Na década de 1990, estava na moda reclamar do que Hubert Vedrine, então ministro das Relações Exteriores da França, chamava de hiperpotência americana, ou “hiperpoder”. O diplomata de esquerda acreditava que a “questão no centro dos poderes atuais do mundo” era o “domínio das atitudes, conceitos, linguagem e modos de vida” exercido pelos Estados Unidos. O que era necessário, ele argumentava, era um “multipolarismo equilibrado”, que pudesse neutralizar o “unilateralismo”, o “unipolarismo” e a “uniformidade” americanos.
Com o presidente Trump, Vedrine finalmente conseguiu seu desejo, embora provavelmente não da maneira que ele teria imaginado, muito menos gostado.
Não é exatamente fácil entender a política externa do governo Trump após suas primeiras semanas bombásticas no cargo. Ela tem algum conceito governante, além do gosto pelo drama e da afirmação, com base em evidências escassas, de que este ou aquele vizinho ou aliado teria tratado os americanos “muito injustamente”?

Em um intrigante ensaio convidado publicado no Times desta semana, a historiadora da Universidade Rutgers, Jennifer Mittelstadt, defendeu que Trump era um “soberanista”, uma tradição cujas origens ela rastreou a 1919 e à rejeição republicana, liderada por Henry Cabot Lodge, da filiação dos EUA à Liga das Nações. Os soberanistas, ela observou, também olhavam com desconfiança para a filiação dos EUA à Otan, o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio, a Lei de Imigração e Nacionalidade de 1965 e, especialmente, a decisão do governo Carter de abrir mão do Canal do Panamá.
Soberanismo
Isso parece correto. Soberanismo significa um país fazendo o que quer fazer dentro apenas dos limites do que pode fazer. Significa o fim da autocontenção dentro de uma estrutura de contenção mútua. Significa uma indiferença ao comportamento de outros estados, por mais cruel ou perigoso que seja, desde que não nos afete. Significa uma reversão à notória afirmação, proferida (de acordo com Tucídides) pelos atenienses antes do saque da cidade neutra de Melos, de que “os fortes fazem o que podem fazer e os fracos sofrem o que devem sofrer”.
O soberanismo também significa o fim de outra coisa: a Pax Americana.
Embora tenha o nome da Pax Romana dos séculos I e II e da Pax Britannica do século 19, a Pax Americana era algo diferente: a aplicação do poder americano para o benefício de mais do que apenas os americanos.
Saiba mais
Enquanto Vedrine lamentava a unipolaridade dos EUA — e, por implicação, a impotência francesa —, o governo Clinton estava pondo fim às depredações sérvias que as potências europeias não tinham vontade ou meios para impedir. Presidentes anteriores dos EUA protegeram a Europa contra a União Soviética, impediram a Coreia do Norte de engolir o Sul e a China de engolir Taiwan, e salvaram a Grécia e a Turquia da dominação russa.
Houve ocasiões em que os praticantes da Pax erraram? Sim, às vezes espetacularmente. Seus beneficiários tiraram vantagem da generosidade americana? Sim, muitas vezes escandalosamente. Nossos aliados sempre refletiram nossos valores? De forma alguma.
Mas a justificativa fundamental para a Pax sempre foi sólida. Os Estados Unidos foram arrastados para duas guerras mundiais porque o “soberanismo” não era adequado aos nossos desafios de segurança. Tínhamos interesse na independência de estados amigos contra ditaduras agressivas e subversivas. Entendíamos que a prosperidade de nossos amigos aumentava a nossa. E preferíamos aproveitadores a freelancers: aliados que poderiam gastar menos em defesa do que deveriam, mas não iriam romper conosco em questões estratégicas essenciais.

Abandono
É isso que Trump agora parece estar em processo de abandonar. Uma coisa é o governo persuadir um estado como o Panamá a se retirar da insidiosa “Iniciativa Cinturão e Rota” da China, ou pressionar o México a fazer mais para policiar seu lado da fronteira, ou mesmo impor tarifas a Pequim por suas violações descaradas da propriedade intelectual dos EUA e das regras do comércio internacional.
Mas as ameaças comerciais insanas contra o Canadá (que lembram a música “Blame Canada” do original “South Park - O Filme“, sem as risadas), ou não descartar uma ação militar na Groenlândia ou no Canal do Panamá, ou o acordo cruel e totalmente antiamericano com a ditadura socialista em Caracas para repatriar potencialmente centenas de milhares de refugiados venezuelanos, representam uma virada mais fundamental na política americana. Agora estamos nos comportando não como uma Grande Potência — em que “grande” implica considerações morais grandiosas — mas como uma Potência Grande, que assusta outros países, incluindo nossos amigos abalados.
Pode haver ganhos de curto prazo com tudo isso? Claro. Os Estados da Otan, temerosos de que Trump possa sair da aliança, agora estão se gabando de sua prontidão para pagar por sua segurança. O Irã de repente parece interessado em discutir seu programa nuclear depois de tratar o governo Biden com desprezo mal disfarçado. Talvez a pressão financeira dos EUA também possa fazer com que as autocracias quase falidas na Jordânia e no Egito aceitem os moradores de Gaza que foram trancados em Gaza — não para aliená-los permanentemente, mas simplesmente para cuidar deles enquanto Gaza é reconstruída.

Mas há custos de longo prazo, e não apenas no risco de políticas comerciais de ataque aos vizinhos, do tipo que aprofundaram a Grande Depressão. A liderança americana depende de mais do que apenas poder. Também depende de nossa confiabilidade e decência — duas virtudes que os antigos críticos da Pax Americana nem sempre apreciaram, mas muitos outros, sim.
Essas coisas ainda não acabaram, mas estão em risco. Existe algum democrata disposto a invocar o espírito de Harry Truman para mostrar aos americanos como podemos fazer melhor?/TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL