‘É muito difícil hoje encontrar um salário industrial de classe média nos EUA’, diz economista

Democrata Kamala Harris não consegue oferecer um plano econômico viável e vê muitos eleitores cogitarem um retorno do republicano Donald Trump à Casa Branca

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Foto do author Luiz Raatz
Foto: Arquivo pessoal
Entrevista comGabriel EhrlichEconomista da Universidade de Michigan

ENVIADO ESPECIAL A GRAND RAPIDS, MICHIGAN - A economia é o principal tema da eleição da próxima terça-feira, 5, nos Estados Unidos. Muitos americanos estão insatisfeitos com os rumos do país depois da pandemia, sobretudo em virtude da alta inflação que o país viveu em 2022, que ainda deixa rastros até hoje. Neste ano, mesmo com a inflação sob controle, e com bons indicadores de crescimento econômico e emprego, a democrata Kamala Harris não consegue oferecer um plano viável e vê muitos eleitores cogitarem um retorno do republicano Donald Trump à Casa Branca.

Esse fenômeno é mais latente nos chamados Estados-pêndulo, que decidirão a disputa no colégio eleitoral. Em lugares como Michigan, a Pensilvânia e Wisconsin, o poder de compra dos salários ainda não se recuperou totalmente das perdas geradas pela inflação do pós-pandemia. Em paralelo, a recuperação econômica da indústria ocorre numa economia em que o perfil salarial dessas vagas mudou, mesmo que mais vagas estejam sendo geradas.

“Aqui em Michigan em particular e nos EUA de modo geral ocorre um fenômeno que chamamos de polarização dos empregos. As vagas industriais antigas, que pagavam salários intermediários para a classe média não existem mais”, explica o professor de economia da Universidade de Michigan, Gabriel Ehrlicht.

Prédio abandonado em Detroit: algumas áreas da cidade ainda têm muitos imóveis vazios Foto: Luiz Raatz

Leia os principais trechos da entrevista:

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A economia de Estados-pêndulo como Michigan tem se recuperado bem da recessão provocada pela pandemia?

A economia de Michigan se recuperou da pandemia, sobretudo em termos de emprego. Acho que devemos reconhecer essa conquista e celebrá-la. Nos últimos anos, a economia de Michigan tem melhorado, mas, em parte, isso se deve ao fato de que estávamos em uma recessão.

No ano passado, tivemos uma recuperação total, mas também tivemos alguns problemas relacionados, como greves em vários setores, especialmente no setor automotivo. Neste ano, tivemos um início forte, mas temos visto alguns sinais de abrandamento da atividade econômica de Michigan.

Mas na comparação com o período anterior à pandemia, as coisas estão melhores?

Depende exatamente de como você mede. A taxa de desemprego em Michigan, por exemplo, está praticamente estávamos na maior parte de 2019. Em grande parte de 2019, estávamos na faixa dos 4%, mesmo no final de 2019, chegamos à faixa dos 3%. Hoje, a taxa de desemprego está em 4,5%, mas ainda é uma taxa de desemprego bastante baixa, segundo os padrões históricos. De modo geral, eu diria que estamos mais ou menos na mesma situação em que estávamos antes da pandemia. O problema é que, no prognóstico para os próximos meses, temos alguns sinais que preocupam um pouquinho. As coisas podem estar desacelerando um pouco.

Muita gente reclama aqui em Michigan e em outros Estados que são importantes para a eleição sobre o custo de vida. A renda tem crescido o suficiente para acompanhar a alta nos preços?

É uma excelente pergunta. O poder de compra aumentou muito na pandemia por causa dos pacotes de estímulo. Mas isso foi rapidamente corroído pela inflação em 2022. Especialmente aqui em Michigan e outros Estados, ele não tem aumentado muito porque a inflação regional tem sido bastante teimosa. O processo de desinflação tem enfrentado alguns obstáculos e um deles é que a renda não está aumentando num ritmo que gostaríamos de estar vendo.

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E acho que essa é parte da razão pela qual, quando perguntamos às pessoas como elas se sentem em relação à economia, elas relatam que estão, sabe, meio azedas. Se olharmos para o emprego, para o crescimento do PIB, vemos que a economia está indo muito bem. Mas quando perguntamos aos consumidores: ‘Como você acha que a economia está indo?‘ E eles dizem que está péssima. Não temos visto o tipo de crescimento nos padrões de vida, tanto aqui em Michigan, como a nível federal.

E em termos de contratação, quais setores da economia estão mais fortes aqui em Michigan?

Apesar de um segundo semestre mais morno em termos de atividade econômica, devemos ter dois anos bons em termos de crescimento aqui. Só que quem vai puxar esse desempenho não serão as indústrias como um grande impacto no ciclo de negócios do Estado, como a automotiva e a construção civil, por causa dos altos juros que o Fed impôs para controlar a inflação. É por isso que dizemos que quando a economia americana tem um resfriado, aqui pegamos uma pneumonia. Porque somos dependentes dessas indústrias.

E por que isso está mudando? Para onde estão indo essas vagas?

A parcela de empregos em Michigan no setor de manufatura definitivamente diminuiu ao longo dos anos. Parte dessas vagas foram para o comércio atacadista, outra para o setor de transporte e outras para os serviços públicos são outra parte. Mas, na verdade, é que muitos setores cresceram. A indústria ainda é uma parte importante, mas cada vez mais a economia aqui está se diversificando.

Existe um termo muito na moda agora que é o reshoring, e também o nearshoring. Você acha que isso está acontecendo na região dos Grandes Lagos?

Está, mas essa é uma discussão sobre volume, na verdade. Não há dúvidas de que estamos vendo algum nível de reshoring aqui. Por exemplo, um lugar onde realmente podemos ver isso são nos Estados dos Grandes Lagos, onde os gastos com construção de fato triplicou nos últimos anos. Sabemos que há muito dinheiro federal, francamente, e incentivos para investir na capacidade de fabricação aqui nos Estados Unidos, inclusive em Michigan. Mas claro, sabemos que leva tempo para que os gastos com construção se transformem em empregos, certo? Porque primeiro é preciso construir o prédio, e as vagas vêm com o tempo.

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Espero que isso aconteça. Mas a situação ainda é muito incerta. Outra coisa é que não vamos voltar ao ponto em que estávamos no ano 2000. Não vamos voltar a esse ponto em termos de emprego no setor de manufatura. Muitos desses empregos se foram e não voltarão mais. Não se trata de dizer que não podemos criar novos empregos na indústria. O que quero dizer é que perdemos tantos empregos que seria preciso muito para chegar a esse ponto.

Você diz que esses empregos que se foram em grande parte não voltarão. Mas e as pessoas que trabalhavam neles. O que elas fazem? Que carreira escolhem, se não há mais um caminho na indústria?

Aqui em Michigan e nos EUA de modo geral ocorre um fenômeno que chamamos de polarização dos empregos. As vagas industriais antigas, que pagavam salários intermediários para a classe média não existem mais. Hoje, o que existem são empregos que pagam muito bem, para pessoas com formação universitária, ou que pagam mal, para o trabalhador ‘blue collar’. É muito difícil hoje encontrar um salário industrial que banque uma vida de classe média.

Quando esses empregos vão embora, a alternativa é migrar para setores da economia com salários mais baixos ou o trabalho temporário com aplicativos e assim por diante. Pode ser muito difícil encontrar outro emprego que pague o mesmo que você recebia quando perde seu emprego na indústria.

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