Tenho uma regra simples para avaliar o potencial de instabilidade nos países do Oriente Médio. Eles ocorrem em apenas duas variações: países que implodem e países que explodem. Ou seja, países nos quais, quando o controle central colapsa, os pilares arruinados caem dentro de suas fronteiras; e países nos quais, quando o controle central colapsa, os estilhaços políticos da explosão irradiam por toda parte.
Nenhum país no Oriente Médio explode mais que a Síria. Nada que ocorre na Síria fica só na Síria.
Isso porque a Síria é tanto uma pedra angular quanto um microcosmo de todo o Oriente Médio. Enquanto pedra angular, quando o país desmorona, os efeitos reverberam em todas as direções.
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Enquanto microcosmo — a Síria tem sunitas, xiitas, alauitas, curdos, cristãos e drusos — sempre que o controle central se afrouxa a segurança de todos os grupos sectários é prejudicada, então eles sempre buscam ajuda no exterior. Isso também representa uma oportunidade para todas as potências regionais, então elas sempre estão por lá para tentar colocar a Síria do seu lado. Historicamente, foi necessário um líder com punho de ferro em Damasco para manter a Síria sob controle internamente e dissuadir potências regionais que pretenderam controlar o país desde fora.
Por causa da centralidade da Síria, porém, mudanças positivas também podem irradiar em todas as direções. O que me traz ao propósito desta coluna. Um memorando para o secretário de Estado designado, Marco Rubio: o senhor pode ainda não perceber, mas, se confirmado, seu primeiro grande desafio como diplomata mais graduado do presidente Donald Trump poderá ser fazê-lo abandonar toda a retórica isolacionista EUA-em-primeiro-lugar_não-tenho-certeza-se-queremos-permanecer-na-Otan_quem-precisa-de-aliados_quem-se-importa-com-países-de-merda pela qual ele é conhecido para que vocês possam colaborar com — ouso dizer — a construção nacional da Síria.
Porque a queda do ex-presidente Bashar Assad operada por rebeldes sírios é um dos eventos de maior magnitude, potencialmente o mais positivo e transformador, no Oriente Médio nos últimos 45 anos. O problema com oportunidades em política externa é, contudo, elas poderem ocorrer de forma totalmente inesperada — e os grandes presidentes são os que as aproveitam, mesmo que isso signifique engolir algumas palavras.
Sendo justo com Trump, quando a oportunidade para os Acordos de Abraão se manifestou, em 2020, também do nada, ele a aproveitou e ajudou a forjar a normalização de relações entre Israel e Estados árabes — para benefício da região e dos Estados Unidos. Este momento é similar. As chances de sucesso são baixas, a contrapartida poderia ser enorme, e os riscos para Washington não são tão altos, mas agora será necessária uma liderança americana muito mais intensiva do que durante a negociação dos Acordos de Abraão.
Para entendermos por que, preciso levá-los de volta a 2003. A invasão dos EUA sob o ex-presidente George W. Bush ao Iraque sempre teve dois objetivos. Um era remover armas de destruição em massa, que, conforme demonstrado, era fraudulento. O outro, que apoiei, era ambicioso, mas, em última instância, impossível: tentar substituir Saddam Hussein por uma democracia multissectária e pluralista em uma grande capital árabe — Bagdá — na esperança desse movimento poder criar um exemplo no centro do mundo árabe capaz de irradiar e ajudar a curar as patologias produzidas pelos ataques de 11 de setembro de 2001. Digo “impossível” porque, conforme se constatou, não é possível produzir democracia de cima para baixo nem de fora para dentro. A democracia tem de crescer organicamente, de baixo para cima.
No Iraque, foram as forças americanas que derrubaram a estátua de Saddam em Bagdá, não os iraquianos, mesmo que muitos tenham gostado de vê-la cair. No fim, os iraquianos produziram sua própria democracia constitucional dividindo o poder entre os grupos sectários presentes no país, mas ela cambaleia à mercê de um Estado falido e é profundamente impregnada por agentes iranianos e influenciada por Teerã, assim como pela corrupção doméstica. Ainda que o Iraque tenha realmente organizado seis eleições bastante justas desde a invasão liderada pelos EUA que derrubou Saddam, em 2003, o Parlamento multipartidário construído em Bagdá é dominado por partidos definidos por grupos religiosos ou étnicos, não por um espírito verdadeiro de uma cidadania iraquiana forte e ampla o suficiente para resistir ao Irã.
O Iraque também enfrenta dificuldades desde 2003 porque os tiranos que dominavam os vizinhos Síria e Irã — Bashar Assad e Ali Khamenei — fizeram tudo o que puderam para garantir que nenhum exemplo decente de democracia pudesse emergir em Bagdá e ser capaz de inspirar seus próprios povos a seguir o exemplo. Eventualmente, porém, a Primavera Árabe, que começou na Tunísia e no Egito, se espalhou para a Síria em 2011 — organicamente, sem nenhuma invasão americana — mas Assad estava disposto a matar centenas de milhares de cidadãos de seu próprio país e obrigar o êxodo de milhões para se manter no poder. Até a semana passada.
