Ele escapou da Coreia do Norte; e depois arriscou tudo voltando para resgatar a mãe

Kim Kang-woo desertou do país em busca de uma vida melhor, mas decidiu retornar para buscar a mãe e em seguida sair de novo

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Por Michelle Ye Hee Lee e Min Joo Kim*

SEUL — Kim Kang-woo já havia empreendido a perigosa jornada através da fronteira da Coreia do Norte até a China. Agora ele estava prestes a fazer o impensável: retornar clandestinamente para o solo norte-coreano. Vestindo um moletom preto com gorro e carregando uma faca escondida, Kim se misturou aos mercadores no lado chinês do Rio Yalu enquanto esperava os soldados norte-coreanos baixarem a guarda. Ele avançou sobre o curso do rio quando o sol se punha — e chorou silenciosamente pensando no que o esperava do outro lado: morte, encarceramento ou um reencontro com sua mãe.

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“Quando eu pensei na minha mãe, vi realmente apenas um caminho”, afirmou ele. “Eu tinha que voltar. E se eu fosse pego atravessando de volta, estaria pronto para morrer.”

Mais de 33,8 mil norte-coreanos fugiram para a Coreia do Sul buscando libertar-se da pobreza e da opressão desde que Seul começou a registrar sua entrada no país, em 1998. Um número incontável de outros norte-coreanos fugiu para China, Rússia e outros países. É comum desertores que se reassentam na Coreia do Sul conseguirem intermediários que ajudam a escapar parentes que ficaram para trás. Mas é raro que qualquer pessoa retorne para a Coreia do Norte; e ainda mais raro que essa pessoa consiga fugir novamente para a Coreia do Sul. Mas Kim fez isso para ajudar sua mãe — e por isso foi preso e condenado no Sul.

Kim Kang-woo saiu da Coreia do Norte em 2016, retornou para buscar a mãe e escapou de novo Foto: Jean Chung e Sarah Hashemi / The Washington Post

Em sua primeira entrevista a um meio de imprensa, Kim e sua mãe recordaram-se de sua assustadora e tortuosa jornada para se reencontrar, da determinação que os alimentou ao longo de quatro anos que ficaram separados e durante tentativas fracassadas de se reunir e sua nova vida em Seul, repleta de trauma e esperança.

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O Washington Post verificou o retorno de Kim e sua segunda fuga por meio de registros judiciais, mas não pôde corroborar os relatos que se originaram em acontecimentos ocorridos no recluso país. Detalhes a respeito da cidade em que viviam no Norte foram preservados para proteção dos parentes que permaneceram por lá.

Em busca de sonhos

Como a maioria dos norte-coreanos, Kim aprendeu sobre a vida cotidiana de Seul por meio de um programa de TV sul-coreano contrabandeado da China. Conforme assistia o personagem Jung Woo na minissérie “Swallow the Sun”, de 2009, na qual um órfão sem teto eventualmente encontra amor e sucesso, Kim pensou que ele também poderia ter chance de novas oportunidades no Sul.

Kim, de fala suave e sorriso fácil, foi um menino estudioso quando crescia em uma cidade próxima à fronteira com a China. Ele se graduou como primeiro da classe no ensino médio, mas não pôde ir à faculdade porque vinha de uma família pobre, e esse tipo de oportunidade é reservada para pessoas de classe superior. Quando completou 20 anos, ele refletiu sobre sua vida como agricultor e trabalhador, colaborando para o sustento de um regime possuidor de armas nucleares enquanto ele e sua mãe não tinham o suficiente para comer.

Ele quis mais. Um diploma universitário. Um trabalho estável. Ele disse à sua mãe, Im Su-ryuh, que queria partir para o Sul e pediu que ela esperasse três anos. Ela deu ao filho único um ovo cozido antes dele partir, que ele lhe devolveu imediatamente. Ela não podia vê-lo partindo, por temor de levantar suspeitas de vigilantes na comunidade, e chorou em silêncio por muitas noites depois que ele foi embora. Seu marido morrera empreendendo a mesma jornada anos antes.

