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É hora de Biden ser mais trumpista que Trump sobre imigração; leia a coluna de Thomas Friedman

Os democratas não querem ouvir falar de muros altos, e os republicanos não querem saber de portões enormes; mas os EUA precisam de ambos

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Por Thomas L. Friedman

THE NEW YORK TIMES - De acordo com as reportagens, o aumento recente no número de migrantes da América Latina inundando nossa fronteira sul foi em grande medida resultado do fim de uma política anticovid da era Trump. Permitam-me discordar, isso é resultado de um mundo novo.

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E este mundo novo vai desafiar visões tradicionais sobre imigração tanto de republicanos quanto de democratas. Conforme argumentei antes, há apenas uma maneira de lidar com as ondas de migrantes que continuarão rumando para os Estados Unidos: com um muro muito alto e um portão enorme.

Os democratas não querem ouvir falar de muros altos, e os republicanos não querem saber de portões enormes. Que pena. Nós precisamos de ambos.

Donald Trump foi uma fraude em relação a imigração. Ele nunca quis resolver o problema. Ele explorou os temores sobre uma fronteira descontrolada para impedir a imigração e agradar os racistas e supremacistas brancos em sua base. E atiçar esses medos funcionava para Trump.

Imigrantes tentam atravessar o Rio Grande numa balsa improvisada  Foto: Julio Cortez/AP

Mais imigrantes capacitados

Na minha opinião, o presidente Joe Biden deveria ser mais Trump que Trump: fazer todo o possível para garantir a segurança da fronteira como jamais foi feito — mais muros, mais cercas, mais barreiras, mais soldados, a 82.ª Divisão Aerotransportada. Tudo o que for necessário. Torne os democratas responsáveis pela segurança na fronteira. Mas não com o objetivo de sufocar a imigração: para expandi-la. Bom para as políticas públicas e bom para a dinâmica política.

Se nós pretendemos prosperar no século 21 e competir eficazmente com a China, nós precisamos dobrar a aposta na nossa maior vantagem competitiva singular: nossa capacidade de atrair os imigrantes mais competentes e ambiciosos e os investidores mais inteligentes dispostos a assumir riscos, que abrem novas empresas.

Que eu saiba, Deus distribuiu os cérebros de maneira igualitária pelo planeta. O que ele não distribuiu igualitariamente foi quais países receberiam melhor os imigrantes com mais energia e mais inteligentes. Esta tem sido há muito nossa vantagem competitiva singular, somos n.º 1 nesta categoria. Se jogarmos fora esta vantagem, nós vamos voltar a ser malvados globais enquanto país.

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Mas nós simplesmente não conseguiremos manter um debate racional sobre expandir a imigração para servir aos nossos interesses — e sobre a maneira criar um caminho justo para a cidadania para os imigrantes ilegais que já estão aqui, assim como para os filhos deles nascidos aqui — se americanos demais pensarem que nossa fronteira sul está fora de controle.

Yuri Hurtado teve os pais sequestrados por criminosos quando tentava chegar aos EUA  Foto: Meridith Kohut/The New York Times

O novo normal migratório

E hoje nós precisamos desse debate mais urgentemente do que nunca, porque veja a novidade: os fluxos de 10 mil imigrantes ao dia que emergiram ao longo da fronteira entre México e EUA nos dias que antecederam a suspensão das restrições de Trump — os maiores níveis de todos os tempos — não foram nenhuma aberração, mesmo que esses níveis tenham reduzido nos dias recentes para menos do que os níveis caóticos que Biden temia; eles são o início de uma nova normalidade.

Por quê? Porque os primeiros 50 anos após a 2.ª Guerra foram um ótimo período para ser um Estado-nação fraco, particularmente na América Latina, no Oriente Médio e na África. Havia duas superpotências despejando dinheiro em vocês, mandando-lhes trigo, dando bolsas de estudo para os seus filhos estudarem em suas escolas, reconstruindo seus Exércitos depois de vocês perderem guerras (veja Egito e Síria) e em geral competindo pelo seu afeto.

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As mudanças climáticas também eram moderadas. O crescimento populacional ainda estava sob controle. Ninguém tinha um smartphone para comparar facilmente suas condições ou as de seus líderes com nações vizinhas ou a Europa, e a China não estava na Organização Mundial do Comércio, portanto era muito mais fácil competir em setores que pagam salários baixos, como a indústria têxtil.

Tudo isso começou a mudar no início do século 21. Agora nenhuma superpotência quer nem chegar perto de vocês, porque tudo o que elas ganham é uma conta. (Veja os EUA no Afeganistão.) As mudanças climáticas estão castigando os países, principalmente agricultores que cultivam sua subsistência. As populações explodiram. Mais de dois terços do mundo têm smartphones e são capazes de se informar — e desinformar — mais rapidamente do que nunca, assim como se conectar facilmente online com traficantes de pessoas. E a China está na OMC e dominou várias indústrias manufatureiras de salários baixos.

Imigrantes tentam atravessar a cerca que separa o Texas do México  Foto: HERIKA MARTINEZ / AFP

Países pequenos em crise

Como resultado, cada vez mais países pequenos (e isso vale para Venezuela, Sudão e Etiópia, os maiores) estão começando a se fraturar, descambar para a desordem e despejar migrantes que querem deixar seu Mundo de Desordem e vir para o Mundo da Ordem: nós e a União Europeia, entre outros.

