Em 2 de março, Tulsi Gabbard, diretora de inteligência nacional dos EUA, acusou Volodmir Zelenski, presidente da Ucrânia, de buscar uma terceira guerra mundial “ou mesmo uma guerra nuclear”. Gabbard tem um longo histórico de pontos de vista conspiratórios e pró-Rússia. Seus ex-assessores dizem que ela costumava ler e compartilhar propaganda publicada pela RT, um órgão de propaganda do Kremlin.
A nomeação de Gabbard para o cargo causou preocupação nas agências de inteligência americanas e nas de seus aliados, mas ela não é a única fonte de tensão na rede de alianças de inteligência dos EUA. Trump recentemente parou de compartilhar informações de espionagem com a Ucrânia por uma semana para pressioná-la a fazer concessões. Ele ameaçou anexar o Canadá e expulsá-lo do pacto de espionagem Five Eyes. Por enquanto, a informação sensível continua a fluir livremente entre os EUA e seus aliados. Será que isso pode mudar?

Os espiões americanos estão conectados a seus aliados por meio de uma vasta rede de relacionamentos. A CIA, o serviço de inteligência humana (HUMINT) dos Estados Unidos, mantém oficiais de ligação com praticamente todos os serviços aliados. Ela coopera com eles em espionagem e operações secretas. Em uma operação audaciosa das décadas de 1970 a 1990, por exemplo, a CIA e a BND, da Alemanha, foram secretamente co-proprietárias de um fabricante líder de máquinas de cifra, vendendo dispositivos grampeados para estados desavisados.
Na inteligência de sinais (SIGINT), o entrelaçamento é ainda mais profundo. Após a 2.ª Guerra, os Estados Unidos, Austrália, Grã-Bretanha, Canadá e Nova Zelândia estabeleceram o Five Eyes, um pacto para coletar conjuntamente comunicações e dados interceptados. É o arranjo de coleta e compartilhamento mais ambicioso da história. Cada lado confia no outro em um grau notável. Em sua história do GCHQ, o serviço SIGINT da Grã-Bretanha, John Ferris, um historiador canadense, descreve um “momento lendário” quando um americano destacado para o GCHQ e um britânico para a Agência de Segurança Nacional (NSA), sua contraparte americana, negociaram um com o outro “em nome dos serviços que os adotaram”. Um oficial da CIA faz parte do comitê de inteligência conjunto da Grã-Bretanha, que produz avaliações de inteligência para o primeiro-ministro.
Alguns temem que tudo isso esteja agora em risco. Há três possibilidades. Uma é que os EUA interromperão esses arranjos, talvez levando a cabo suas ameaças de expulsar o Canadá dos Five Eyes. Outra é que os aliados, preocupados com uma possível negligência do governo Trump na proteção de seus segredos, comecem a se conter ou a buscar outros parceiros. Em seu primeiro mandato, por exemplo, Trump uma vez divulgou segredos israelenses ao ministro das Relações Exteriores da Rússia. O cenário mais provável, no entanto, é um terceiro: que a guerra de Trump contra a burocracia federal e sua politização da comunidade de inteligência (IC), como é conhecida, causará turbulência e paralisia entre espiões americanos, sentimentos que se espalharão para aliados.
O nervosismo em relação ao compartilhamento difere dependendo de se tratar de HUMINT ou SIGINT. O vínculo entre agências como a CIA e o MI6 britânico é profundo. “Compartilhamos mais uns com os outros do que fazemos com qualquer outra pessoa”, disse Richard Moore, chefe do MI6, no ano passado. As duas agências operam um modelo de “melhor atleta”, decidindo qual está melhor posicionada para ir atrás de um alvo específico e desenvolver em conjunto a tecnologia que dá suporte à espionagem.
A “Russia House” da CIA, a unidade que espiona o Kremlin, compartilha mais com algumas contrapartes europeias do que cada uma delas faria com seus próprios chefes de serviço. Mas essa intimidade tem limites. Sua inteligência geral é compartilhada, mesmo com ministros e outros altos funcionários, apenas de forma censurada, com os nomes e detalhes de fontes humanas disfarçados. Quando recrutou Oleg Gordievski, um alto oficial da KGB, na década de 1980, a Grã-Bretanha inicialmente escondeu a identidade dele da CIA, para considerável irritação daquela agência.
Autoridades ocidentais dizem à Economist que, por enquanto, tudo continua como sempre. Mas, no universo da HUMINT, a inteligência pode ser ampliada ou reduzida, ou disfarçada, em resposta a preocupações políticas em relação a vazamentos e a confiabilidade americana. “O ponto principal é: há uma obrigação sagrada que qualquer organização de inteligência tem com seus ativos”, diz Marc Polymeropoulos do Atlantic Council, um centro de estudos estratégicos em Washington, que foi anteriormente chefe de operações da CIA na Europa e Eurásia. Os serviços de inteligência ocidentais “higienizarão coisas que eles compartilharam no passado”.
