‘É uma leviandade falar em genocídio em Gaza’, diz ex-chanceler Celso Lafer

Ex-chanceler dos governos FHC e Collor de Mello, jurista aponta erro de Lula ao apoiar iniciativa contra Israel levada à Corte de Haia pela África do Sul e pondera que País pode prejudicar relação com EUA e Europa

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Atualização:
Foto: Luciana Prezia/AE
Entrevista comCelso LaferAdvogado, jurista e ex-ministro das Relações Exteriores nos governos Collor e FHC

BRASÍLIA - Ex-ministro das Relações Exteriores nos governos Fernando Collor de Mello (1992) e Fernando Henrique Cardoso (2001-2002), o jurista Celso Lafer afirmou ao Estadão que considera uma “leviandade” acusar Israel de cometer crime de genocídio contra palestinos, ao invadir militarmente e bombardear a Faixa de Gaza, na guerra contra o grupo terrorista Hamas.

Quebrando uma tradição diplomática brasileira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva passou das palavras à ação e anunciou que apoiaria a denúncia contra Israel por genocídio, levada à Corte Internacional de Justiça (CIJ), pela África do Sul. O caso começou a ser analisado nesta quinta-feira, dia 11.

Após um pedido da diplomacia palestina, Lula declarou que respalda o processo movido pelos sul-africanos, o que, para o ex-ministro e ex-embaixador do Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU) e na Organização Mundial do Comércio (OMC), representa um alinhamento a um “parceiro do Hamas”.


O ex-chanceler Celso Lafer disse que a justificativa apresentada pela África do Sul - segundo quem declarações de líderes políticos de Israel provariam a intenção acabar com presença dos palestinos de Gaza - não deve ser suficiente para sustentar a acusação perante a Corte Internacional, órgão das Nações Unidas, em Haia, na Holanda.

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Nesta sexta-feira, dia 12, Lafer criticou a decisão de Lula em carta remetida ao ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, e apontou um erro jurídico do governo petista. Nesta entrevista, ele explica as razões.

Celso Lafer, ex-ministro das Relações Exteriores, considera que o Brasil prejudica sua relação com a Europa e os Estados Unidos a tomar lado contra Israel. Foto: Alex Silva / Estadão

O que motivou o senhor escrever uma carta crítica, ­de ex-chanceler para chanceler? ­

Achei que era uma decisão errada, que não atendia a uma das coisas com as quais me preocupei, que é a consistência da política jurídica externa do País. Todo Estado tem, no plano internacional também, uma política jurídica. A Constituição brasileira estabelece a prevalência dos Direitos Humanos, o que significa que é uma política jurídica exterior que deve ser levada em conta no processo de decisão. A coerência dessa política jurídica exterior é muita importante para a credibilidade da posição internacional do Brasil.

Esta carta é um componente da minha dimensão de observador participante, com base na minha experiência diplomática e como estudioso das Relações Internacionais. Não é a primeira vez que eu me manifesto de forma crítica à política externa do Lula.

A carta é uma discussão sobre por que acho errado a instrumentalização do Direito Internacional; sobre por que acho que não é válido alinhar-se à África do Sul nesta instrumentalização; e sobre por que não é válido levantar outros problemas no âmbito da Convenção para Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. É uma convenção com uma especificidade que no fundo exige que não se banalize o termo de genocídio para dar uma dimensão emocional àquilo que são problemas graves, mas de outra natureza.

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O ministro Mauro Vieira fez contato com o senhor após a carta?

Não, nem creio que o ministro vá responder.

Qual a razão para o governo Lula abandonar a neutralidade e declarar apoio à Palestina neste momento?

O Lula voltou à Presidência e houve uma expectativa internacional muito positiva que contrastava com a dificuldade que a maior parte dos países tinha na interação com o Brasil durante o governo Bolsonaro. Ele sinalizou uma coisa altamente importante, que foi o meio ambiente, com a ida à COP antes da posse. Ele escolheu um tema que é tanto interno, com a questão da preservação, quanto externo, de atuação nas negociações multilaterais. E manifestou outras preocupações relevantes como a preocupação com a América Latina. Mas também teve tropeços.

Um deles foi imaginar que poderia desempenhar um papel positivo na guerra da Ucrânia. Coisa que ele de antemão tornou delicado, quando disse que as duas partes tinham culpa na guerra, quando evidentemente quem invadiu a Ucrânia foi a Rússia, violando um princípio básico do Direito Internacional.

Se o Brasil, como ele (Lula) mesmo diz, almeja ter certo papel no plano internacional no encaminhamento da situação no Oriente Médio, é preciso ter a credibilidade de um terceiro que não favorece uma das partes, mas que procura encontrar um caminho para as partes.

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No caso do Oriente Médio e de Israel, a posição do Lula tem sido oscilante. Declarações que antecedem esta adesão à iniciativa da África do Sul... Veja uma declaração do embaixador Celso Amorim dizendo que na situação em Gaza ‘vem à mente a palavra genocídio’. O próprio Lula já havia falado. É uma leviandade usar a palavra genocídio.

Se o governo brasileiro, o que eu acho razoável, tem a preocupação de discutir o problema de direito humanitário na condução da guerra, ou a situação humanitária, eu compreendo a válida preocupação de levantar esse tema... Mas a convenção do genocídio não é um meio hábil para fazer isso. E vale a pena sempre lembrar que a África do Sul tem sido reconhecidamente um parceiro do Hamas nas suas atividades.

