THE NEW YORK TIMES - Carl von Clausewitz afirmava que a guerra é a continuação da política por outros meios. A invasão russa à Ucrânia é a continuação da política identitária por outros meios. Não sei você, mas considerei os escritos de especialistas convencionais em relações internacionais não muito úteis para o entendimento do que toda esta crise trata. Mas achei as opiniões de especialistas em psicologia social enormemente úteis.
Isso porque Vladimir Putin não é um político convencional de grande potência. Ele é simplesmente um empreendedor identitário. Sua realização singular foi ajudar os russos a se recuperarem de um trauma psíquico — o rescaldo da União Soviética — e lhes dar uma identidade coletiva para que se sintam relevantes, que sua vida é digna.
Estadista
A guerra na Ucrânia não é primeiramente a respeito de território; é a respeito de status. Putin invadiu o país vizinho para os russos poderem sentir que são novamente uma grande nação e para que o próprio Putin pudesse sentir que é uma figura histórica nas linhas de Pedro, o Grande.
Talvez devêssemos ver essa invasão como uma forma fanática de política identitária. Putin passou anos atiçando ressentimentos russos em relação ao Ocidente. Ele alegou falsamente que cidadãos russófonos estão sob ataque generalizado na Ucrânia. Ele usa as ferramentas da guerra numa tentativa de fazer os russos se orgulharem de sua identidade de grupo.
A União Soviética foi um regime tirano e fracassado. Mas, como Gulnaz Sharafutdinova escreve em seu livro The Red Mirror (“O espelho vermelho”), a história e a retórica soviética deram aos russos a sensação de “viver num país que era, de muitas maneiras, único e superior em relação ao restante do mundo”. As pessoas conseguiam depreender um senso de significância pessoal por ser parte desse projeto soviético maior.
Colapso
O fim da União Soviética poderia ter sido tomado como uma libertação, uma chance de construir uma Rússia nova e maior. Mas Putin escolheu considerar o episódio uma perda catastrófica, que criou um sentimento de desamparo e uma identidade quebrantada. Como estamos agora? Ainda somos importantes?
Da mesma maneira que políticos identitários de todos os cantos do mundo, Putin transformou essa crise de identidade em uma história de humilhação. Ele deu conta de qualquer sentimento incipiente de vergonha e inferioridade ao declarar: “Somos vítimas inocentes”.
Nos primeiros anos de seu domínio, Putin reconstruiu a identidade russa. Ele reivindicou partes do legado soviético como algo para se orgulhar. Sobretudo, sua visão de identidade russa revolveu em torno dele mesmo.
David Brooks
Eles – os EUA, os ocidentais e a galerinha de Davos – fizeram isso com a gente. Como outros políticos identitários de todo o mundo, Putin fomentou ressentimento em relação a status para aliviar mágoas de um trauma, temores de ser inferior.
Nos primeiros anos de seu domínio, Putin reconstruiu a identidade russa. Ele reivindicou partes do legado soviético como algo para se orgulhar. Sobretudo, sua visão de identidade russa revolveu em torno dele mesmo. Ao exibir-se como uma figura poderosa na arena internacional, Putin conseguiu fazer os russos se sentirem orgulhosos e parte de algo maior.
Anexação
Em 2014, Viacheslav Volodin, então subchefe de gabinete do Kremlin, registrou a mentalidade do regime russo: “Não haveria nenhuma Rússia hoje se Putin não existisse”. Essa estratégia grandiosa pareceu completamente confirmada naquele ano com a invasão à Crimeia.
Após retomar a península, a Rússia pôde se vangloriar uma vez mais enquanto grande potência. Mais e mais, Putin se projetou não como um líder nacional, mas como um líder civilizacional, liderando as forças da moralidade tradicional contra a devassidão moral do Ocidente.
No entanto, agora tudo isso saiu do controle. As políticas identitárias de Putin são tão virulentas porque são extremamente narcisistas. Da mesma maneira que indivíduos narcisistas aparentam ter egos inflados, mas, na verdade, são almas inseguras tentando disfarçar sua própria fragilidade, nações narcisistas e grupos que ostentam seu poder são, na verdade, assombrados por medos de sua própria fraqueza.
Narcisistas anseiam por reconhecimento, mas nunca se satisfazem. Narcisistas anseiam por segurança psíquica, mas agem de maneiras autodestrutivas que garantem que se encontram com frequência sob ataque.
Perseguição
A identidade de Putin e a identidade russa são inseparáveis neste momento. A pergunta de 1 bilhão de rublos é: Como reagirá um homem que passou a vida combatendo sentimentos de vergonha e humilhação quando grande parte do mundo o fizer passar vergonha e humilhação merecidamente? Como um sujeito que passou a vida tentando projetar poder e perspicácia reage quando aparenta cada vez mais enfraquecimento e pouca visão?
Imagino que, pelo menos por algum tempo, Putin poderá apelar para a narrativa familiar da Rússia enquanto uma “fortaleza cercada”. O Ocidente está sempre à espreita para nos pegar. No fim, sempre vencemos.
Houve sinais de que Putin pudesse estar disposto a negociar um acordo que implique em algum tipo de concessão e se retirasse da Ucrânia, mas isso seria um choque. Destruiria a inflada e frágil identidade pessoal e nacional que ele vem construindo todos esses anos. As pessoas tendem a não fazer concessões quando sua identidade está em jogo.
Humilhação
Meu temor é que Putin conheça apenas uma maneira de lidar com a humilhação, culpando os outros e partindo para o ataque. Dois anos atrás, meu colega Thomas L. Friedman escreveu uma coluna premonitória sobre políticas de humilhação na qual citou Nelson Mandela: “Não há ninguém mais perigoso do que aquele que foi humilhado”.
Putin trouxe essa humilhação para si mesmo e para seu país. Falando como alguém que admira profundamente tanta coisa na cultura russa, considero um grande crime que uma nação com tantos caminhos para a dignidade e a grandeza escolha o aquele que leva à degradação de maneira tão perversa. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.