ENVIADA ESPECIAL À CIDADE DO MÉXICO - Quase 100 milhões de pessoas participam neste domingo, 2, da maior eleição da história do México. Paradoxalmente, há o temor de que o resultado traga retrocessos para a combalida democracia, que ainda tenta se consolidar no país, onde a alternância de poder teve início há apenas 25 anos.
Embora a precisão das pesquisas seja motivo de dúvidas, a expectativa é que Claudia Sheinbaum se torne a primeira mulher eleita presidente na história do México. Ela aparece com 15 pontos percentuais de vantagem sobre a segunda colocada, Xóchitl Gálvez. Se confirmado, o resultado deve consolidar o domínio do Morena, partido de Andrés Manuel López Obrador, que atualmente tem a Presidência, a maioria no Congresso e 23 dos 32 governadores.
AMLO, como é conhecido, se elegeu como de esquerda e é popular pelas políticas de transferência de renda. Os críticos, no entanto, apontam que o presidente de saída tem tendências autoritárias e até reacionárias, como os ataques à imprensa e a proposta de reforma da Constituição que prevê, entre outras coisas, maior interferência do governo no órgão eleitoral, redução de legisladores e eleição para juízes.
“A parte negativa do seu legado é o autoritarismo e o afã de concentrar poder em suas mãos, de converter o México no país de um homem só”, afirma o analista político mexicano Agustín Basave. Ele cita como exemplo o enfraquecimento do Congresso e as investidas contra o Judiciário, mas pondera que a democracia no México tinha problemas anteriores a Obrador. “A nossa democracia vem de uma transmissão inacabada, é uma democracia precária”.
No país que passou sete décadas sob a hegemonia de um único grupo político, na época, o Partido Revolucionário Institucional (PRI), o temor dos críticos é que o México volte a ser como era até os anos 2000, especialmente, se o Morena tiver maioria qualificada para reformar a Constituição, como tem tentado.
“O legado de Obrador está encarnado em Sheinbaum”, afirma o pesquisador mexicano Roger Bartra, da Universidade Nacional Autônoma do México, destacando que ela deve dar continuidade às propostas do padrinho político. “Se ela tiver maioria para reformar a Constituição, será um passo atrás, um retorno à era do PRI, de domínio de um único partido”, acrescenta.
Uma pesquisa divulgada esta semana pelo El Financiero, no entanto, aponta que o Morena e os partidos aliados (PT e Verde) devem somar 49% dos deputados da Câmara, abaixo dos 66% que seriam necessários para mudar a Constituição. Do outro lado, a coligação de oposição formada pelo Partido Ação Nacional (PAN), em conjunto com o PRI e o Partido Revolução Democrática (PRD) teria 40%, mais que o necessário para impor derrotas ao Morena.
Ou seja, mesmo que ganhe a presidência, o grupo de Obrador pode ter um resultado aquém do que deseja no Congresso. Segundo analistas, esse pode ser um contrapeso importante no momento em que o futuro da democracia se soma à lista de preocupações. E são muitas: a guerra entre os cartéis de drogas, que aterrorizaram as eleições; o déficit fiscal estimado em 5,9% do PIB — o maior desde aos anos 2000; e recorde de 782 mil imigrantes detidos, resultado da política que transformou o país em uma espécie de muro para os Estados Unidos.
Aqueles que pretendem votar em Claudia Sheinbaum costumam dizer que a vida dos mexicanos melhorou com as políticas de distribuição de renda. O salário mínimo saltou de 88 pesos diários para 312 pesos na fronteira Norte e 207 pesos no restante do país. Ao passo em que a pobreza caiu de 41% da população para 36% entre 2018, ano da última eleição, e 2022, dado mais recente do Conselho Nacional de Avaliação da Política de Desenvolvimento Social (Coneval).
Esse parece ser um dos poucos pontos pacificados no México. Até mesmo Xóchitl Gálvez, principal nome da oposição e crítica feroz de AMLO, promete manter os benefícios se for eleita.
