa para estimular lares e empresas a poupar energia — o segundo passo significativo para se afastar da dependência do gás russo. Os planos, com base em um modelo da Comissão Europeia, são voluntários e dependem da adesão de indivíduos e empresas cujas contas de energia possam ser subsidiadas por seus governos.

O consumo de energia caiu em setembro em vários países, apesar de ser difícil saber ao certo se a causa para isso foi o clima mais cálido, os preços altos ou esforços voluntários de economia inspirados por um senso de dever civil. Mas há sinais de que empresas, instituições e o público estão respondendo. Na Suécia, por exemplo, a Diocese de Lund afirmou que planeja fechar parcialmente ou totalmente 150 de suas 540 igrejas neste inverno para poupar energia.

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Alemanha e França emitiram diretrizes abrangentes, que incluem diminuir a temperatura do aquecimento de todos os lares, empresas, instituições e prédios públicos, evitar o uso de eletrodomésticos em momentos de pico de consumo e tirar aparelhos eletrônicos da tomada quando não estiverem em uso.

Outros países são ainda mais detalhistas: a Dinamarca quer que as residências evitem secadoras e usem varais; a Eslováquia está pedindo aos cidadãos que usem fornos de micro-ondas em vez de fogões e escovem os dentes usando um único copo d’água.

Família em Siikajoki, na Finlândia, usa sua sauna aquecida a lenha várias vezes por semana, evitando usar a sauna elétrica por causa do alto custo da energia. Foto: Vesa Laitinen/The New York Times

O governo da Finlândia introduziu a campanha “Abaixe 1º”, com o objetivo de fazer 95% dos lares economizar energia. A campanha promove o uso de escadas em vez de elevadores e pedalar ou usar o transporte público para ir ao trabalho.

E em um país com 3 milhões de saunas e 5,5 milhões de habitantes, a campanha pede às pessoas que tomem menos saunas, mais curtas e menos quentes, baixando o termostato de 100ºC para 85ºC. A campanha também encoraja as pessoas — sem observações a respeito de manter ou não a nudez costumeira — a tomar saunas acompanhadas, em vez de sozinhas.

Duas semanas após o início da campanha, 723 empresas, indivíduos e instituições tinham aderido como “parceiros” e listaram suas técnicas para economizar energia no website da iniciativa. “Banhos curtos”, escreveu o proprietário de uma residência; outro anunciou: “18 painéis solares chegando ao telhado em outubro”.

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“No próximo inverno, esforços para poupar eletricidade e consumo agendado de eletricidade podem ser essenciais para evitar apagões”, afirmou a Fingrad, principal operadora do sistema elétrico finlandês.

Os governos pedem ainda mais das empresas, a maioria estabeleceu metas para varejistas, fábricas e escritórios encontrarem maneiras de diminuir seu consumo de energia em pelo menos 10% nos próximos meses.

Os governos, eles próprios grandes consumidores de energia, estão reduzindo a temperatura do aquecimento dos prédios públicos, apagando luzes de trânsito e fechando piscinas municipais. Na França, onde o Estado opera um terço de todos os edifícios, o governo planeja cortar o uso de energia em 2 terawatts/hora, o que equivale à quantidade de energia usada por uma cidade de tamanho médio.

Não está claro absolutamente se as campanhas serão bem-sucedidas, afirmou Daniel Gros, diretor do Centro de Estudos de Políticas Europeias, um instituto de análise europeu. Em razão das recomendações serem voluntárias, pode haver pouco incentivo para as pessoas seguirem as recomendações — especialmente se os governos subsidiam contas de energia.

Em países como a Alemanha, onde os preços estratosféricos do gás começam a prejudicar os consumidores, as campanhas “são úteis para fazê-los baixar seu consumo de energia”, disse Gros. Mas em países que financiam parte das contas, “o incentivo para economizar energia é zero”, afirmou ele. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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