Não foi acaso a Organização Internacional para as Migrações, da ONU, ter declarado, “Hoje, mais pessoas do que nunca vivem em países nos quais não nasceram”.

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O Muro de Berlim simbolizou a Guerra Fria. A queda do Muro de Berlim simbolizou o pós-Guerra Fria. E o Rio Grande, com as margens repletas de famílias tentando escapar do Mundo da Desordem para o Mundo da Ordem, simboliza o pós-pós-Guerra Fria.

Nesta era, será cada vez mais difícil estabelecer diferença entre migrantes econômicos, que tentam chegar aos EUA simplesmente para conseguir um emprego decente, e pessoas que buscam asilo político legitimamente.

Desde a 2.ª Guerra, nós temos oferecido asilo abençoadamente para indivíduos com temores fundamentados de perseguição com base em raça, nacionalidade, religião, opinião política ou pertencimento a algum grupo social em particular.

Imigrantes fazem fila para tentar cruzar a fronteira do México com os EUA e requerer asilo  Foto: PATRICK T. FALLON / AFP

A necessidade de um debate racional

Mas se cada vez mais Estados-nações se fraturarem e deixarem seus cidadãos às doces mercês de senhores da guerra e chefes de gangues, metade do mundo estará habilitada para buscar asilo político nos EUA. Tantos migrantes fizeram isso ao longo da década passada que esse movimento sobrecarregou completamente o antiquado e mal financiado sistema americano, furtando-lhe a capacidade de distinguir entre solicitações de asilo genuínas ou enganosas — com mais de 2 milhões de casos de imigração pendentes nos tribunais (uma década atrás eram 100 mil na fila) e o tempo médio de espera pela deliberação a respeito do asilo explodindo para quatro anos; ou frequentemente muito mais.

Portanto nós precisamos de um debate racional sobre como continuar dando abrigo seguro a indivíduos verdadeiramente perseguidos e atrair os imigrantes de que precisamos para continuar a prosperar no século 21 — tanto os imigrantes com muita energia e pouca qualificação quanto os mais inteligentes e dispostos a assumir riscos — e garantir que o fluxo de imigrantes para os EUA ocorra em um ritmo consistente com nossas necessidades econômicas e nossa capacidade de assimilar esses imigrantes culturalmente e socialmente.

Não há esperança para esse debate racional enquanto tantos americanos sentem que a fronteira sul está fora de controle. A discussão só pode ocorrer se as pessoas sentirem que a fronteira está controlada e se vocês tiverem de tocar nossa campainha se quiserem entrar.

Imigrante carrega bebê sobre o Rio Grande, na fronteira entre o Texas e o México  Foto: ALFREDO ESTRELLA / AFP

O exemplo da Califórnia

A melhor evidência de que uma fronteira mais forte é capaz de levar a um debate mais racional é a Califórnia. E a pessoa que me ensinou isso foi Seth Stodder, um californiano nativo que serviu como secretário-assistente de segurança interna para políticas de fronteira, imigração e comércio do presidente Barack Obama e atualmente leciona na Universidade do Sul da Califórnia.

“Quase um quarto da população indocumentada dos EUA vive na Califórnia”, disse-me  Stodder, “e a maioria de nós não vê problema nenhum nisso. No começo da presidência de Trump, nós até aprovamos uma lei de ‘Estado-refúgio’ para proteger da deportação pessoas que, em todos os demais aspectos, são cumpridoras da lei”.

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Mas nem sempre foi assim. Em 1994, os eleitores californianos aprovaram, por ampla margem, a Proposição 187 — impedindo acesso de imigrantes indocumentados a serviços públicos. O então governador da Califórnia, Pete Wilson, republicano, fez campanha pela legislação, afirmou Stodder, e foi reeleito “com anúncios ameaçadores que exibiam imagens granuladas de imigrantes atravessando a fronteira correndo e entrando em San Diego em meio ao tráfego, com uma música assustadora ao fundo e uma voz grave dizendo, ‘Eles vão continuar entrando. Dois milhões de imigrantes ilegais na Califórnia. O governo federal não os impedirá na fronteira — mas exige que paguemos bilhões para cuidar deles’”.

Então, como a Califórnia se transmutou da Prop 187 no Estado-refúgio? “Há muitas razões”, explicou Stodder. “Mas um motivo enorme foi que, após a aprovação da Prop 187 o governo Clinton finalmente assumiu o controle da fronteira entre San Diego e Tijuana — fortalecendo a Patrulha de Fronteira e construindo uma cerca de 22,5 quilômetros, com duas camadas ou até três em certos trechos, ao longo da fronteira. Isso impediu a imigração ilegal aos EUA? Não. O fluxo mudou, em vez disso, para o  Arizona e o Texas. Mas ela controlou a fronteira aqui no Sul da Califórnia. Os californianos não encararam mais imigrantes correndo na direção de seus carros ou desviando dos veículos na Highway 5. A cerca tirou a imigração ilegal do noticiário noturno da TV, e os californianos puderam respirar aliviados e pensar em outras coisas.”

Ela deu a muitos californianos “espaço emocional para aceitar os milhões de imigrantes indocumentados que vivem no nosso Estado”, afirmou Stodder, “considerando-os menos uma ameaça e mais como nossos vizinhos, amigos, parentes e também californianos”.

Se quisermos um portão enorme — como eu — precisamos de um muro alto. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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