A grande dúvida na minha mente agora é: o Oriente Médio conseguirá outra chance de ver um governo consensual e pluralista emergir em seu território em outra grande capital como Damasco — só que desta vez engendrado por seu próprio povo, não por alguma potência estrangeira? Se os sírios forem capazes de encontrar nos próximos anos seu caminho de baixo para cima para conviver numa sociedade pluralista como cidadãos, não apenas grupos sectários, unidos por um consentimento voluntário, não apenas pelo pulso se ferro de um ditador, isso irradiaria para o Iraque, o Líbano, o Irã, a Líbia, o Sudão — para toda parte.
Seria o evento mais positivo no Oriente Médio desde que Anwar Sadat entrou num avião e foi para Israel buscar a paz em 1977 — e um dos mais importantes na política árabe moderna.
Não preciso que ninguém me diga o quanto isso é improvável. Eu vivi no Líbano durante a guerra civil por mais de quatro anos e fiz muitas reportagens dentro do Iraque. Um final feliz na Síria é um desfecho pouco provável, mas ocasionaria um enorme benefício para o povo sírio e toda a região. E, ao contrário da invasão americana no Iraque, custaria pouco dinheiro aos EUA e seus aliados e requereria poucos soldados para tentar ajudar.
Mas isso não ocorrerá sem o auxílio e a liderança dos EUA e alguma diplomacia consistente, determinada e pragmática, disposta a arriscar o fracasso e entender que uma negligência benigna poderia ser altamente custosa para os nossos aliados. A competição dentro da Síria — e pela Síria entre estrangeiros — reverberará em toda a região; será uma guerra eterna que abrirá caminho para o ressurgimento do Estado Islâmico e poderia facilmente desestabilizar a frágil democracia iraquiana e a monarquia jordaniana, além de fazer Israel entrar na Síria — o que resultará em 7 milhões de judeus controlando todo o território de Gaza e partes tanto do Líbano quanto da Síria, assim como Israel e a Cisjordânia. Israel ficará completamente sobrecarregado e precisará de bilhões de dólares a mais em ajuda dos EUA.
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Não sei o que há na cabeça nem no coração do líder rebelde sírio Abu Mohammed al-Jolani. Li que ele passou anos tentando reformular sua imagem, renunciando aos seus antigos laços com a Al-Qaeda e apresentando-se como um líder que promove pluralismo e tolerância. Eu simplesmente estou certo de que nós devemos fazer tudo o que pudermos desde fora para encorajar, pressionar e incentivar Al-Jolani a agir em acordo com essa imagem. Fiquei impressionado com o entusiasmo do secretário de Estado Antony Blinken, em sua declaração de 10 de dezembro:
“Os Estados Unidos reafirmam seu total apoio a uma transição política liderada por sírios e reconhecida pelos sírios. Esse processo de transição deve ocasionar um governo crível, inclusivo e não sectário. (…) O processo de transição e o novo governo devem também promover compromissos claros de respeito total a direitos de minorias, facilitar o fluxo de assistência humanitária para todos que necessitem e evitar que a Síria seja usada como base para o terrorismo ou represente ameaças aos seus vizinhos.”
Acredito que o problema sírio será um microcosmo do desafio crucial que a equipe de política externa de Trump enfrentará globalmente: como administrar fraquezas, não forças. Como lidar com Estados que se despedaçam e ameaçam o mundo com seu colapso, não com Estados que se erguem e ameaçam o mundo com sua força. Exceto pela China, são Estados fracos, não fortes, que atormentarão os EUA e seus aliados. E, portanto, o desafio central da equipe de Trump será como construir nações ou consertar nações sob um custo que o público americano tolere.
Conforme apontou o analista econômico do Haaretz David Rosenberg em relação apenas à Síria: “A conta da reconstrução será facilmente sete vezes maior do que a economia inteira da Síria, e o trabalho em si exigirá uma experiência técnica que poucos países podem prover. (…) O problema é que a Síria está quebrada, e Trump dificilmente lhe fornecerá uma ajuda significativa em dinheiro. O país também está sob sanções que Trump teria de levantar. (…) Para a Síria se recuperar e se reconstruir, os astros terão de se alinhar perfeitamente, numa constelação de boa liderança, unidade nacional e boa-vontade internacional”.
Trump poderia decidir se afastar da Síria, como já fez quando ocupou a presidência anteriormente, e assistir o Oriente Médio ruir completamente, falando a mesma coisa que o vice-presidente eleito J.D. Vance disse certa vez sobre a Ucrânia: “Eu realmente não me importo com o que acontecer”.
Ou Trump poderia reconhecer que o único modo de ajudarmos a colocar a Síria numa direção positiva sob um custo tolerável é construirmos uma coalizão com o nossos aliados da Otan, o Japão, a Coreia do Sul e a Austrália — e talvez até com a China e a Índia — que procure dar a melhor chance possível de sucesso à insurreição síria.
O presidente Joe Biden retirou os EUA do Afeganistão pouco após assumir a função. Ficou feio para ele e foi triste para os afegãos. Mas a Síria não é o Afeganistão.
O Afeganistão implode. A Síria explode./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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