ENVIADA ESPECIAL A EL PASO E CIUDAD JUÁREZ - Os riscos que o estreito de Darién, a “selva da morte”, escondem não se comparam aos que são encontrados no México, concluem os imigrantes recém chegados aos Estados Unidos após meses de caminhada. Os sequestros, roubos e extorsões, constantes nos relatos, somam-se às intempéries do clima e aos acidentes nas caronas em trens de carga. É a rota terrestre mais perigosa do mundo.
Carmen e Jorge* responderam sem pensar quando perguntados qual foi a pior parte da jornada entre a Colômbia e El Paso, no Texas: “O México”. O casal, que migrou com o filho de dois anos, afirma que foi vítima de uma pandilla, como são chamadas as gangues, e sequestrado.
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“Tínhamos acabado de chegar, não sabíamos... Disseram que tínhamos que pegar uma kombi”, lembra ela. “Como um transporte público”, completa ele. “Mas essa kombi nos deixou (num posto da) imigração, que nos fez voltar.” Essa é outra constante nos relatos: muitos afirmam que foram pegos no caminho e mandados para o sul do México, o que torna a travessia ainda mais longa — e perigosa.
Desse ponto, em Tapachula, no Estado de Chiapas, eles se depararam com o que parecia ser um serviço de transporte, mas era uma armadilha. “Eles cobraram 25 pesos para levar a gente em caminhonetes. Era muito barato e, para não ter que caminhar com a criança pequena, fomos”, lembra Jorge. (Para se ter uma ideia, 25 pesos mexicanos é o valor de um quilo de feijão ou tortilhas, itens básicos da alimentação no México. Equivale a R$ 7,50.)
“Quando chegamos, era um sítio. Eles colocavam as pessoas numa espécie de galpão, com homens armados na entrada”, lembra ele. Para sair, era preciso pagar. Foram US$ 75 por pessoa, algo em torno de R$ 1.200 para a família. Como tinham o dinheiro, Jorge, Carmen e o filho conseguiram sair rápido, colocados em carro, onde se espremiam dez imigrantes recém libertos.
Outros, que não podem pagar, ficam dias em cativeiro. Foi o que aconteceu com Maria*, imigrante da Guatemala. “Fiquei três dias em um lugar escuro, eu e minha filha”, relata enquanto o choro irrompe. “Viram que não tinha dinheiro, acabaram nos deixando seguir. Foi Deus”, diz ela quando perguntada como conseguiu escapar, antes de encerrar a entrevista secando as lágrimas do rosto cansado: “Não gosto de lembrar o que passei para chegar até aqui”.
Os imigrantes ouvidos pelo Estadão aguardavam para entrar no abrigo mantido pela Paróquia do Sagrado Coração em El Segundo Barrio, no coração de El Paso, cidade texana onde se ouve falar mais espanhol que inglês.
Por vezes, as portas se abriam mais cedo para socorrer os que passavam mal sob o clima desértico. Primeiro, uma mulher desmaiada. Depois, um menino conduzido pelo braço com aspecto confuso. O verão (Hemisfério Norte) nem tinha começado e a temperatura beirava os 40ºC naquela tarde.
A espera, que se estendia por onde houvesse alguma sombra, reunia de homens jovens desacompanhados à famílias inteiras com bebês e crianças. Os imigrantes eram em sua maioria venezuelanos, que dizem não ver condições de viver com o debacle econômico da ditadura Nicolás Maduro. “Ninguém quer deixar o seu país. Estou aqui porque quero trabalhar, dar uma vida melhor para os meus filhos”, disse Miguel, de 40 anos.
Ele havia deixado a Venezuela há seis meses com mulher, filhos, netos e irmãos. Estavam em 12 pessoas, sendo duas crianças. “O México foi a verdadeira prova, não foi fácil, de verdade. A selva não foi nada, a selva é uma brincadeira de criança se comparado ao México”, afirma, referindo-se ao estreito de Darién, única passagem por terra entre as américas do Sul e Central.
“A imigração foi o pior. A imigração cobra para deixar passar e, mais à frente, te pegam e mandam de volta. Nós passamos por isso. Te digo que foram quatro meses desde que entramos no México para chegar até aqui. Viemos caminhando em caravana, mas as pessoas se dispersavam e eram pegas em grupos menores. Muitos dos nossos companheiros de viagem ainda estão espalhados por aí”, narra Miguel.