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Im Su-ryuh chora enquanto relembra trajetória vivida na Coreia do Norte, em imagem registrada em Seul, no dia 12 de julho Foto: Jean Chung / The Washington Post

“Ele me disse: ‘Não posso apodrecer neste país pelo resto da vida’”, afirmou Im, de 51 anos. “Eu não conseguiria impedi-lo, mas também não o encorajei.”

A partida do filho caiu como um raio sobre Im. “Senti como se ainda pudesse vê-lo bem na minha frente. Senti tristeza por ele ter tido a mãe errada, incapaz de lhe dar uma vida melhor. Pensei que nunca mais fosse vê-lo novamente”, afirmou ela.

Chovia forte na noite de maio de 2016 que Kim atravessou sozinho o Rio Yalu. Ele chegou a Seul depois de uma jornada de cinco meses por China, Laos e Tailândia, numa rota comum para desertores norte-coreanos. (Cruzar diretamente do Norte para o Sul estava fora de questão; a fronteira é altamente militarizada). Onze meses depois que seu filho saiu de casa, Im recebeu a notícia de que ele havia conseguido chegar à movimentada capital no Sul.

Kim trabalhou como tudo o que pôde: na construção civil, em uma loja de colchões e em uma loja de celulares. Ele pensava em sua mãe todas as noites enquanto caminhava do trabalho para casa — e sempre que comia alguma refeição deliciosa.

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Em 2019, Kim tinha economizado dinheiro suficiente e encontrou um intermediário em que podia confiar. Finalmente ele pôde arranjar a fuga de sua mãe. E na hora certa.

Volta ao lar

Em maio daquele ano, Kim reservou uma passagem aérea para a China. Ele queria ajudar a mãe durante a penosa jornada. Mas arriscar a vida novamente não estava no plano.

Depois de se dirigir até a fronteira norte-coreana, ele trabalhou com um intermediário que deveria providenciar a fuga de sua mãe, mas não conseguiu entrar em contato com ela.

Norte-coreanos que vivem ao longo da fronteira usam celulares contrabandeados da China capazes de captar redes chinesas de telefonia para realizar chamadas. Finalmente sua mãe ligou, de um celular que havia conseguido emprestado.

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Im disse ao filho, então com 23 anos, que estava apavorada. Ela não tinha telefone e preocupava-se com o risco de não conseguir encontrá-lo do lado chinês. Talvez eles devessem tentar novamente em outra ocasião, disse ela ao filho. Então a chamada caiu; e o plano se despedaçou.

Kim Kang-woo mostra adesivo "Eu amo Coreia" na traseira do seu celular, em 12 de julho Foto: Jean Chung / The Washington Post

Kim entrou em pânico. Ele estava ficando sem dinheiro, e seu visto expiraria em breve. Ele havia usado todos os recursos que possuía para chegar àquele ponto e não tinha certeza de quando poderia voltar para aquele lugar. Enquanto decidia se entraria novamente ou não na Coreia do Norte, ele se preocupou com sua segurança e a de sua família. Se ele fosse pego retornando, depois de ter desertado, ele e sua família poderiam ser mortos.

“Eu hesitei, porque estava apavorado. Mas senti que poderia não ver minha mãe nunca mais”, afirmou ele.

Por dois dias, ele assistiu as movimentações dos guardas norte-coreanos a partir da margem chinesa do rio, para aprender sua rotina. No segundo dia, quando os guardas faziam uma pausa para jantar, ele cruzou de volta. E logo correu para um bosque.

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Muita coisa tinha mudado em sua cidade, e Kim se deu conta de que ele também havia mudado. Ele tinha furado as orelhas e pintado o cabelo de castanho escuro. Tinha se esforçado para se livrar do sotaque norte-coreano quando trabalhou no comércio — e se flagrou usando gíria sul-coreana. Ele não conseguia passar tão despercebido como havia esperado.