Antes de o governo brasileiro tomar partido na Corte, o presidente Lula fez uma série de declarações citando genocídio e até acusou Israel de praticar terrorismo assim como o Hamas. Por que agora foi diferente?

É mais grave. Pode-se eventualmente argumentar que uma declaração do presidente tenha sido feita no calor da hora, comporta uma qualificação, passa por uma explicação adicional. Se você assume uma posição política com implicação jurídica, que é respaldar a iniciativa da África do Sul, você levanta o compromisso brasileiro na matéria.

A África do Sul embasou bastante sua acusação em declarações de soldados e de líderes políticos israelenses. Isso pode ser suficiente provocar uma reprimenda por parte da Corte?

Não creio.

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Por que o senhor considera a África do Sul um parceiro do grupo terrorista Hamas?

Eles receberam pessoal do Hamas, já manifestaram muitas vezes uma posição não só favorável à causa palestina, mas também ao Hamas. Alinhar-se à África do Sul nesta iniciativa é alinhar-se a alguém que, no plano político, está em convergência com o Hamas e seus simpatizantes. Acho que é uma escolha equivocada.

Há quem veja um sinal de maior alinhamento do Brasil a países que questionam o Ocidente, como o eixo de China e Rússia, fortalecido com a ampliação do Brics?

Entendo que essa dimensão também deve ser considerada.

Lula quebrou a tradição diplomática do Brasil?

Considero uma quebra de tradição.

Quais as implicações para o País, inclusive na relação com Israel, e eventuais prejuízos de tomar o lado da Palestina?

Ela lida com um problema de credibilidade, não facilita a nossa relação com a Europa e com os Estados Unidos. Haja visto a posição da Alemanha hoje de entrar como terceiro interessado no caso. A Alemanha diz que a convenção teve sua origem num capítulo importante da história, que foi o Holocausto, então nossa preocupação é com a integridade da convenção do genocídio. E essa integridade significa que ela não deve ser instrumentalizada para outras coisas. É uma coincidência nesta avaliação que os alemães fazem e o que argumento na minha carta. Ela agrega elementos à minha carta.

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O lugar do Brasil no mundo, o tema de sua credibilidade, sobretudo no trato dos grandes temas internacionais, pressupõe coerência e isto passa pela consistência com a qual você se vale do direito nas suas decisões. Você se vale das normas, mas não instrumentaliza a norma. Essa decisão compromete a credibilidade internacional do Brasil em muitas instâncias. E complica a presença do Brasil no mundo. É um entre outros equívocos da diplomacia do governo Lula.

Quais foram os erros no primeiro ano de governo e que ajustes devem ser feitos?

O caso da Ucrânia e da Rússia é um exemplo. Conduzir a política externa exige um certo foco. Foca. Olha. Não fica aí se distraindo com outras coisas. Dê a atenção que merecem, sem se desviar daquilo no que você deve se concentrar. Não dá para lidar com todos os assuntos ao mesmo tempo, como essas incontáveis viagens que levaram Lula a ficar 20% do seu tempo no mundo e 80% no Brasil. Existem certos focos óbvios.

Primeiro o meio ambiente e tem havido uma atenção especial. A Cúpula da Amazônia foi muito importante e o foco deve ser agora preparar-se para a Cúpula do Clima das Nações Unidas (COP 30), em Belém (PA). Sei que não é fácil montar uma reunião desse tipo e falo com base na experiência e na responsabilidade que tive na Rio 92. É um ponto complicado. Lula tem que lidar com as dificuldades entre o Meio Ambiente, a Marina Silva, e o setor do agro, a bancada ao agronegócio. É um assunto relevante para o Brasil e para o mundo e temos condições de ter um papel importante.

Outra crescente complicação é a América do Sul e a América Latina. É a circunstância do nosso eu-diplomático. Veja os problemas que temos com a Argentina nessa nova administração (Javier Milei), olha as dificuldades que estamos presenciando no Equador (ataques de facções criminosas) e o efeito disso para os países vizinhos. A Venezuela e o conflito com a Guiana é outro tema de grande importância.

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Se o governo Lula almeja também ter papel de maior escopo, amplitude, escolha certos temas na área da cooperação internacional que são importantes. Por exemplo, a fome, a partir do fato de que o Brasil é um grande player na área agropecuária e tem elementos para atuar. Foca na matéria de cooperação internacional de saúde que atinge as pessoas, na vacinação. Para resumir, num provérbio simplório: Quem tudo quer, nada tem.

Lula viajou ao exterior demais?

Ele fez muitas viagens. Toda viagem de um presidente tem um componente simbólico importante, você eleva a importância dos assuntos, a relevância das matérias. É sempre uma oportunidade de tratar de temas importantes. Não pode fazer tanto. Falo da minha experiência como ministro de um presidente como Fernando Henrique, que fez diplomacia presidencial, mas que soube escolher os campos para sua atuação diplomática. Liderança significa capacidade de indicar rumo, sentido de direção. A diplomacia do governo Lula, nos seus vai-e-vens, não indica rumo, que é o fundamental.

O que o senhor avalia da forma como o governo lidou com as crises no Equador e na questão do Essequibo?

Não tenho nenhum reparo a fazer. Olhou com atenção. Vamos ver o desdobramento.