A ascensão do radical de direita José Antonio Kast nas pesquisas de intenção de voto no Chile tem como uma de suas explicações a guinada ao centro do governo do presidente Sebastián Piñera. Na opinião do cientista político e professor da Universidade de Santiago de Chile Marcelo Mella Polanco, nas eleições presidenciais e parlamentares de 21 de novembro, mais do que assegurar suas cadeiras ou cargos no governo, os setores da direita querem é a sobrevivência de suas visões de mundo, de seus valores e ideias fundamentais, como afirmou ele em entrevista ao Estadão.
O que explica o crescimento de José Antonio Kast nas pesquisas?
Podemos atribuir alguns fatores. O primeiro deles é que, no Chile, desde outubro de 2019, mais intensamente depois da pandemia de coronavírus, tem havido um debate entre dois sentimentos contraditórios. Por um lado, a esperança de transformar a institucionalidade que provém da ditadura de Pinochet, dos anos 80. Por outro, a ameaça dos efeitos econômicos e sociais da pandemia e dessa própria transição institucional que o país está vivendo. São dois sentimentos contraditórios. Se por um lado há uma expectativa de mudança, por outro lado, há uma percepção de que essas mudanças podem gerar também custos sociais que precisam ser controlados. Nesse cenário, José Antonio Kast recorre a um discurso de restabelecimento da ordem social e econômica que pode estar atualmente em sintonia com alguns setores que estão mais preocupados restabelecer os níveis de crescimento do país do que apoiar a mudança institucional ou a elaboração de uma nova Constituição.
Qual o impacto do governo Piñera para esse resultado?
Há de se entender que a crise do governo Piñera é a crise de um presidente e de uma administração, mas isso não significa que os votos tradicionalmente dedicados à direita tenham desaparecido. Historicamente, a direita no Chile tem ao menos um terço dos votos das eleições parlamentares. Por isso, parece ser pouco realista que o declínio do apoio ao presidente Piñera seja entendido como um declínio, em médio ou longo prazo, das ideias, das visões de mundo do setor da direita no Chile. Não significa a diminuição desse capital eleitoral, a longo prazo. É preciso fazer a distinção do que significa o apoio a uma administração eleita com o capital eleitoral de um setor político que no Chile tem tido um respaldo estável durante todo o século 20 e 21 também.
A extrema direita tem crescido no país?
O crescimento de Kast pode também ser atribuído a um certo tom radical nas candidaturas mais propensas a apoiar as mudanças que o país está vivendo. E, particularmente, à candidatura de Gabriel Boric. Não exatamente o candidato, mas sua equipe política e muitos de seus porta-vozes têm tido um problema importante de coordenação. Nas últimas três ou quatro semanas, eles têm tido de se explicar por declarações que aumentaram a percepção de temor ou de risco de um eventual governo de um candidato do Aprovo Dignidade (de esquerda). Em alguns casos, as declarações alimentaram um sentimento anticomunista de longa data na história política chilena.
Os moderados abandoram a campanha?
No Chile, há pelo menos duas direitas. Uma de orientação mais extrema, uma direita mais radical, que está representada pela União Democratica Independiente com ideias econômicas muito liberais e com ideias culturalmente conservadoras. E há a Renovação Nacional, que é o partido tradicional de centro-direita com ideias liberais, tanto econômicas como culturais, o que em alguns casos tem poucas diferenças com a centro-esquerda. Sebastián Pinera representava essa direita mais moderada. No entanto, o movimento cada vez mais ao centro de sua administração acabou dando a ele um alto um nível de rejeição, que atingiu índices históricos.
Como será o comportamento desses setores?
Acredito que, à medida que se consolida o primeiro lugar de Kast, é muito improvável que essas duas alas da direita tenham um comportamento disciplinado. Porque, para a direita, foi uma tremenda mudança de rota no plebiscito que inaugurou o processo constituinte e a posterior eleição dos constituintes, que geraram resultados extremamente baixos para esse setor. Esta eleição (de 21 de novembro) representa um evento histórico de maior importância. Mais do que ganhar ou não ganhar o governo, o que amplos setores da direita querem é a sobrevivência de suas visões de mundo, de seus valores e ideias fundamentais. É quase uma luta pela sobrevivência ideológica da direita. Portanto, independente de qual será a combinação com Kast para o segundo turno, não há muita possibilidade de fuga eleitoral dos setores da direita. A maior parte da direita, por uma questão quase de sobrevivência e projeto histórico, irá apoiar o candidato em novembro e, se houver um segundo turno, também em dezembro.
Por que o ex-ministro de Piñera Sebastián Sichel perdeu tanto apoio?
A razão pela qual se adotou essa diáspora da candidatura de Sichel é porque, apesar de ele ter vencido as primárias e ser escolhido o candidato do setor, sua trajetória é a de um político de centro-esquerda que migrou para a direita. Portanto, foi um nome que não tem uma trajetória legítima dentro do setor e, por isso, talvez não seja uma boa saída apostar nele a sobrevivência das ideias. Acredito que, fundamentalmente, são esses fatores que terminaram pesando muito para que houvera um rechaço a Sichel.
Como deverá ser a participação dos chilenos?
O cenário político nessas últimas três semanas no Chile está muito volátil pelo menos em três temas. O voto é voluntário e a participação deve ser de aproximadamente entre 50% e 51%. Com isso, metade do país não participa das eleições. Isso é parte do problema de incerteza nessa eleição. Quantas pessoas votarão será determinante para os resultados finais. O segundo fator é de que territórios são as pessoas que irão votar, se são de comunas ou de regiões de alta ou baixa renda. Isso também determina o resultado. Em terceiro lugar, se trata da idade desses eleitores, se são mais velhos ou mais jovens. Durante o processo da eleição constituinte, a esquerda apareceu com uma boa votação, mas não se produziu uma mudança na porcentagem dos eleitores, e sim na sua composição etária. Nesse sentido, os resultados se correlacionam. Muitas pessoas que nunca tinham votado antes participaram do processo eleitoral. Pelas condições próprias da pandemia, muitos adultos e pessoas mais velhas ficaram em casa. Houve uma compensação entre aqueles mais velhos que não foram votar e os mais jovens que foram. Esses fatores são muito importantes a serem observados agora novamente.
Qual seria o impacto na região de uma eventual vitória de Kast?
No caso de uma vitória de Kast, as mudanças provavelmente serão muito maiores internamente do que na política externa. É certo que Kast anunciou que vai encerrar a participação do Chile no Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos fundamentalmente por uma confrontação, para manifestar diferença com (Michele) Bachelet, atualmente a alta comissária. Isso é um tema efetivo. Dadas às características nosso país, onde o crescimento da economia está fortemente vinculado à integração global, não há a possbilidade de se conduzir um crescimento a longo prazo que não esteja vinculado a uma estratégia intensa de articulação e integração internacional.
Haveria divergência ideológica com os governos da região?
Do ponto de vista da integração econômica, no fim, não se diferenciará muito do que já vem sendo feito até agora. Há uma integração regional favorável a uma maior vinculação entre países do que entre as atuais administrações em curso, com um distanciamento ideológico. Assim seria com um eventual governo de Kast, por exemplo, nas relações do Chile com Peru e Argentina e com Brasil. Elas transcendem as mudanças dos ciclos políticos em cada um desses países. Entende-se que nosso país está permanentemente em crescente integração econômica com o restante do mundo. É assim também, por exemplo, na relação com a China.
Qual o impacto interno?
Em política interna haverá diferenças, principalmente em temas de ordem pública, toda a situação de crise social, de mobilização social e a relação do governo com a elaboração da nova Constituição. Deve haver mudanças importantes, particularmente na forma de gerenciar e tratar o conflito na região da Araucanía, territórios do povo mapuche que está lutando há séculos por sua autonomia e autodeterminação política (onde Piñera decretou estado de exceção). O candidato da extrema direita se opõe às demandas e está tentando se eleger com o discurso de que há uma necessidade de se estabelecer a ordem e a segurança pública.
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