Kim foi até a casa de sua mãe e bateu na porta. Im ficou estarrecida. Mãe e filho se abraçaram e choraram em silêncio. Então imediatamente Im temeu pela segurança dos dois.

“Ele é louco. Minha felicidade durou um breve momento, logo depois me deu um arrepio. Se ele fosse pego, seria executado imediatamente, e o restante de nós iria para algum campo prisional”, afirmou ela.

Ao longo dos 22 dias seguintes, Kim trabalhou para arranjar intermediários nos dois lados da fronteira, para levar ambos à China. Mas não foi fácil organizar a jornada tão rapidamente, especialmente porque os intermediários se mostravam incrédulos quando Kim lhes dizia que havia retornado para a Coreia do Norte.

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Um dos muitos telefonemas que ele fez nesses dias foi captado pela vigilância do governo, afirmou Kim. Quando ele não estava em casa, autoridades de inteligência apareceram, revistaram o local e detiveram sua mãe. Os interrogadores a espancaram, provocando-a para que admitisse que seu filho desertor havia retornado, afirmou ela — o que ela negou repetidamente.

Kim se escondeu na casa de um amigo que o aconselhou a deixar a Coreia do Norte para proteger sua família. De acordo com registros judiciais sul-coreanos, Kim saiu da Coreia do Norte pela segunda vez no dia seguinte que sua mãe foi detida.

Ele cruzou o Rio Yalu novamente, sem a mãe.

Um novo suplício

Kim recebeu um telefonema logo que aterrissou em Seul. Era um agente de inteligência sul-coreano. “Estávamos esperando você chegar”, afirmou o homem. E logo Kim soube que o governo da Coreia do Sul havia rastreado sua jornada usando registros de seu celular. Ele foi interrogado durante semanas, enquanto as autoridades buscavam determinar se ele era ou não espião.

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É ilegal para um sul-coreano entrar na Coreia do Norte sem aprovação do Ministério da Unificação. De acordo com a decisão da Justiça sul-coreana sobre o caso de Kim, emitida em agosto de 2020, ele seria condenado a até 3 anos de prisão. Mas o juiz se mostrou benevolente depois de Kim expressar arrependimento, e os promotores determinaram que Kim não tinha nenhum histórico de violação similar das leis sobre as relações intercoreanas. Sua sentença foi reduzida para 6 meses de prisão e 2 anos em liberdade condicional.

Im Su-ryuh e o filho, Kim Kang-woo, posam para foto em Seul, em imagem de 12 de julho Foto: Jean Chung / The Washington Post

Após uma das sessões de interrogatório, Kim recebeu o telefonema de um intermediador. Sua mãe havia conseguido sair da Coreia do Norte. Kim não conseguia acreditar — pediu uma foto e a chance de falar com ela pelo telefone. Depois que ouviu a voz da mãe, ele acionou seus contatos sul-coreanos para ajudá-la a atravessar China, Laos e Tailândia.

“Fiquei incrivelmente feliz. Senti como se tivesse renascido”, disse o filho, recordando-se do telefonema. “Achei que esse dia nunca fosse chegar”, disse a mãe.

Para os padrões norte-coreanos, as prisões sul-coreanas são quase hotéis de luxo. Havia refeições regulares, com cardápio variado, Kim podia ler quanto livros quisesse. Suas dívidas com os intermediários se acumularam, porque ele não podia trabalhar, mas apesar disso a vida era confortável.

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Ele não havia contado para a mãe que fora preso, mas quando Im chegou a Seul e não conseguiu contato com o filho, ficou desconfiada. Os amigos dele, depois de questionados, eventualmente revelaram seu paradeiro.

“Meu coração afundou. Meu filho, que tinha querido simplesmente obter grau universitário, estava na prisão por minha causa”, afirmou ela.

Im escreveu cartas para o Kim semanalmente. Compartilhar suas observações sobre a vida no Sul a ajudou a se sentir menos sozinha.

“Tirei minha carteira de motorista hoje.”

“Hoje é aniversário de sua avó. Você se lembra quando celebrávamos todos juntos na Coreia do Norte?”

“Andei de metrô hoje e me sentei ao lado de um jovem muito parecido com você. Desejei que você estivesse aqui comigo e que fosse você na realidade que estivesse no metrô ao meu lado.”

Im contou os dias até o filho ser solto, em 13 de setembro de 2020. À 00h ela já estava à espera na frente da penitenciária. Ela imaginou que seu filho tinha vivido sob condições de aprisionamento como as da Coreia do Norte — e tinha se preocupado com sua saúde.

Mãe e filho se reuniram finalmente diante dos portões da penitenciária, mais de quatro anos depois de Kim fugir pela primeira vez da Coreia do Norte. “Quando saiu, ele me pareceu tão fraco e magro”, afirmou ela.

“Na realidade eu ganhei um monte de peso… Eu mal me movia!”, afirmou ele. “Jamais percebo quando ele diz que ganhou peso”, afirmou ela. “Só quero que ele seja saudável.”

Trauma e esperança

O apartamento de Im em Seul, uma das unidades habitacionais fornecidas pelo governo sul-coreano para desertores do Norte, é decorado com seus projetos de tricô e bordado. Ela não está trabalhando, mas recebe treinamento e outros tipos de apoio do governo sul-coreano para que possa, eventualmente, encontrar um emprego. Ela gosta de cuidar das plantas em sua sacada e fica impressionada com a maneira que é capaz de controlar a temperatura dentro de seu apartamento, para que as plantas continuem crescendo. Na Coreia do Norte, sua plantas morriam no inverno, porque não havia sistema de aquecimento.

Kim vive a 40 minutos da cada de Im. Ele vai visitar a mãe de carro, um Mercedes-Benz cujas prestações pretende acabar de pagar o quanto antes. Agora Kim corta o cabelo em um salão de cabeleireiro — e agradece por não ter mais de conviver com beliscões nas orelhas das tesouradas de sua mãe. Im quer voltar a cortar os cabelos de Kim — e deseja que ele pare de usar jeans rasgados.

“É a moda”, disse-lhe o filho.

Kim, agora com 27 anos, não está trabalhando neste momento, para colocar o foco em entrar na faculdade. Ele se candidatou a seis instituições de ensino superior em relações internacionais. Kim gosta de trabalhar e assistir filmes, especialmente os que o emocionam ainda por um longo tempo depois que ele deixa o cinema.

Em razão do trauma que persiste, a vida na Coreia do Norte não parece tão distante. Kim evita viajar para as montanhas com os amigos, porque florestas o recordam dos momentos que passou escondido na Coreia do Norte. Im odeia o ruído dos políticos sul-coreanos discursando em megafones, porque o barulho a recorda das propaganda do regime norte-coreano que reverberavam a todo volume diante de sua casa na Coreia do Norte.

Quando Kim chegou pela primeira vez na Coreia do Sul, ele ficou chocado com o pouco que os sul-coreanos pareciam conhecer a respeito de seus vizinhos do Norte. Alguns lhe perguntavam se ele havia sido treinado para assassinar pessoas.

“Somos gente tanto quanto os sul-coreanos”, afirmou ele. “Os norte-coreanos também têm direitos humanos, apesar de não serem respeitados. Mas todos eles merecem viver e ser amados.”

Im grudou na geladeira de seu apartamento uma carta do filho: “Querida mamãe, a quem amo e respeito. Obrigado por me criar com amor. Por favor continue saudável por muitos anos, para que possamos viver com alegria”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

* Julie Yoon, do Washington Post, colaborou com esta reportagem

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