A selva não foi nada, a selva é uma brincadeira de criança se comparado ao México.
Miguel, imigrante venezuelano
Outro imigrante, que não quis ser identificado, conta que saiu da Colômbia atraído pela proposta de um amigo para trabalhar no México, mas as coisas não deram certo por lá. Então, decidiu seguir viagem para os Estados Unidos, com a mulher e o filho, de 11 meses.
“Eu estava bem no meu país e ele era um amigo de infância, mas foi tudo uma mentira. Perdi dinheiro e passei por muita humilhação. Não queria voltar para a Colômbia assim”, diz com o rosto em lágrimas quando perguntado porque decidiu migrar com o bebê de colo, que a mulher ninava às margens do Rio Grande, na fronteira.
No caminho até a fronteira, conta que passou por quatro bloqueios. Em cada um deles, perdeu um pouco do dinheiro que conseguiu guardar para seguir viagem. “Eu tinha o visto mexicano, mas estava vencido há dois meses. Em cada parada, eles (da fiscalização) me faziam descer do ônibus e diziam que, se eu não pagasse, me mandariam de volta ou me prenderiam com a minha mulher. Tiraram até os brincos dela. Era sempre à noite. Pela manhã, fomos parados só uma vez, mas não levaram nada”, relata ele, que desconfia ter sido delatado pelo motorista do ônibus.
Em Ciudad Juárez, entrou em contato com a família, na Colômbia, para que penhorasse um cordão de ouro e transferisse mais dinheiro. Foi o suficiente para pagar abrigo e comida para a família por três dias, mas acabou. Eles esperavam atravessar naquela noite, depois de algumas tentativas frustradas. “Precisa dar certo, não temos para onde voltar.”
Rota terrestre mais perigosa do mundo
O aumento da fiscalização tem levado imigrantes a buscar rotas ainda mais clandestinas dentro do país, aponta a Organização Internacional para as Migrações (OIM), que considera a travessia entre México e Estados Unidos a rota terrestre mais perigosa do mundo.
O projeto Missing Imigrants, da OIM, contabilizou quase 9,5 mil mortos ou desaparecidos na rota das Américas desde que foi lançado há uma década. Mais da metade dos incidentes (5,3 mil) se concentra na fronteira. Violência, acidentes, clima inóspito e afogamentos no Rio Grande são citados pela organização como principais causas de morte. E os números reais tentem a ser ainda maiores que os registrados. Numa região de terrenos vastos e áridos, muitos corpos nunca são encontrados.
Leiran Contreras deixou a Venezuela aos 20 anos com o sonho de estudar engenharia de software e seguiu rumo aos Estados Unidos acompanhado por dois amigos. Um deles, Leonel Rodríguez, morreu no México.
“Em Chiapas, as gangues controlavam tudo. A gente estava (na capital) Tuxtla Gutiérrez e a única maneira de sair era com um táxi da máfia. Eles cobravam US$ 150 por pessoa até uma cidade próxima. Depois mais US$ 150 até o próximo ponto e assim por diante. Era muito dinheiro então decidimos comprar umas bicicletas”, lembra.
Leiran conta que, chegando no povoado de Cintalapa, eles desciam uma ladeira íngreme quando foram surpreendidos por um carro e acabaram saindo da estrada. Leonel, que tinha mobilidade reduzida no braço, bateu numa pedra e foi lançado da bicicleta, caindo de cabeça. Os amigos tentaram socorrer, mas o hospital local não tinha máquina para tomografia. Conseguiram uma ambulância para voltar até a capital, mas era tarde. Ele estava com hemorragia cerebral e não sobreviveu.
“Vivemos tudo isso juntos. Desde a selva, passando por todos os países”, conta Adrien. “Ele saiu da Venezuela para conhecer o filho, que nasceu nos Estados Unidos, mas nunca chegou no destino”, lamentou Leiran, de um albergue que acolhe imigrantes em Cidade Juarez, no lado mexicano da fronteira. Ele esperava para entrar legalmente nos EUA como requerente de asilo, processo que costuma levar semanas.
O caso do amigo Leonel não é único. “As motos dos traficantes passam em alta velocidade. Atendemos pessoas com traumatismo craniano e fraturas, mas não temos como tratar essas lesões graves porque os serviços de saúde disponíveis são apenas de atenção básica”, afirma o relatório da OIM sobre os riscos para os imigrantes em Chiapas, citando uma organização da sociedade civil.
Graves acidentes também foram relatados ao Estadão pelo braço da Cruz Vermelha na rota que passa pela região central mexicana.
O ‘muro’ antes do muro
O México identificou 1,393 milhão de estrangeiros em situação irregular apenas na primeira metade do ano, segundo dados mais recentes do Instituto Nacional de Migração. A maioria seguia rumo aos Estados Unidos, mas a situação na fronteira é de relativa calmaria. Esse é mais um indício da saga que os imigrantes enfrentam em solo mexicano.
Nesse mesmo período, a Alfândega e Proteção de Fronteiras dos EUA (CBP da sigla em inglês) registrou 905 mil encontros na fronteira. E os números estão em queda depois do caos visto no fim do ano passado.
“O México é que chamamos de país tampão”, afirma Bruno de Souza e Miranda, doutor em ciências políticas e sociais pela Universidad Nacional Autónoma de México (UNAM) e especialista em estudos sobre imigração.
“Há um processo de externalização das fronteiras, ou seja, o controle migratório dos Estados Unidos é externalizado para o território mexicano. Até um tempo atrás, isso acontecia em territórios imediatamente fronteiriços mas, de 2019 para cá, passou a se estender por todo país, até a fronteira sul tem sido usada para o controle e dissuasão dos imigrantes”, explica.
O que aconteceu de lá para cá foi que o México assinou com os EUA um acordo em que se comprometia a controlar a imigração, sob ameaça de imposição de tarifas pelo então presidente Donald Trump. Para isso, contaria com o reforço da recém criada Guarda Nacional, que pode ser vista ao longo da fronteira, levantando a poeira do deserto em caminhonetes.
Como não conseguem prender os números recordes de pessoas que seguem em direção aos EUA, explica Miranda, as forças mexicanas detém os imigrantes provisoriamente em centros como o de Tapachula, na fronteira com a Guatemala, mencionado por vários dos entrevistados pelo Estadão. Depois de alguns dias, eles são liberados, com prazo determinado para se regularizar, e aproveitam essa brecha para seguir viagem.
Na chamada puerta 36, uma das principais entradas para El Paso, Kelvin, de 28 anos, conta que foi pego três vezes pela imigração do México, trecho mais longo da jornada que começou na Nicarágua e durava há cinco meses. Foi levado uma vez a Tapachula e outras duas vezes a Vilahermosa, também no sul do país. Na quarta tentativa, conseguiu chegar a Ciudad Juarez.
Usando a vegetação que beira o rio para se proteger do sol escaldante, Kelvin e seus colegas de travessia esperavam por um descuido da patrulha texana para, então, cortar a cerca de arame farpado instalada pelo governo do republicano Greg Abbot e se entregar em solo americano. Essa tem sido uma das estratégias mais frequentes entre aqueles que decidem não esperar pelos meios legais.
O crime organizado e os riscos da espera
De Donald Trump para Joe Biden, as políticas para fronteira mudaram mas, de modo geral, os governos americanos têm incentivado imigrantes a permanecer no México enquanto esperam o processamento dos pedidos de asilo. Acontece que essa espera, num país onde os carteis de drogas estão em guerra por espaço e mercados ilegais, pode ser arriscada. Vulneráveis, os imigrantes se tornam alvo fácil para as gangues.
“Nas pesquisas de campo, já conheci imigrantes que estavam em espera há mais de dois anos”, conta Miranda. “Pelas condições em que chegam na fronteira, sem dinheiro, às vezes impossibilitadas de conseguir vagas nos albergues, que estão com a capacidade máxima, essas pessoas muitas vezes se convertem em moradores de rua. E ficam numa situação ainda mais vulnerável. São presas fáceis para sequestros e extorsões por parte de agentes estatais e não estatais”.
*A reportagem usou nomes fictícios para alguns dos entrevistados, que pediram para não ser identificados.
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