O analista Agustín Basave concorda que o aumento da renda dos trabalhadores e os benefícios sociais são positivos, mas compara Obrador a um médico anestesista.
“É como se o México fosse um paciente que tinha três cânceres: a corrupção, a pobreza e a violência. O maior deles era a pobreza, a desigualdade. Os benefícios sociais são como uma anestesia para os que mais sofriam desse mal. Então esse paciente, México, se sente melhor, mas os tumores nunca foram extirpados. Basicamente, o que Obrador fez foi mascarar a dor e fazer com que as pessoas acreditassem que as coisas estavam resolvidas quando, na verdade, era só um paliativo”, afirma.
Onda de violência
A crise na segurança pública, considerada o principal desafio para quem quer que vença as eleições, é um exemplo de como os problemas são persistentes.
López Obrador adotou a política de “Abrazos, no balazos”, que pode ser traduzido como “abraços, não tiros”, e consiste na ideia de combater o crime a partir de suas raízes, como a pobreza. “Deve se enfrentar o mal com o bem”, costuma dizer, mas apesar das promessas de pacificação, o México convive com a guerra entre carteis de drogas.
AMLO celebra que a tendência de alta nos homicídios se inverteu durante o seu governo, com redução de 22%. Em números absolutos, por outro lado, esse é o período de seis anos (a duração de um mandato no México) com maior número de assassinatos desde que se tem registro: 190 mil.
Mais que um tema central, a violência atingiu em cheio a eleição, considerada a mais sangrenta na história recente do México. Foram 82 assassinatos relacionados ao processo eleitoral, sendo 34 de candidatos ou aspirantes, e os números tendem a ser ainda maiores. Desde que o levantamento foi publicado pelo think tank Laboratório Eleiroral, não pararam de circular vídeos de políticos locais assassinados, corpos crivados de balas estendidos no chão, comícios encerrados por tiros à queima roupa.
“Por mais que falem da violência pela circunstância eleitoral, há estabilidade política no México”, minimizou Obrador no começo da semana. “Ainda há problemas de insegurança e violência, muito localizados e devido a questões especiais que têm a ver com o confronto entre gangues, a luta pelos mercados, especialmente para o consumo de drogas”, disse.
Mas, segundo analistas, a violência política é um reflexo de como os cartéis avançam para ampliar o seu domínio sobre o México. Em busca de influência nas polícias municipais e estaduais, como mostrou o Estadão, os criminosos tentam cooptar candidatos a partir do financiamento de campanhas e tem retirado da disputa, na base da bala ou da ameaça, os políticos que contrariam seus interesses ou foram cooptados por grupos rivais.
Imigração
Embora tenha passado ao largo das discussões políticas antes das eleições no México, a imigração será outro desafio para quem suceder Andrés Manuel López Obrador.
“A relação com os Estados Unidos é a relação mais difícil para nós, mexicanos”, afirma o analista Agustín Basave. “(O ex-presidente Enrique) Peña Nieto e depois López Obrador cometeram erros graves na relação com Donald Trump. O México está fazendo o trabalho sujo para os Estados Unidos em matéria de imigração. Isso é vergonhoso”, acrescenta.
O acordo com os Estados Unidos prevê que o México reforce o controle da fronteira para impedir que os imigrantes cheguem ao solo americano e tem atravessado governos.
“O que existe atualmente é a continuação da política proposta por Trump, que levou o México a se tornar um filtro para impedir a imigração”, afirma Roger Bartra. “Trata-se de uma política repressiva a serviço dos Estados Unidos e Joe Biden também se aproveitou disso”, acrescenta.
O México prendeu, no ano passado, o número recorde de 782 mil pessoas em situação irregular, um aumento de 44% em relação a 2022. Discretamente, o governo também tem colocado imigrantes em ônibus e os levado para longe dos Estados Unidos, em resposta à pressão do governo americano para conter o fluxo na fronteira, que colocou Joe Biden na mira do Partido Republicano em ano de eleição nos EUA.
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