O enigma de Trump
Já o universo da SIGINT é diferente. O Five Eyes não é um acordo legal inabalável; não há um contrato escrito exigindo que os aliados compartilhem cada pedaço de material roubado do grupo de WhatsApp do Kremlin ou do smart-wok de Xi Jinping. Mas o sistema conjunto de coleta de informações e as redes seguras para distribuir e processar o que foi extraído significam que há um grau muito maior de compartilhamento automático do que existe entre os serviços do tipo HUMINT. Bill Bonsall, diretor do GCHQ na década de 1970, observou que a ideia de reter inteligência era perigosa: o Five Eyes se baseava na crença de que “a contribuição de cada parceiro não só não seria retida, mas também não seria adiada”. O resultado foi uma torrente de informações de espionagem que excedeu em muito o que qualquer país poderia alcançar sozinho.
Em 1984, depois que a Nova Zelândia proibiu embarcações com armas ou propulsão nuclear em seus portos e águas, efetivamente barrando a Marinha dos EUA, o país foi amplamente excluído do Five Eyes até 2006, de acordo com Ferris. Essa foi uma rara exceção. Durante a crise de Suez, quando os Estados Unidos e a Grã-Bretanha discordaram amargamente diante de uma invasão anglo-francesa do Egito, a cooperação em SIGINT continuou sem problemas.
Em 1973, Henry Kissinger, então conselheiro de segurança nacional, exigiu que os Estados Unidos excluíssem a Grã-Bretanha para puni-la por uma briga envolvendo a política do Oriente Médio. “Estou cortando-os”, disse ele, em particular. “Temos apenas que mostrar os dentes.” A NSA dos EUA “rejeitou essa ordem”, escreve Ferris, “o que teria destruído a coleta de SIGINT americana na Europa e no Oriente Médio.” Quando os EUA e o Canadá entraram em conflito por causa da guerra do Iraque em 2003, o Canadá foi “excluído de muitas relações militares e de inteligência militar”, mas não do Five Eyes.
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Na prática, diz um ex-chefe de espionagem britânico, e com a exceção da Nova Zelândia — que “não contribui muito” — seria impossível “cortar” qualquer país do Five Eyes sem interromper o todo. Tremores em um país tendem a afetar outros. Quando os EUA tiveram confrontos legais domésticos por causa da Seção 702 da FISA, uma lei que rege a vigilância no exterior, a máquina de SIGINT da Grã-Bretanha teve que se preparar para grandes ajustes em seus sistemas se a lei americana expirasse.
A interdependência é desequilibrada, é claro. “Não temos um serviço de inteligência estrangeiro”, diz Jody Thomas, que serviu como conselheiro de segurança nacional de Justin Trudeau, então primeiro-ministro do Canadá, até o ano passado. Mas os EUA ainda perderiam algo. O Canadá liderou as iniciativas de SIGINT no Ártico, por exemplo, desde a década de 1940. A Grã-Bretanha investiu pesadamente em criptografia. A localização da Austrália é vital para rastrear a atividade chinesa na Ásia.
No entanto, o fato de que todos perderiam não necessariamente desencoraja Trump, que, com suas tarifas, está alegremente destruindo uma ordem econômica interdependente semelhante. “Esta é uma situação única”, argumenta Ferris. No passado, as crises dentro do Five Eyes eram resolvidas porque as agências americanas entendiam o valor dessas parcerias. Elas “silenciosamente juntaram os pedaços”, diz ele, se não desafiando seus mestres políticos, pelo menos mantendo uma distância burocrática segura. Hoje, os espiões americanos estão “com medo do futuro, em um grau extraordinário, e inseguros a respeito de para qual lado a motosserra irá cortar”.

A motosserra já está sendo usada. Nos dias mais recentes, a CIA começou a demitir oficiais. O abate é limitado, até agora, mas reviveu memórias de demissões em massa na década de 1970. Ominosamente, em 12 de março, Elon Musk visitou a NSA para conhecer seu chefe. A agência de corte de custos de Musk, DOGE, já parece ter contribuído para vários lapsos de segurança, incluindo a exposição de uma instalação da CIA e a insistência de que a CIA enviasse por e-mail uma lista de novos funcionários com seus primeiros nomes e iniciais, o que poderia ajudar os serviços de inteligência estrangeiros a identificá-los.
O risco não é apenas que as agências de espionagem americanas tenham dificuldade para resistir, como fizeram no passado, ao uso da inteligência como arma contra aliados. Também existe a preocupação de que elas sejam distraídas ou se desviadas. Kash Patel, o diretor do FBI, passou anos endossando teorias de conspiração selvagens. Sua decisão de destruir a liderança do bureau e se concentrar no crime “é um mau presságio para a contrainteligência dos EUA”, observa Chris Taylor, um oficial de inteligência do Australian Strategic Policy Institute.
Atualmente, as autoridades ocidentais estão preocupadas, mas não em pânico. “Tudo que costuma fluir pelos canais está está fluindo normalmente”, diz uma fonte. “Eu não classificaria isso como uma grande crise dentro do Five Eyes”, diz Ferris. Ainda não, seja como for. Em 2021, em meio à preocupação com a possibilidade de um Estado escocês independente se juntar ao Five Eyes, Ciaran Martin, um ex-oficial do GCHQ e chefe de seu braço defensivo, o National Cyber Security Centre, ofereceu uma explicação simples para entender o equilíbrio de poder na aliança ocidental. “Five Eyes… quase não tem governança formal, e muito pouca governança informal”, ele escreveu. “Na prática, tem apenas uma regra não escrita: os EUA fazem as regras.”/ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL